A viagem de Brennand (3)

Francisco Brennand me olhou com olhos jovens (que conserva, e que se avivam, quando o assunto é pintura)
O ceramista e artista plástico Francisco Brennand
01/12/2012

[…]
Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida
com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

O poeta Carlos Pena Filho dedicou esse poema ao pintor Brennand ainda nos anos 1950, finalizando as estrofes com essa tal segunda saída (“amar o transitório”), que sempre me pareceu encontrada apenas e meramente para rimar com “provisório”.

Quanto à primeira, é impossível: ninguém “entra no acaso”, mas é o acaso que, pelo contrário, entra nas vidas e em muitas histórias, exatamente como foi por um inesperado (?) acaso que eu fiquei sabendo que Brennand havia sido visto, em 27 de setembro passado, no Museu Correr, em Veneza, mais uma vez diante do quadro Cortesãs, de Vittore Carpaccio, exposto, em armação especial, já quase na saída da pinacoteca. Ele confirmou, quando eu lhe disse que a informação viera de alguém que nem sabia quem era Carpaccio mas havia obtido a imagem — dele e de parte do quadro — com o Instagram da invasão final da privacidade, num mundo que se tornou menor do que uma caixa de fósforos apinhada de cabeças queimadas pelo fogo da curiosidade insensata:

Tive uma ânsia febril de mais uma vez contemplar esse quadro, pelo seu caráter enigmático e pelas inúmeras controvérsias que despertou através dos tempos. Sem dúvida, como observam alguns críticos, essa tela foi, numa época indeterminada, cortada do lado esquerdo. Em minha opinião, mais da metade do quadro (que deveria ser mais retangular no seu sentido horizontal) foi destruída por motivos óbvios: as duas Cortesãs, apesar do seu notório alheamento, estão de perfil e encaram com insistência o lado esquerdo da cena proibida (?). O que seria esta cena eu não posso adivinhar; o seu desaparecimento é que sempre me deixou justamente intrigado. Diga-se de passagem, o título do quadro foi “modernamente” modificado — num eufemismo intolerável — para Duas damas venezianas 

Detendo-me diante de uma placa cerâmica pendurada numa das paredes do atelier, julguei ver, de forma elíptica, talvez um eco daquelas cortesãs transformadas em “damas” por zelo italiano pequeno-burguês dorsenniano. Brennand refutou, entretanto, minha associação um tanto livre:

Não, de modo algum. Não há, nela, nenhum sinal de Carpaccio. Talvez haja alguma influência de Hans Baldung Grien, entre outros pintores alemães do século 16. A sensualidade mórbida de Grien, por exemplo, que sempre me perturbou. Diferentemente de Dürer, ele chega bem mais próximo do inferno, povoado de bruxas por vezes semidespidas e que se aproximam, em certas circunstâncias, das fronteiras da obscenidade.

Pensei que a sua viagem havia sido só para a Itália, mas Francisco balançou a cabeça, negativamente, e mencionou Paris:

Refiz, quase, o roteiro de 1949. Um périplo de museus que teria de começar pelo reencontro com O jovem desenhista, de Jean-Baptiste Chardin. [Fez um longo silêncio.] Um dos meus eleitos, o grande Chardin. Em espírito, matéria e composição, esse artista certamente influenciou Balthus, pintor que tanto me encanta. Em 1951, segurei, com as próprias mãos, duas pinturas de Balthus — expostas na Galeria Henriette Gómez — diretamente inspiradas da tela A jovem governanta, de Chardin…

Fez nova pausa, antes de continuar:

Também quis rever um dos mais belos nus femininos que conheço: Mulher com meias brancas, pintado por Gustave Courbet em 1861. O mestre atinge as partes pudendas com uma delicadeza intensa e inocente, quase angelical, sem, contudo, deixar de sugerir seus odores característicos “invocando maresia e mentes de salgadas luxúrias”. Ao mesmo tempo, está ali contida “a origem do mundo”, título utilizado pelo pintor para um outro nu de caráter realista e mesmo ginecológico, não fosse executado por Courbet. Segundo a visão, extremamente aguda, do pintor surrealista Giorgio de Chirico, “o sentido da realidade é sempre ligado a uma obra de arte. Quanto mais profunda, tanto mais o resultado será poético e romântico”. No começo dos anos 1940, o jovem pintor Balthus anunciou que o seu propósito estético era fazer “surrealismo d’après Courbet”.

Havia uma grande reprodução do quadro Banhistas em Asnières, de Seurat, ainda não colocada na parede, no ambiente do atelier, que continuava rescendendo a fumo de cachimbo (ou era impressão?), de mistura com madeira e tinta. Brennand acompanhou meu olhar, e explicou, sem que eu nada tivesse comentado:

Não havia reprodução disponível de Um domingo na grande Jatte, obra-prima da pintura universal. Tive de me contentar com uma reprodução do Banhistas, para permanecer contemplando — nessa insuficiente reprodução — um dos artistas mais enigmáticos do século 19, se é que assim podemos considerar Georges Seurat, pois a sua pintura, rigorosamente construída, permaneceu como uma das pilastras, junto com Paul Cézanne, de toda a arte moderna.

Brennand se levantou para apontar algumas partes da obra com a bengala:

Veja como parece construído com o rigor calculado (sem exagero) de um Piero della Francesca. Seurat chegou quase à loucura para conseguir demonstrar que algumas linhas, direcionadas a distintos pontos de uma tela, possuem irrefutáveis significados emocionais. Toda a parte expressionista de Munch é estruturada, igualmente, nesses princípios, como também o inesgotável sabor decorativo de Matisse. É claro que a linha a que me refiro nada tem a ver com o contorno. Henry Van de Velde, em Fórmulas de uma estética moderna, lembrava, a propósito, que a linha é uma força cujas atividades são semelhantes às de todas as forças elementares naturais…

“E ficou em Paris o resto do tempo?”

“Não.”

Francisco me olhou com olhos jovens (que conserva, e que se avivam, quando o assunto é pintura):

De Paris, embarquei para Zurique. A Fundação Bührle voltara a expor O jovem com o colete vermelho, de Paul Cézanne, furtado daquele espaço para ser talvez vendido no mercado mais negro de todos os mercados detestáveis da terra. Ninguém poderia vendê-lo, pelo menos à luz do dia, sem o risco de ser imediatamente preso… Embora eu mesmo confesse que iria atrás dele até o dia do Juízo Final. Nesse quadro está contida toda a história da pintura moderna e, ao mesmo tempo, nos ensina a rever a tradição com olhos percucientes. [Apontou no sentido da parede oposta.] Você sabe que eu mantenho aqui um retrato do Mestre de Aix-en-Provence, como um segundo pai.

Uma vez, discutimos a minha preferência por Madame Cèzanne en rouge, e o artista a aceitou como “mais uma obra-prima de Cézanne cuja solitária presença num museu já justificaria a fama de qualquer coleção de Veneza, Paris ou Zurique”.

Talvez houvesse uma cidade a mais naquele roteiro da ainda misteriosa viagem do Brennand, cuja grandeza hoje vulgarmente se confunde, na ligeireza dos jornais, com o nome de um rico colecionador de marca eclética que construiu um castelo no Recife do “Castelo dos camarões” e outras vulgaridades que tais.

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho