Alusões para a sombra (IV)

Você empaca numa coisa e não tem explicação alguma para isso
Ilustração: Plínio Palhano
01/07/2007

Você empaca numa coisa e não tem explicação alguma para isso — como eu não tinha para ter chegado somente até a essa parte de Alusões para a sombra, literalmente, ofuscadas na sombra debaixo do sol de claros-escuros atenuados pelas lentes de grau dos óculos de um morto. Era nisso — nas sombras de dentro — que eu estava pensando (ou me esforçando para pensar), enquanto ouvia música árabe e música internacional pasteurizada, no restaurante onde esperava por Petra (quem era Petra?) e bebia, e revia, mentalmente, o texto deixado incompleto no Cairo, antes mesmo de vir para a Jordânia a fim de não pensar, não escrever, não trabalhar, não acrescentar uma linha sequer ao ensaio deixado naquele ponto da cabeça da rainha, com a pergunta pendente como uma estalactite de poeira (por que não?) num daqueles templos escavados no paredão de rocha (o que era Petra?). Ou seja, para passear — longe de qualquer censura própria, imprópria, minha ou de outro (como eram meus óculos esporte de grossas lentes escuras).

Então, não se fala mais nisso, em trabalho: tenho tempo, sou jovem — somos —, ou, se nem tão jovens assim, somos parte do cachimbo que entorta a boca da ficção: senão vejamos o que, aspas, é descrito como “entramos no hall, pegamos as nossas chaves na recepção e combinamos, comme il faut, jantar no restaurante banal do hotel INTERVALO: aqui é o lado de dentro da janela cortada da ficção: não vejo os dois personagens desfazendo-se do corpo de Sabrina (que entrará mais tarde) como se fosse um ato a mais da banalíssima série do sorriso “apagado” logo após a “breve” despedida à porta do elevador automático. Adjetivos e confortos no distante Oriente. É com essas merdas que trabalham os autores de bestsellers lidos por você que diz que não lê best-seller. Vão se separar pelo tempo do asseio “civilizado” dos ocidentais que precisam tomar banho (1), enxugar-se e perfumar-se (2), e talvez deitarem-se por cinco, dez minutos (3), enrolado na toalha sob o frescor do ar que se despeja sobre o corpo sem querer examinado (então percebe, ela, ter esquecido de raspar uns pêlos pubianos rebeldes no tufo aparado como um penteado étnico da África, e, ele, de fazer — ou refazer — a barba na face examinada com a palma da mão que decretaria “fica para amanhã”, se fosse outra noite solitária à mesa do lago de distâncias do restaurante com o queixo cortado em duas pequeninas vírgulas apertadas no lado esquerdo uma mesa para dois (o V de dois dedos para o garçom vestido de árabe estilizado) longe das tendas “românticas” onde também servem as refeições pedidas pelos hóspedes cansados de um dia de poeira que escorreu com a água parda pelo ralo do banheiro onde Sabrina — e não Petra —vai ser morta. Mas isso é antecipar coisas muito posteriores à espera do homem com dois riscos de gilete que aguarda pela companheira de viagem na fingida paz oriental do restaurante):

Fiquei ali esperando, pedindo uma e outra bebida, e, confesso, com fome. Pensava se devia ir à portaria (não havia reparado no número do apartamento de Petra, a hóspede), se devia fazer alguma coisa, telefonar, acordá-la. E se estivesse muito cansada e houvesse dormido sobre a cama, enrolada numa toalha? Ficaria talvez resfriada, acordaria tarde — achando que ainda era o momento em que se “deixara ficar na cama” (porque a narração artificializa os menores atos da intimidade, etc.) — e ficaria consciente, de súbito, de que havia marcado jantar na companhia do brasileiro… Como era o nome dele? Lembraria a caminho do restaurante? Iria?

Depois que você dorme o tempo que for, pelo lapso misterioso de sono que vier afastar o mundo, levar para a lua do sono leve ou profundo, tudo parece visto pelo vidro de um copo de antiácido efervescente sussurrando borbulhas de preguiça e relaxamento, ao som do ar refrigerado ronrronante de um quarto às escuras, exceto pela luz do banheiro de onde vem ainda o odor de sabonete e xampu Shangri-lá (o preferido de Petra deitada, as pernas raspadas, separadas, macias sobre o lençol mudado: seria bom ficar assim, na indecisão na noite, no limbo da hora do relógio largado sobre a mesinha de cabeceira inacessível do outro lado da cama um pouco úmida da toalha que já secou: “então faz tempo que eu estou deitada, devo ter cochilado”)…

Trimmmmm: se (e quando) eu falasse, resolvesse falar, telefonar, acordá-la —pareceria que eu estava querendo o que de fato eu queria: o evoluir do encontro, das ruínas para o jantar e, daí, para uma das duas camas da planície da vulgaridade que regula mesmo os hotéis regulares no fim do mundo, os prédios de alvenaria e tijolo novos próximos das ruínas de pedra.

Então?, devia ligar: “ei, cadê você? Estou aqui, no restaurante, há um tempão” (porém deve soar engraçado, não-reclamão ou irritado, nunca a exigência de que “deve” vir porque marcou — “nós marcamos aqui no restaurante, lembra-se?” — isso não, mas prepare uma piada sobre o lugar, o drinque da espera, a fita do bar (começava a se ouvir uma seleção de arranjos de bossa-nova, enquanto permanecia indeciso), tudo que me levou ao telefone. Tive dificuldade em obter a ligação a partir do nome Petra (não sabia o seu sobrenome), que soava, é claro, como o nome da cidade. Dois recepcionistas insistiram em me dizer que, “sim, o hotel ficava próximo de Petra, a antiga cidade, e haviavisitaçãoduranteodia e eu deveriaconsultarospreçosdopasseio: podia ser feito a partir das 10 horas…” — a ladainha recitada em mau inglês que quase me fez desistir de ligar para o apartamento cujo número afinal consegui, através da telefonista. Eu estava impaciente, com fome e arrependido a cada ruído de chamada, num quarto longínquo, onde talvez Petra houvesse desabado numa cama convidativa, banhada, o jantar esquecido (e se não estivesse passando bem?), recuado para trás das fachadas, das gentilezas frouxas na presença do atendente de dentadura postiça.

Petra dos dentes sólidos, da palavra quebrada.

Fiquei com raiva — só por um instante —, ouvindo música brasileira ao acaso, e as chamadas inócuas do outro lado até que houve o “clic” do aparelho que se desliga, levantado e pousado, de volta, sobre o gancho que corta a ligação.

Fiquei mais do que nunca irritado. Talvez o mais sensato fosse parar naquela tentativa, mas tentei de novo (a música atrapalhava, ou, talvez, a ligação)… Tentei de novo, através da mesma telefonista que me disse estar ligando o número correto da hóspede. Dessa vez, uma voz masculina atendeu, ríspida, um “hello” curto e áspero, antes de ser desligado, de novo, o aparelho agora misterioso, com o seu apito de rejeição repetido, soltos nos fios da desconexão: clic-clic-clic-clic…

Detesto isso. Essa radiografia de um telefonema perdido. A “voz masculina”. A insensatez pequenina, acompanhada de uma certa fixação obsessiva. O próprio ato minúsculo, em si, que me irrita como leitor psicossomático a tomar qualquer narrativa pelo que ela vale quando murmura os gestos decompostos que eu analiso, comparo com a lentidão (ou a pressa) da realidade prosaica, roda axial que levaria um personagem sensato a comer sozinho, a degustar, solitário, “algum peixe do golfo” (o prato da noite — mesmo “oriental”, “exótico”, “local”, “folclórico” —, coisa leve, para se acompanhar com vinho branco, meia garrafa, o bastante para tornar mais fácil o sono que não demora a vir quando se é uma pessoa cansada que volta para o quarto e liga o ar: você está entendendo que mesmo as mínimas coisas podem ser descritas como se fossem as mais importantes, e que tudo se passa como)…

Petra aparece — depois da “desconexão” telefônica da voz masculina misteriosa, logo em seguida, surgindo no restaurante jordaniano pró-Garota de Ipanema e outros hits. E foi logo se desculpando: “colichei, não é assim que se diz?”

“Cochilei”, corrigi, e menti: disse que acabava de chegar, também resolvera descansar um pouco, essas coisas. E emendei, como nos filmes se emenda, olhando no cardápio, para o lugar menos atrativo do menu: não há nada lá. (Era mesmo o apartamento dela?)

“Você quer beber alguma coisa?”

“Não, você quer?” (eu já bebera o bastante, esperando), parecia um comercial de Martini.

(Havia alguém lá? Por que não?)

“Eu não bebo” (quem não bebe?).“Isso é música brasileira, não?”

“É Jobim.”

Ela não conhecia. Ou não sabia o que Tom significava — uma atmosfera — e comecei a tentar explicar (o que ouvíamos era a “Garota” num mau arranjo internacional), para uma semi-estrangeira, o sentimento embutido na música do cara, aquela coisa de mata e terraços do Rio de Janeiro, o sol duro que amadurece as frutas e queima mulheres bundudas, de pés pequenos e sujos de areia quando se vem da praia, um clichê incontornável no Arpoador, no Leme, em Ipanema, a “Garota” capta isso, Vinicius, a turma dele, uma bossa amadurecendo na falta de preocupação de mistura com a gentileza no ar.

Ia embalar, falando nisso, na amenidade de corte que subsistia no Catete, em Laranjeiras, nos bairros afundando-se na vida do Rio de até fins da década de sessenta (o apartamento de Nara, a televisão em preto-e-branco, o “Repórter Esso”)… quando percebi o homem que entrara logo atrás dela, agora sentado duas mesas atrás, de forma a nos observar com a perfeita naturalidade de quem não pode evitar, num restaurante, apreciar os comensais mais próximos e até ouvir os fiapos da conversação.

Era impressão, ou Petra estava cônscia daquela atenção ainda mais do que eu, na minha cadeira de costas para o árabe? Era um árabe?

Estava vestido à ocidental, um homem moreno, maduro, de têmporas grisalhas, que comia pedaços de pão sírio como se os engolisse sem mastigar direito (para observar isso, eu precisava olhar sem naturalidade, diretamente para ele, voltando um pouco a cabeça). Quando voltava a olhar para a convidada, o seu olhar vinha, talvez, de examinar a expressão do mastigador sem pressa, do “senhor” cujo olhar eu colhia na nuca, quer dizer, você sabe quando alguém não olha na sua direção como se olha para uma pedra, e eu juraria que Petra, tensa, havia entrado com ele, quer dizer, talvez houvesse se adiantado para se separar à entrada do restaurante — onde sabia que iria me encontrar, não sabia? Estou tentando rever a fração de minuto do seu aparecimento, quando se aproximara com um “travamento” novo, isso é difícil de explicar, se alguém não sente — ou finge não sentir — a espécie de muro, na conversa, que não impede o fluir das palavras, mas apenas cuida de manter numa direção ou noutra, mesmo que ela estivesse pedindo para falarmos o tempo em português, a fim de “treinar o idioma que nem sempre podia ouvir no lugar do alemão, do francês, do inglês”. Fluente nos três — além do português —, Petra falava até mais do que a Petra de Petra, mas não era a mesma, se é que me entendem, estava estranha até fisicamente (os cabelos escorridos do banho?), um ar ausente e lavado de qualquer real interesse pelo que eu ensaiei dizer sobre o Leblon, o Posto 6 pós-bossa-nova que prosseguia na Copacabana mal-arranjada do som ambiente do restaurante com nossas mesas separadas, pouca gente comendo, eu, ela — e o cara, o “árabe” que não dava para saber se era realmente um árabe.

Terminamos comendo quase calados — ela, peixe, inodoro; eu, carne (carneiro, num ensopado gorduroso, que deixei pela metade). “Você não está com fome?”, perguntou, vendo o meu prato abandonado. “Não, realmente não estou” (mas estava).

“Não quer pedir outra coisa?”

“Não, eu acho que…” Chamei o garçom, pedi uma sobremesa síria de amêndoas — que ela recusou provar, quando a coisa chegou, nadando em calda. (O homem nos olhava?) A sobremesa era daquelas puxadas a mel (não vou dispensar de descrever a sobremesa, estou disposto a fazer você rir da literatura), pegajosas de engolir, de tão doces como (na literatura se compara tudo com tudo), tudo é detalhe e tudo importa e não importa, quando você se sente estranho, na presença de uma estranha que parece mais dura enquanto recusa doces, troca olhares e finge que sabe a música que tocam (agora, hits italianos). Terminei afastando a sobremesa com uma careta que a fez sorrir — pelo menos isso — na noite que havia mudado.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho