Abril em Paris (final)

A lua de novo pálida sobre o seu colo, um convite irrecusável: “Vamos à Ópera? Ver e ouvir Madame Butterfly?”
Ilustração: Rettamozo
01/07/2011

O filme era um complemento de O descanso da guerreira Jocasta, e esta nem havia tirado, ainda, as finas meias importadas — da maison que as fornecia, por sobre o Atlântico, para a senhora Brentano —, os sapatos de salto alto no chão, virados um para o outro, na roupa completa da diretora-presidente das Lojas Brentano, cantarolando April in Paris no escuro de antes melhor notícia do mês (se não do ano inteiro, um ano bom, de vendas aumentadas).

Talvez não fosse esnobe, propriamente. Mas a segunda plástica tivera que ser em Paris, mesmo com Pitanguy disponível no Rio, acessível por ponte aérea e à sua gorda conta bancária (além de ser, o médico das celebridades, amigo particular dela)…

Estamos na sombra sobre o que pode ser uma senhora com a sua história incompleta nas fotografias, nas cartas para a irmã, nos versos que recorda: “chove no país de que eu me lembro”. Isso não faz parte da canção de Duke — ou de qualquer outra. Isso ela inventou numa carta para mim, deixada debaixo da porta, quando eu me tranquei no quarto, após a nossa briga de maio, quando o noivado fora a notícia ruim, e tudo isso agora estava escorregando para baixo de uma noite que se anunciava chuvosa, ela encolhendo-se no sofá enquanto começava a sorrir para si mesma, tendo um motivo para cantar, mais do que para cantarolar.

A história fora das fotos mostraria uma mocinha modesta como uma caixeira — antes do casamento de menos de um mês, na duração de uma lua-de-mel interrompida pela “tragédia napolitana” — como se a morte do marido pudesse ter sido a ária de uma ópera vulgarizada pelos três tenores.

“Você é uma viúva linda e jovem demais para não se casar logo-logo, Lu” — era o que diziam as amigas recordadas num outro abril, quando eu tinha quinze anos (e parecia ter mais). Luiza havia sido uma espécie de mãe-irmã sem reservas na conversa, nas brincadeiras roladas pelos quatro cantos das salas, Luiza nunca tivera segredos para mim, nem, quase, intimidade livre da presença do filho. Eu estivera sempre por perto, talvez perto demais — agarrado pelos cabelos, beijado e mimado como se fosse parte do seu corpo que saíra para ter vida separada dela, infelizmente, respiração própria sobre seu seio firme, oh, espero que eu não pareça vulgarmente arrependido de uma cumulação de carinhos, de ondas quentes daquela intimidade — o que levava à certeza plena de morna mãe atenta aos meus menores gestos de criança a crescer numa redoma de amor que embaçava as paredes de vidro invisível dos banhos tomados a dois, das travessuras divididas com uma camaradagem tão franca que você podia enlouquecer quando pensava que pudessem terminar as férias intermináveis da vida em dupla estreita com a esplendorosa companheira de farras, debaixo das barracas infantis de escoteiro e outros brinquedos armados sobre a cama quente do corpo de mulher.

Viajamos para Paris — claro — nos meus quinze anos.

Era uma primavera cheia de turistas de todas as classes abarrotando hotéis superlotados, enchendo de vozes o metrô barato e desembarcando, com suas câmeras, das estações e dos ônibus estacionados perto da torre-símbolo e do Luxembourg salpicado de cores da primavera pontual como relógio de corda na mão de um aposentado. Ficamos perto dos jardins, num hotel dispendioso, porém não o bastante para os herdeiros de Mario Brentano, mãe e filho instalados não em dois quartos — embora o gerente houvesse nos prometido o primeiro apartamento desocupado (o que, quando ocorreu, foi dispensado pelo prazer de mais do que o costume da intimidade).

Ficamos, portanto, naquele cômodo de frente, que dava para um parque onde havia um carrossel e feiras livres de bricabraque, realejos e fotógrafos com máquinas antigas e bigodes caprichados — para atender às imagens coladas no clichê “Paris” (que Luiza acarinhava como uma gravura colorida), a cidade dos cartazes de Moulin Rouge, refratada de filmes pintados devolvendo uma cor de cenário às ruas da realidade matizada com um leve mau-gosto publicitário de anúncios turísticos superpostos à vida normal da Paris que Luiza prometia como uma torta de morangos numa redoma de pastelaria, uma mousse numa taça gelada, um sonho desenrolado de papel celofane ((“primeiro Paris, depois Roma, Londres, Madrid”)…

Eu me sentia adulto viajando assim, ela se sentia (e era) jovem, eu sei, e também queria que eu tivesse aprendido a tocar piano. Vestia-se e se despia na minha frente naquelas temporadas com música nos restaurantes e coisas que ela me ensinava a comer, havia uma intimidade que o ar favorecia, sim, de alguma forma ainda insinuante por sobre as gastas imagens (“o que você fez com o meu coração?” — não é isso o que a canção de Duke-Harburg termina por perguntar?), faz sentido, mas não pode explicar, nada pode explicar, estamos e sempre estaremos — todos — na sombra sobre tudo, embora haja uma nuvem que felizmente suaviza as coisas para uns (e, para outros, não).

Algo foi feito com o meu coração — eu sempre disse à Diana (e até à Estela).

Algo que nunca poderá mudar em mim, diante da face escondida da Lua, da parte oculta do prazer que dissipa a febre ou se confunde com ela, nos dias de doenças, desesperados para a mãe extremada das doces horas da Terra do Nunca aqui, do Jamais Longe, do Muito Perto e do Muito Quente no meu coração: cante para ele, cante a canção da ida e da volta da Ópera (“você vai entrar, meu amor, nem que eu tenha que subornar todo mundo”). Ela se enganava: havia crianças na platéia da Ópera. Mas eu não era mais uma criança, ali, e você nem pode imaginar, Diana, como ela estava linda e eu já parecia mais velho na minha roupa escolhida, comprada e vestida por Luiza, na noite de Butterfly, na madrugada falante como as fontes e as praças de ressonâncias ainda em confusão nos meus ouvidos: “que sorte a minha, meu querido, a lua-de-mel eu pedi que fosse aqui, e foi, e também na Itália (o acidente com ele foi lá), olhe a garota que eu era, você se parece comigo, não tem nada do seu pai, agora nem dá para se ver isso, você recortou e me deixou sozinha em todas as fotos, e como eu ri! Que diabinho querido, vamos fazer uma lua dessa cartolina, não importa, eu compro outras, pegue para mim na gaveta debaixo, saia um pouco, entre, não faça essa cara, fique. Não demore na piscina, sua mãe hoje tem reunião, seja bonzinho e deixe que sua tia faça as coisas para você, Mamãe Noel vai lhe dar isso, Papai Noel não existe, existem a Lua e os Planetas, eu tenho ciúmes, sim, deixe de ser mauzinho, não faça isso, eu compro, você sabe que a mamãe”…

Oh. Você sabe que a… Não, você não sabe, Diana. Ninguém sabe. Ninguém poderia saber. Luiza ficou viúva com vinte e dois anos, eu já disse? (“gosto de pensar que você foi concebido aqui, nesta cidade que eu adoro, seu pai ficava logo cansado, eu acho que você vai gostar, suba para trocar essa roupa, desça logo para dizer que queremos um táxi, não tome mais sorvete italiano por hoje, venha se deitar, não suje a cama com farelos de biscoito, diga se eu fico bem com este vestido, estou tão cansada que acho que)…

Meu pai morreu em Nápoles, isto é, na viagem deles para Nápoles — no que pode ser chamado de um “acidente de barco” a caminho da baía azul turquesa. Mas é Paris que está nos meus ouvidos, ainda: na canção em surdina, na recordação tão úmida quanto os táxis da volta da Ópera, os carros de reluzentes capôs molhados como o dólmã sobre a cadeira dourada que lembra as do teatro, no ano dezesseis (oh, eu tinha quinze anos e a mão já não inocente entre dois dos quartos desta mesma casa), devidamente contado da famosa viuvez precoce da senhora Brentano.

Estou aqui? Porque parece que eu estou de volta — lá. Posso rever os carros e as folhas iluminadas por faróis, debaixo dos castanheiros em flor. A noite tinha uma espécie de brilho frio como uma capa brilhosa, um impregnado cheiro do interior confortável dos automóveis após vozes e perfumes — e ainda fomos tomar um chocolate quente, inesquecível no meio do sono, primeiro procurando pelo endereço entre as ruas desertas, longe dos edifícios solenemente iluminados no vazio do centro de avenidas de nomes históricos explicados por Luiza apertada contra o frio no fundo da poltrona do carro, sua pálida mão tão íntima que há algo na precedência do sono, há uma suspensão, há uma permissão que tem a ver com a generosidade das noites chuvosas — até você colher olhares no saguão ainda iluminado.

Posso sair dessa lembrança, agora — depois da briga com Diana —, mas sempre entrarei no hotel de luxo, caminhando quase dobrado — como o dólmã — por um sono de puberdade excitada entre emoções de viagem, caminhadas, risos, solidão a dois, leituras compartilhadas (mesmo as adultas), cinemas de óculos escuros (“você ainda está com os óculos, mãe”), risos de novo, e passeios de mãos dadas por lugares que não possuíam qualquer prestígio reluzente de passado, endereços anônimos sem lugar nos roteiros dos museus e dos restaurantes caros que muitas vezes desprezávamos para fazer algum lanche de quiosque, não para economizar francos, mas para estar misturados, divertidos com os modos do turismo pedestre entre arcos do triunfo diurnos e espetáculos da suntuosidade noturna (ou do que me parecia isso), antes do sono, antes de confundir as imagens reais e as sonhadas na intimidade, como partes de um quadro — rasgado por uma lâmina — que mostrassem detalhes justapostos: o degrau de uma escada, o peito do pé branco marcado pelo sapato de salto alto, a maçaneta sólida da porta, a caneca de chocolate, as copas das árvores, uma banheira cheia, sais e absorventes prontos, meias, luzes, café da manhã e jantar num barco, marinas azuis e brancas, braços nus, a lua irreal surgindo sobre lâmpadas apagadas, a musical mão apertando uma liga sobre a longa perna dobrada, pressa e lentidão em ocasiões trocadas, aviões no horário, trens nunca atrasados, doces bávaros, estações de vidas entrevistas, revistas não-lidas, uma capa de Oscar, jornais para secar xampu derramado, tapetes com marca de cigarro, fumaça de trens, “é proibido fumar”, é permitido entrar, é permitido agora, enquanto estamos em viagem, depois não.

Oh, abril em Paris. “Dormir cedo, precisamos dormir cedo hoje”: aeroportos na madrugada, lanchonetes abertas, táxis de novo, estações confusas, mogno e dormentes de estrada de ferro, areia cinzenta, a luz acesa dos postes na manhã ainda enevoada, o carro do lixo silencioso como um coche fúnebre sem os cavalos dos quadros empoeirados, um prato de sopa quente de cebola (detestada), cavalos não sei onde, uma fonte branca, os bancos de ferro úmido das praças sob os primeiros pios dos pássaros invadindo as sombras quietas do quarto (“você já está acordado, cedo assim?”), a janela embaçada, a lua de novo pálida sobre isso e o seu colo, um convite irrecusável: “Vamos à Ópera? Ver e ouvir Madame Butterfly?”

E posso pensar, ainda, que não se trata de um sonho quando a gueixa de asas de borboleta se destaca do cenário pintado para me abraçar na madrugada. Não há mais perguntas nem respostas, mas a casa de repente silenciosa — como um parque abandonado.

Ela me tomou pela mão, mais uma vez cálida, e agora me conduz como uma ninfa madura, pisando o chão do corredor do fim do mundo, na volta do tempo que retorna com a promessa de veludo do abraço a se transformar em amplexo, mais tarde. Sei de tudo que será delicado e suave, remoto e franco como, no muro do antigo teatro de Volterra, o grafito das interdições levantadas quais as pernas da efígie de…

“Representa quem?”

“Representa a felicidade — enquanto durou — para Jocasta”, está escrito embaixo, um pouco ilegível e meio borrado pela indiferença da chuva.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho