A viagem de Brennand (2)

Fernando Monteiro continua a revisitar suas memórias do pintor Francisco Brennand
O artista plástico Francisco Brennand
01/11/2012

Ninguém consegue se manter completamente sóbrio na descrição de uma obra-prima. Não há nenhum grande artista sem ferocidade marchetada no ato de pintar (tentar pintar, na verdade) a Verdade. O ato não pode ser o de um pulso fraco, que acaricie gatos pintados como gatos. Não conheço nenhum gênio maior da pintura que tenha pintado como uma mocinha desmaiada.
Jean Dorsenne — La Vie Sentimentale de Paul Gauguin

O escritório-atelier de Francisco Brenannd (meio escondido na extremidade de um dos salões da sua Oficina da Várzea) ficou fechado durante exatas três semanas, com a pequena placa de cerâmica — “PINTOR” — na porta cerrada.

A fábrica continuou funcionando. Ninguém falava no assunto, e, quando o artista reapareceu, foi como se nada houvesse ocorrido: ele simplesmente retomou a rotina, entretanto sem atender os telefonemas dos amigos que o procuraram, este articulista entre eles. Da secretária Cristiana, ouvi esforçadas desculpas sobre Francisco estar ainda “cansado da viagem” e outras explicações improvisadas — não sendo elas mais do que um sinal de que permanecia qualquer coisa ainda não esclarecida sobre o sumiço de FB, pelos vinte e um dias durante os quais o livro de Dorsenne sobre a “vida sentimental de Paul Gauguin” me pareceu (e ainda parece, enquanto escrevo neste começo de outubro) uma espécie de enigma.

Releio as minhas transcrições, num arquivo intitulado “DORSENNE/supostos inéditos de Gauguin”:

Não sabia se poderia retornar e viver, mais uma vez, com as pessoas com as quais havia se relacionado. O que lhe dizer? Não iria ter paciência com perguntas sobre as ilhas, a malícia entrevista num sorriso do qual pendesse o cachimbo chupado por algum cínico, em deboche […]

Lembrava-se da atenuada luz européia como quem se lembra de preguiçosos dias de doença, numa cama confortável, os jornais do dia — e o interesse por notícias que, nas ilhas, pareciam mais remotas do que mar (que sobrevive a tudo).

….

A forma nova. Como falar da forma nova, para aqueles antigos amigos apascentados por apatia e absinto, pintando modelos cansadas, temas enquadrados nos formatos? O novo, o realmente novo, isso seria um escândalo maior do que o Salão, agora que o velho começava a passar por “novo”. Esse se tornara uma forma de anacronismo — renovado mesmo nas manhãs de um mundo condenado ao desastre, mas ainda apreciável sob a luz numa praia de cavalos, num tanque de jacintos vencidos onde um pato desajeitado […]

A misteriosa rede do tempo. O espaço que muitos pintores haviam investigado tão insuficientemente, como se os que eles representavam fosse a realidade, quando nada é o que julgamos […]

Recentemente, passara um dia inteiro esquecido do seu próprio nome (o nome do apóstolo que inventara uma religião). Sem saber quem era, pintara nas paredes frágeis da cabana, tão rápida e firmemente, sabendo que era tudo para se perder…

O livro que se bifurca?
Quando, afinal, citei essas partes dos documents inédits (avec 8 hors-texte) que me haviam impressionado favoravelmente no livro de Dorsenne, em nova mensagem para Brennand, o pintor resolveu sair do seu silêncio com a mais inesperada das afirmações: “Não li isso em parte alguma no livro dele, prezado Fernando Monteiro. Jean Dorsenne é, para mim, um rematado idiota ou um pequeno escriba que talvez tenha atendido encomenda da família do Mestre, eventualmente interessada em ‘recompor’ a sua imagem (o que seria idéia absurda, por sobre inútil). Você deve ter cometido algum tipo de engano, ao citar tais ‘inédits’. Serão de outro livro? Quanto à minha viagem, não pretendo abordá-la tão cedo, exceto para dizer-lhe que ela nada teve a ver com a admirável — embora em parte infeliz — vida do Pintor Paul Gauguin sob a ótica bem-pensante de JD.”.

Mas como eu me enganaria?, perguntei, na resposta imediata. O livrinho de 157 páginas — emprestado pelo próprio artista — estava, ainda, ao alcance da minha mão… Bem, foi então que me lembrei de que já havia devolvido La vie sentimentale de Paul Gauguin para o endereço da Oficina Cerâmica FB, numa das agências dos Correios que permaneceram funcionando durante a mais recente greve dos funcionários.

Mais que depressa, enviei uma nova mensagem solicitando que Brennand voltasse a me emprestar o livro, e, muito educadamente (como é do seu feitio, na rígida educação sob as vistas de padres alemães nos quais o espírito severo de Ricardo Lacerda de Almeida Brennand tinha confiança, em se tratando da educação dos filhos), Francisco explicou que ainda aguardava o retorno do volume por ele “aberto — detalhou — com uma espátula de marfim que pertenceu à minha mãe, ainda solteira, pois você o trouxe do Rio com as páginas ainda geminadas, apesar de ser um exemplar tão velho quanto eu. Confesso que estava à procura, talvez, de encontrar aquilo que jamais foi revelado, desde que se tratava da vida sentimental de Gauguin, que dizia: Se você quer ser feliz, seja misterioso”…

Datada do dia 5 de outubro passado, a mensagem acrescentava: “Não se fazia necessário senão alguns poucos acréscimos do muito que ele havia dito e insinuado sobre todas as formas conhecidas do amor, mas veja o que eu li, verdadeiramente pasmo diante de páginas vazadas nestes termos (aqui anotados no meu ‘Diário’, como mais um insulto à memória do Selvagem): Ainsi se brisa le seul lien qui retenait encore Gauguin à l’Europe. Le rêve d’um retour définitif au foyer conjugal, qu’il avait si longuement, si chèrement caressé durant toute as vie, s’écroulait. A quoi bon lutter?

Mais do que honra (PS)
Por lapso imperdoável, eu não postara o livro de Jean Dorsenne como correspondência registrada, ao enviá-lo de volta para Brennand. O fato de não tê-lo recebido, tantos dias depois da greve postal, apontava para o pior deslize, por um descuido, uma distração dos quais depois nos arrependemos porque irá parecer outra coisa, algo intencional como, deliberadamente, não devolver um livro. Seja como for, a obra publicada em 1927 já não estava comigo e, por outro lado, não chegara ao endereço afundado no que restava da Mata Atlântica na Várzea, cercando a Oficina Cerâmica FB de um cenário que teria agradado, com certeza, ao capitão Jozef Teodor Konrad Nalecz Korzeniowski, acostumado com as selvas da Malásia nas quais “Marlow” havia contemplado Jim “na nuvem do seu mistério”: uma figura de branco olhando para o nada ou para alguma visão só dele, alguma ilusão mais da sua mente do que das suas retinas de jovem um dia traído por acreditar que o Cosmos pudesse manter uma noite de paz sobre o oceano sem prega…

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho