Alusões para a sombra (II)

tudo que conseguira escrever fora Alusões para a sombra — a primeira parte do texto introdutório
Ilustração: Plínio Palhano
01/05/2007

tudo que conseguira escrever fora Alusões para a sombra — a primeira parte do texto introdutório, ou, mais precisamente, uma vaga, uma insatisfatória coisa dificultosamente avançada por não mais que quatro “módulos” paralisados na segunda semana, apenas.

Seja como for, não quisera continuar lá (e de que adiantaria ficar apenas para…)

Agora, meu-deus, estava ali em Petra — na Jordânia. Havia desistido — numa palavra — e rumado, de repente, para o aeroporto velho, dos vôos domésticos e para alguns países vizinhos, em boas relações com o Cairo. Havia escolhido o reino hachemita (“Amam”, pronunciei o nome da cidade, com os “as” da esperança num Sésamo do acaso) quase jogando dados com a imaginação em suspenso, ficava perto de Petra, uma ruína silenciosa (não era), era do que eu estava precisando: um parque atrás de uma catedral, um cinema de bairro (quando ainda existiam) debaixo da chuva, na Roma morta da juventude. (Alusões para o quê?)

Bem, estava em Petra, o autômato que viaja e muda de lugar de Pilatos no credo de uma viagem duplamente incerta, financiada no limite do crédito do cartão, etc., nada disso importando muito agora que eu estava ali, neste momento a responder à pergunta daquela garota loura, sonâmbulo educado. Recupero mais ou menos o diálogo:

“Você conhece as histórias deste lugar?”

“De Petra?”

“Da região.”

“Li uns folhetos sobre as ruínas…”

“Não. Eu falo das histórias que se contam.”

“Onde?”

“Em toda parte. Há sempre histórias. Nos bazares, nos mercados, nos táxis que levam aos lugares livres dos turistas. Você não parece um turista.”

Olhou em volta, a boca torcida de ironia:

“Petra? Sem turistas?”

“Há aldeias por aí, atrás dos paredões, que ninguém visita.”

“Conte uma das histórias.”

“Não teria a menor a graça contada por mim. Só eles — pessoas que você nunca mais veria, você sempre tem a certeza — sabiam contar a coisa mais doida, a história mais louca, como se fosse natural e simples: na minha aldeia, o vento levou uma criança, no ano passado.”

“O vento?”

“Um vento mau, como eles dizem.”

“O vento não pode levar ninguém”…

“Tem certeza?”

Petra sorria e fumava, indiferente ao aviso com a faixa vermelha sobre a imagem de um cigarro, alerta visual de interdição (NO SMOKING), motivo da piada: “a civilização que se voltou contra o fumo para morrer de tédio nos sábados de compras”. Eu respondi com outra — na qual achou graça talvez somente pelas regras da boa educação da civilização tediosa (“que queria viver mais do que era interessante viver”)…

Petra falava neles como se fossem de um outro planeta: o lugar dos não-fumantes caretas, viajando para enganar o tédio e a morte. Disse que me excluíra dos “grupos” por alguma intuição nebulosa, de cara. E que me havia “percebido” não como um turista de bermuda, obrigado, alguém fora da malta — o zombie olhava para a fonte viva, de cabelos dourados sob o sol da Jordânia empoeirada — eu, o diferente na diferença nenhuma que teria passado, à distância, para uma desconhecida no oco da rocha escavada, o recitativo do guia de turismo soando com orações arqueológicas memorizadas com a indiferença dos guias que nunca mais verão os grupos elucidados sobre o passado remoto como as vozes se distanciando da malta se encaminhando para a saída (onde fica a saída?) — ela que falava, eu não dizia quase nada: “rebanhos de turistas tangidos de volta, ordenadamente, para o conforto dos ônibus e dos hotéis detergentes por sobre as explicações decoradas, e, mais tarde, sem nenhum sentido, quando olhassem para o teto dos quartos das suas casas de Kyoto, Porto e Detroit”, etc. Teria dito tudo isso? Eu talvez respondi:

“Não sou como eles só porque eu fumo? E se eu for?”

Ela “apostava” que eu não era. E não, não disse tudo aquilo — dos “rebanhos”, das explicações decoradas — de uma vez, mas eu intuí (mais do que ouvi), pensando neles da mesma forma, isso eu posso garantir, agora, escrevendo de volta para a rotina, lembrando do seu olhar irônico separando-nos dos demais visitantes como por um contágio da fumaça.

O que ela disse foi só “coitados” — deles, os visitantes retirando-se sobre o silêncio dos lugares que esqueceriam logo em seguida, entre duas anotações garatujadas sobre povos confundidos (“nestorianos” com nabateus do Mar Vermelho de vasos e lanchas serenas sobre a água cansada do sol).

E sorria, com piedade pouco simpática para com bolsas, meias e identificações amarelas e vermelhas — as cores respectivas dos veículos de cada manada tangida para os carros, em turmas esportivas e ansiosas pelo banho distante das ruínas riscadas com corações e nomes anônimos, múmias de bois e gatos sagrados, jacarés e outros animais das digressões de Qutb sobre as senhoras malimpressionadas no Egito, depois do almoço. (Já falei sobre isso?)

Havia jipes “sem conforto” para eles, os retardatários de Petra. Os guias clamavam pela pontualidade, havia almoços contratados, etc., e as palavras voavam, em inglês mal pronunciado: “hotele”, “tene dollares”, “camel”, “WC” (que tornava bem mais apreciadas as instalações sanitárias dos hotéis onde o cocô sumia no jogo da água aspirada pelo ogro rouco dos milagres hidráulicos). Em Petra, ainda eram latrinas, até bem pouco tempo. “O turismo é mais voltar do que ir, mais retornar para o conforto do que pisar em merda de gato” — lembrei-me da frase de Ommar, no Cairo, anotada junto com as outras do cineasta. O tema havia feito Petra voltar a falar da Índia (que “tratava os dejetos daquele modo horrível”), e confessar antiga antipatia pelo país que agora amava: pensava em “morrer lá, com o auxílio do cigarro” — ironizou, enquanto eu contabilizava o seu terceiro, acendido pelo meu isqueiro diligente e cúmplice. Depois, cortou o assunto do Ganges mortal e democrático para dizer, sem muito nexo geográfico, que “nunca mais” (desde os 13 anos) retornara ao Brasil. Fizera algumas amigas em São Paulo e se correspondia com elas.

Eu ouvia mais do que falava, já disse, deixando que a corrente de ar (que recordava o Brasil) levasse a fumaça azulada, enquanto anoitecia daquela forma lenta, as estrelas chamadas uma a uma, parecendo com a imagem do gazel do poeta árabe: “estrelas pontuais sobre a crina do cavalo calmo”. Estava tão longe de casa, da biblioteca hoje fechada, da venda do negócio do expedicionário, da casa de Flaminia-Lata — ladeira acima — ali entre as construções inacabadas daquele povo sumido da história (minha história sem registro não deixaria nenhum falso túmulo sujo de tocos de cigarro), que fiquei, por instantes, confuso: o poeta também sumira da lembrança dos oásis molhados da água da mangueira do carro sendo lavado na distância que às vezes se torna tão triste, nas ruínas onde outros viveram, esperaram e viram as palmeiras debruadas sob as estrelas acima do cavalo bebendo água. Imagens confusas na cabeça: do Egito, da Síria e, agora, da Jordânia das duas Petras.

Naquele momento, pensei que Petra pudesse ser uma ilusão “debaixo das estrelas caídas” (não é bonito?, a imagem é também do gazel, e lembra aquela de Foscolo, sobre a juventude, a “flor” precoce, citada no romance de Pratolini, Cronaca Familiare, que Valerio Zurlini havia transformado no filme italiano que Ommar Qutb mais admira).

Agora escreva: saímos para debaixo daquele céu incrível (o que estraga a realidade), e então eu resolvo estragar mais ainda, dizer “não fume mais”, embora tenha tentado consertar: “até o jantar, pelo menos” (assim como diria um turista-médico). Ela voltou a rir, saiu da cisma, perguntou onde eu morava no Brasil, e se era casado.

A pergunta que eu temia, e que, entretanto, esperava.

Isto é uma pausa. Não é fácil escrever sobre o arco amoroso de um encontro. Na verdade, é quase impossível soar diferente do tanto que já foi escrito sobre — sendo todos os encontros (e desencontros) parecidos, na família daquela frase sobre toda felicidade ser parecida enquanto cada um é infeliz ao seu modo… e, ainda assim, com todo o artifício, toda a impostura literária, monotonamente aprendida também da empostação de filmes dos discípulos menores de Antonioni e outros (contudo, é a literatura de segunda, a arte vagabunda que melhor ensina). Não posso mudar as coisas acontecidas de acordo com o figurino de papelão de um filme ou de um texto de segunda.

Voltamos num dos jipes dos árabes que faziam transporte informal, rondando Petra, a Ruína, com convites para passeios mais baratos do que os licenciados pela entidade oficial do turismo do Mar Vermelho (tinha outro nome, que eu esqueci; fica valendo essa licença poética marítima, num conto que não se permitirá mais licença alguma).

Voltamos, então. Dispostos a receber o vento frio na cara, numa alegria meio espalhafatosa ali entre as dunas solenes e o sol mal-humorado. O lenço de Petra voou longe, o árabe parou, foi buscar; ficamos sentados, cercados da lataria quente do calor do dia todo, o cheiro de gasolina misturado ao de couro suado do assento do motorista que voltou sem o lenço: não havia encontrado o pedaço leve de pano que voltara rumo a Petra, a de pedra (ainda deve estar lá). Rimos. “Mas eu gostava daquele lenço”, ela disse, quase sem tristeza (porque as mulheres em geral sempre ficam chateadas quando perdem alguma coisa — principalmente um lenço caro, “comprado em Anacapri”).

Arrancamos no jipe muito velho, contagiando até o árabe que passou a rir quando a gente ria de lenços comprados em qualquer lugar e dos turistas que escolhem os piores, nas melhores cidades que não sabem visitar. Se tivéssemos bebido, não seria mais alegre a nossa volta no veículo desconjuntado, enfeitado, que poderia ser chamado de “típico”, se a palavra não estivesse cortada das nossas frases sacolejadas pelo veículo.

Chegamos na entrada do hotel iluminado — com um néon de camelos enluarados —, teria sido bom não chegar (leia isso à parte), mas chegamos. E pagamos, cada um, o seu lugar no jipe dos soldados do general Allenby, demos a gorjeta de praxe e desembarcarmos, velhos camaradas de todos os ex-beduínos transformados em motoristas suados.

Que isso não seja motivo de riso (de mofa) do leitor benevolente para com os cheiros — e demais encantos — da “Jordânia da Narrativa do Encontro da Moça Alemã não Propriamente Bonita, Porém Encantadora, numa Cidade Antiga do Oriente Cheio de Estrelas e Árabes de Maus Dentes Sorridentes”.

Tudo bem, desista, desdenhe das cores locais e do (mau) uso do Oriente para iniciantes. Tocasse um tango à porta dos camelos piscando, e dançaríamos. Posso sorrir, agora, à distância — porque a distância. Não importa. O hotel era um descanso real, você pode até pensar que lê “Sabrina” em rascunho, e mais: que “isso nunca aconteceu contigo”. Assim pensamos, assim desdenhamos do que aconteceu com os outros que pensavam que nunca iria acontecer com eles o que está acontecendo aqui (que é nada). Ou é apenas a chegada de um casal no “Estalagem de Petra”, o hotel tão próximo de Petra que o silêncio da capital abandonada poderia apagar o som do sistema que todos os hotéis quatro estrelas possuem, com fitas escolhidas por algum garçom desocupado, no momento.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho