Alusões para a sombra (final)

O café da manhã no mesmo restaurante, com toda a gente falando ao mesmo tempo em inglês
Livro de colagens/ Fernando Monteiro
01/09/2007

O café da manhã no mesmo restaurante, com toda a gente falando ao mesmo tempo, em inglês e noutras línguas, além do idioma árabe guturalmente gritado pelos garçons se atarantando entre as mesas postas até no jardim empoeirado.

Havia grupos extras de turistas, chegados durante a madrugada, era o começo da alta estação (procure saber — antes — sobre tudo, não viaje se for para topar com ônibus e mais ônibus estacionados em fila na frente das pedras derrubadas de Pompéia a Conímbriga, debaixo do calor que indispõe para a visita dos lugares em ruínas, dos sítios abandonados e vazios: “o que eu estou fazendo aqui?”, você se pergunta no fim da corda do pretexto que se deu, num fim de tarde qualquer ou no começo suspenso de alguma noite solitária: conhecer o passado, saber como viviam pessoas mortas há mais de mil anos, desconhecidos de uma civilização remota cujos ossos exumamos como se acaso fosse de absoluta importância recuperar o grampo de ouro do cadáver que não correu o bastante para escapar da lava ardente cortando pelos fundos do templo de Ísis que estava já bloqueado, com gente dentro que seria dos primeiros grupos de restos humanos encontrados nas posições da agonia guardada fora da vista do turista comum — porque ele não pode, certamente, ser conduzido para almoçar depois de ver gente antigamente viva que se transformou num molde de lama ardente secada ao longo dos séculos rolados sobre o silêncio das vinhas de novo a crescer sobre a cidade soterrada)…

“Bom dia.”

“Olá, hoje foi a minha vez de esperar”…

Fiz o franzir de cenho de “mas, nós marcamos…?” LEIA-SE: eu marquei alguma coisa? Sou um perfeito idiota, às vezes (ou sempre).

Ela: “Queria me desculpar, acho que ontem eu não estava bem. Tomamos o café da manhã lá fora?”

Eu: “Se tiver lugares”.

Um garçom apontava para as mesas-extras, todas ocupadas. Terminamos tendo de esperar que vagassem duas cadeiras numa mesa para quatro pessoas, sendo as outras duas um casal de italianos. Petra falou com a mesma animação da véspera, embora a conversa tivesse que ser dividida também com aquela nossa companhia na mesa, com a tensa e pretensa educação de ocidentais interessados em ser gentis por pura mostra de polidez em viagens — sem a qual uma grande parte dos europeus talvez partisse a cabeça do conviva, a machadada, como na Idade Média livre das insinceridades burguesas. Não. Isso não é verdade, mas o fruto de uma noite maldormida — e de uma dor de cabeça autêntica, não partida, ainda.

[Anotar quantas vezes “autêntico” aparece nesta Petra de letras.]

A italiana perguntou se éramos casados.

Não.

Noivos?

Não.

Que poder têm as palavras! Ambos ao mesmo tempo negamos, olhando para a mulher que sorria, fixo, debaixo dos olhos duros (que os óculos escuros tentavam disfarçar). Porém ficou um laço daquela pergunta, uma espécie de possibilidade nomeada pela “boa” estranha, pintada, querendo ser maliciosa debaixo do sol de quarenta graus, com uma mancha de suor formada na blusa, debaixo dos braços. Petra evitou meu olhar (o que era pior do que se me olhasse, sob as palmeiras românticas da alusão a namorados). A italiana disse, sem muita razão, que o que parecíamos era isso (depois de se desculpar): um casal de namorados, assim com aquela leveza napolitana (apesar de serem milaneses, os dois). Era de manhã, soava a gentilezas ditas com um sorriso, para sugerir animação, sei lá: “vamos, saiam de mãos dadas, cantem cantando na chuva que nunca cairá aqui, entre estas malditas ruínas acocoradas”.

Não saímos assim, mas tomamos o rumo das atrações não-visitadas: havia Rumm, ao norte, ainda mais alcantilado paredão de rocha sem templos, sem capelas, sem nada escavado, exceto os sinais caligráficos das caravanas de camelos que por ali haviam passado há muito tempo. Havia também as inscrições, mais apagadas, de legiões romanas melancólicas e sedentas, escritas num latim de soldado que Petra tentou decifrar. Ri do seu pouco êxito (ela chegou a resultados hilariantes, fazendo piada das queixas milenares de alguns legionários tristes), e nossas risadas ecoaram pelo mundo mineral que nos cercava: um pequeno anfiteatro natural escavado pelas bundas de cameleiros sentando-se ali, à volta do olho de água, para conversar sobre os oásis perdidos, os profetas do deserto e os animais que haviam ficado pelo caminho. O árabe grisalho da estalagem não parecia haver se dado ao trabalho de vir espionar nosso passeio desconfortável, ou fosse o que fosse, um fantasma com uma mão talvez não sobre o ombro de Petra (logo retirada), ao avançar sob as cortinas de contas temáticas que davam entrada para o salão pobre de um restaurante noturno se esgarçando na minha lembrança ocupada por viajantes mortos e o puro riso — que tenho de chamar também de “cristalino” — da mulher de carne e ossos apertados contra meu corpo: Petra sacolejada pelo novo jipe que agora nos levava mais para dentro dos canhões lunares (Rumm era distante) daquela paisagem de êxtase e alguma espécie de terror não-articulado. Um novo solavanco a divertia como numa montanha russa média, levando as piadas para dentro do “oh!” gritado com o riso, nas descidas pelas dunas mais íngremes, o condutor local pedindo que a gente se segurasse, Petra se apertando contra mim, não pensem que resvalo para o conto do mês do Harper’s, apenas tento passar o movimento, o ar claro da manhã numa região deserta, sob o calor subindo a cada quarto de hora, no cinema isso é um minuto de som e imagem, aqui o leitor deve se acocorar para ver debaixo das palavras empoeiradas sob o transporte sensório do vento, do calor, do metal quente do jipe e do exagerado “céu limpo, vazado como os olhos de um cego de olhos azuis que houvesse bebido toda a nossa água”.

Encontramos poços beduínos, só para ver (não havia nada: apenas um buraco escuro, onde gritamos, para ouvir o eco a descer em busca do líquido invisível). O guia dizia que devíamos beber das garrafas que eram “cortesia” do passeio, de meia em meia hora. Petra amarrara um extraordinário novo lenço em torno do chapéu de aventureira maquilada: a viajante previdente traz dois lenços em algum bolso ou bolsa, além de absorvente extra e creme para o rosto que, à luz do sol cru, era menos jovem. Bem menos. Isso a tornava mais interessante, na fronteira da idade em que se torna vital usar um bom perfume, uma vez que o pescoço trai a passagem do frescor para as fotos de Chipre sufocada de calor bolorento no colarinho antiquado dos padres, do Egito postal das pirâmides de ladrões de Sakkara de todas as idades — “um país kitsch” — e de tantas outros lugares (a frase frouxa que solta uma imagem de distância irreal) que a tinham visto jovem na elasticidade do pescoço perfumado de manhã, com cuidado, com a fragrância para ficar, um eco do aroma do quarto entre as rochas, as colunas sonoras (porque reverberavam o inglês, o francês e o alemão estropiado dos “guias locais”) enquanto em pensava na história resumida daquele jeito — enquanto seus dedos bolinavam um falso colar-amuleto de âmbar.

Continuava animada mesmo diante do “nada para ver”, exceto Rumm, o magnífico desfiladeiro: silêncio e claustro alcantilado, um fio de céu (a fita azul no cimo dos rochedos subindo para se unir no alto bem alto), enquanto, embaixo, era a sombra boa e desejada depois de rodar ou cavalgar em lombo de camelos, se quiséssemos, saindo do jipe para experimentar, imaginar, sentir e entender por que o sol cegava.

Dispensamos os camelos (pensei nos camelos do painel do hotel chamado de estalagem, o nome me incomodava, parecia que Petra poderia ser alguém contratado para personificar alguma miragem, etc.). E Rumm não era diferente, o maior corredor de solidão que se possa imaginar, canhão dispensando palavras vulgares de admiração que não transmitem o poder do ambiente severo, silencioso, esmagador de um modo que você não pode imaginar se não estiver lá, pensando na sombra. Petra mal falava, no final. Talvez estivesse mais cansada do que supunha, sob a perseguição do sol que penetrava, como mormaço, pelo desfiladeiro abaixo. A terra também acumulava o calor, durante o dia, era quente através dos sapatos e a quentura só não impregnava o maciço das paredes naturais de rocha, algumas com inscrições, talvez igualmente cansadas, que não sabíamos decifrar pelo túnel do tempo exaurido naquela passagem de caravaneiros, exércitos, profetas e viajantes do desfastio, como nós. “Faça um piquenique moderno onde as caravanas faziam as suas paradas, orientados pelos poços de água da rota da seda, mais valiosos do que ouro e mirra”…

Era assim que se anunciava o que deveríamos fazer — e não fizemos.

Dispensados os camelos, ficamos sem comer, ali sentados, naquele canyon nunca fresco (porque a sombra era opressiva, e o calor continuava, lá dentro, descido da fita larga do céu tremulando como uma bandeira cega e sem fé, acima de nossas cabeças descrentes).

Quando ela falou, contou um pouco da infância num Brasil mais do que nunca remoto. Era estranho ouvir falar de São Paulo, do Pacaembu, da fábrica onde o pai trabalhava e das escolas paulistas para moças, ali, naquele lugar desolado, olhando para uma moça que eu nunca vira antes de chegar naquela região do Oriente que se vendia a si próprio como um “roteiro exótico”. Ficava tudo falso — as conversas, as coisas que deviam ser vistas a essa luz — como num filme mal dirigido ou um romance em que o autor não sabe como se expressa uma mulher de classe média num consultório de ginecologista de subúrbio.

Havia mais um dia inteiro para mim, porém Petra viajava no meio da manhã seguinte, para Amann e, daí, para Paris e Atenas. Isso, ela só me disse… Ou nem disse: na verdade, foi o que ela comunicou ao telefone, sentada na cama (mais confortável do que a minha), confirmando um lugar no transporte do hotel que levava direto para o aeroporto, muito cedo. Estava nua e falava, à vontade, no seu inglês impecável (o meu, nunca foi bom): mulheres jovens que suportam olhares, de pernas nuas cruzadas para tornar menos evidente a mancha escura da vulva.

Deixaria que ela partisse (não poderia impedir, nem o queria, não dizendo: “não vá”, embora — acho — eu tenha dito).

Por ora, estou ali, a ouvir: Paris seria só “durante dois dias”, para resolver seus misteriosos “negócios” (dos quais falarei mais adiante).

Falarei? Não era nada como eu pensava (nem ela uma “alemãzinha um pouquinho aluada”, nada disso).

Em Atenas, poderia se demorar, “se as coisas não dessem muito certo” (que coisas?, e “certo” no sentido certo de “certo”, ou queria dizer mais do que, na verdade, não dizia?) Ela havia saído de Blow-up, era irmã de Vanessa, tinha todos os seus negaços?…

“Tenho um amigo, lá em Atenas, que poderia…” — não terminei a frase, ela nem anotou o nome, embora agradecesse. Era muito cedo para perguntar se ela queria que eu…

Não havia motivos para isso — para ir junto, quero dizer —, além de uma noite (mal) dormida na mesma cama, cada um fumando, ocasionalmente, com os próprios pensamentos virados para o seu lado da relação física freada por formas de delicadeza ou timidez (talvez) e medo? Medo de quê? Era muito tarde ou muito cedo? Você percebe o momento em que uma mulher — mesmo uma quase estranha — se despede, na lentidão do chá que a mão (que você contempla) ergue, na xícara transparente, até os lábios descorados da desconhecida arranhada levemente no braço que a manga de malha em parte protege (“você está realmente bem?”), os fios do tecido dilacerados onde a carne foi apenas riscada como se alguém houvesse passado uma lixa de unhas na pele branca, dessas que se tornam muito vermelha no calcanhar sobre o lençol limpo (o calcanhar de uma mulher é uma parte muito íntima), enquanto faz frio, de repente, no deserto do apartamento abandonado, que a camareira limpa diligentemente expurga da passagem das pessoas que já não podem ser encontradas.

Você conhece Petra?

Os paredões escavados, as fachadas falsas?

Templos que não são templos, não parece uma cidade mas um cenário deixado para trás, por alguma equipe morta no deserto (“Petra é cercada pelos rochedos que nascem e sobem, de súbito, muito acima da região lunar em torno do Golfo de Ákaba”), eu pensava nisso, e lhe disse: “não parecia uma cidade”.

Ela apenas concordou com a cabeça. Talvez já houvesse ouvido o mesmo, dito por algum idiota, com ênfase (a diferença, como sempre, é só a ênfase).

“Mas, você não é brasileira?” — eu perguntei (foi a minha segunda pergunta, também), agora você se imagine debaixo daqueles paredões, na falsa cidade escavada na rocha — que não é, de modo algum, “vermelha”, conforme o chavão daltônico que chama Petra de “cidade rósea, com metade da idade do próprio tempo” (o que são dois exageros). Ela disse que “não era alemã” — e se chamava Petra.

Petra?

Você pensa, não há como não formar o haicai concretista na cabeça: Petra em Petra/ tanto bate/ até que fura (“por que está sorrindo?”), era um moça cheia de perguntas, às vezes.

Tudo bem, se chama Petra, e daí?, embora fosse inesperado e, importante, PROIBIDO FUMAR. “Você leu o aviso?”, eu perguntei, intimidado. Não havia o que ler, era só a imagem de um cigarro sob um “x” de interdição. Ela fez que “sim” com a cabeça loura, tragando com gosto. Petra fumante na Petra dos bivaques de fumo e chá das caravanas da Rota da Seda, a antiga cidade dos nabateus “que é, talvez, um conjunto de túmulos em forma de templos”, recitava a moça irônica, os cabelos em desordem sobre as orelhas que nada mais escutam, cabelos de cores desmaiadas como uma aquarela de Petra — a de pedra, que segue sendo visitada, agora mais do que antes, quando acaba de se tornar uma das sete novas maravilhas do mundo.

“Você conhece as histórias deste lugar?”

E o ensaio sobre Nefertiti — por que foi abandonado, cara?

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho