A intrusa na sombra

Fragmento do romance inédito que encerra a Trilogia Graumann
01/06/2008

O que eu penso é muito claro: NÃO SE DEVIA PUBLICAR UM ORIGINAL QUE O AUTOR NÃO LIBEROU, DE MODO MUITO CLARO E EXPLÍCITO, PARA A PUBLICAÇÃO, sim.

O caso reprovável mais recente é o da publicação, nos Estados Unidos, de Edgar Allan Poe & the juke-box: Uncollected poems, drafts and fragments, de Alice Quinn, a respeitada editora de poesia do “New Yorker”. Desde que o livro foi lançado por Farrar, Straus & Giroux, com cerca de 120 trechos de textos não publicados por Elizabeth Bishop, que corre solta a discussão entre críticos, leitores da poeta norte-americana — que publicou apenas 90 poemas em vida — e editores defendendo a publicação dos manuscritos e fragmentos (“representam uma visão importante sobre o processo criativo de Bishop, além de saciar a sede por um pouco mais da sua magra produção”, etc.), enquanto outros consideram que a Bishop, famosa pelo rigor na composição de poemas (que ela queria não menos que perfeitos, recusando-se a publicá-los antes de dá-los por plenamente acabados), jamais permitiria a publicação de tais rascunhos, como enfatizou Helen Vendler: “Se Bishop tivesse sido consultada sobre a publicação, 25 anos após a sua morte, de poemas rejeitados, além de alguns rascunhos e fragmentos, ela teria respondido, acredito, um horrorizado não”.

Segundo Vendler, “poetas contemporâneos, temendo uma Alice Quinn em seus futuros, estão queimando todo seu material ainda sem o acabamento final” — conforme foi preocupação até do nosso pedestre Fernando Sabino, nos seus últimos meses de solidão, na rua Canning, em luta contra o câncer. Após a morte do cronista, no seu testamento se revelou isto: lá se encontra a proibição da publicação de “inéditos” de qualquer tipo, incluída pelo autor de Encontro marcado e não de noventa poemas em busca da perfeição (com ou sem a ajuda de Marianne Moore). PS: Há uma carta — muito estranha — na qual Marianne reclama, a um terceiro escritor, da amiga e, digamos, discípula Elizabeth Bishop. Eu li essa carta no original, pois ela foi suprimida da publicação da correspondência da poeta que, juntamente com Valéry, teve a influência mais forte sobre o jovem João Cabral de Melo Neto…

Dito o quê, passo a afirmar não o contrário — conforme sei que novos intrigantes alegarão, babando sobre este inédito publicado até com açodamento nos EUA, concordo — porém a minha crença final de que [este trecho foi suprimido por desejo do Espólio Graumann]… nas “camadas superpostas” do livro entendido como um trabalho do tipo experimental em voga na Ledig de então, aquele texto metaliterário na medida em que se auto-critica com ironia e um quê de cínica ternura pelo que Donald Lederer chama de “o artifício da literatura” (pois tudo no romance inacabado remeteria para “o olhar sobre a máquina de narrar avariada”, segundo o crítico americano).

Concordo com ele. Também acredito que Alba de Céspedes colaborou pouquíssimo com este volume ou com o Ferragante — do qual só se conhecem três capítulos ruins. E a Alba que eu conheci não teria condições de “colaborar” (no caso deste livro)com mais do que a “sugestão” do título. Uma senhora americana que conheceu Alba e Lúcio — ela foi socorrida por este num acidente em frente da Ledig House — revelou-se uma boa fonte de informações a respeito do período em que Graumann escreveu A intrusa na sombra “em parte na instituição nova-iorquina” (onde não foi coincidência que ele acabasse se sentindo justamente como um “intruso”, naquele meio confortavelmente medíocre, de escritores seguindo cartilhas como carneiros aprendendo a dar as marradas mais ou menos “certas”). Mais do que isso: o tempo todo da minha visita — desde que ela abriu a porta, ajeitando uma mecha de cabelo grisalho com certa vaidade ainda coquete, em face da visita masculina? — pensei no quanto se parecia (descontados os anos) com a leitora do “anel exterior” que Paulo de Tarso Correia de Melo aponta, no seu ensaio sobre O mantenedor de visibilidades.

À vista do que ela me disse — sem autorizar a divulgação do seu nome —, é possível deduzir que não terminou muito bem a “amizade” entre ambos (Lúcio e Alba, bem entendido). Agora, recentemente, ficou-se sabendo que eles não se conheceram em Hudson, mas em Roma, dez anos antes, quando a escritora feminista trabalhava na redação de Epoca. Parece justo supor que Alba teria se apaixonado, então, pelo jovem brasileiro na sua primeira temporada na Europa, entre ruas de pedras redondas e lambretas dos jovens subproletários urbanos de Acattone.Outros insinuam que Alba era lésbica e não teria interesse em brasileiro jovem ou velho, antes e depois de conhecer Lúcio numa época febril, quando tudo ainda parecia ir acontecer no mundo. A presença do passado recente intensificava as coisas — e havia um futuro jorrando da pressa e do resto de esperança da libertação de Paris, ainda, das italianas de vestidos de casa atraídas para a rua, a fim de saudar soldados cansados e sujos. Descia-se das colinas, na madrugada, com o gosto de melancias geladas no meio da Mattinata arriscada por tenores improvisados. O medo dos alemães apenas começara a passar, para alguns, enquanto outros seguravam velhos rifles roubados dos salões de casas senhoriais arrombadas com os dedos sem as unhas arrancadas pelos broches, enquanto muitos estavam mortos havia dois, havia três, havia quatro longos anos de refúgios trocados nas vilas e nas montanhas, trocando o dia pela noite e a madrugada de sussurros e lanternas, “de novo no meio das desgraças da Itália” (como Alba escreve, em Albor). O sofrimento entorpece, como o frio do metal, as notícias de morte e a fome continuada nos lugarejos distantes das montanhas fartas, de aldeões entesourando salames e conservas, vinho e má consciência que não era propriamente “má”, porque o campo sempre havia sofrido debaixo do tacão do patrão e das tropas, nacionais ou estrangeiras. Já pode se ver uma jovem de cabelo preto amarrado firmemente, atravessando uma praça cheia do som de caminhões, depois da passagem pesada e destruidora dos tanques? Pois é Alba, e, se não for Alba, é outra como ela, fechada nas perdas, vestindo roupas talvez um número a mais ou a menos, embora isso tenha sido mais de dez anos da época da redação de Epoca, quando conhecera Graumann numa outra Roma.

Há um conto “romano” de Lúcio sobre a relação de um estudante brasiliano com uma jornalista italiana, “filha de um diplomata cubano”. Tudo indica que o relato é autobiográfico (o título é Fugue,e não Funghi — conforme já vi citado), embora a “jornalista” venha a morrer atropelada, ao se atirar na frente do pontual carro que o autor aluga com a moeda do convencionalismo, para pôr fim à angústia da perda do amante mais jovem, etc. Alba talvez não fosse capaz de tais arroubos e, de qualquer modo, morreu em casa, de doenças da idade avançada. A narrativa curta não faz parte dos Contos reunidos, escolhidos pelo próprio Graumann. Contos à parte, Lúcio e a “escritora feminista” — conforme é sempre rotulada — iriam se rever na Ledig, uns dez anos depois (quando se mostrava mais nítida, talvez, a diferença de idades), e parece que houve, ali, um renascer das esperanças da jornalista-escritora, até tudo terminar apenas alguns meses depois do acidente com a vizinha “daltônica” — que possui um pequeno arquivo LG, no seu bem montado estúdio com vista para um parque onde há esquilos que comem ração das mãos dos passantes (todos se conhecem, todos são vizinhos, em Hudson, e todos amam os animais — que nunca apresentaram sintomas de qualquer doença gástrica).

É uma tarde encantadora, os pequenos animais, tímidos, estão em paz antes de chegarem ao pé da cerca (onde paramos, a fim de alimentar os bichos)… A conversa entrecortada dos nomes que ela havia destinado aos esquilos, ali protegida por lentes escuras — embora eu pudesse ver que lhe agradara ver que também eu não nutria simpatia pela pessoa e pela obra de Alba de Céspedes, pois os óculos se voltaram, com reflexos do sol frio, para a surpresa daquela confissão de antipatia gratuita: “não gostei dos livros, nem da autora”.

“Nunca li nenhum, e acho que nunca vou ler” — ela fez vibrar a declaração gelada, depois olhou na direção da Ledig (a nova): “Sinto falta do prédio velho. Aconteceu tanta coisa ali…”

E, então, passou um dado que faz supor que Lúcio Graumann se encontrava já doente, nos EUA. Ele viveu, eu sei, mais vinte anos, ainda, até vir a falecer em Pernambuco, vítima da “doença do sangue” — para usar os termos lacônicos do comunicado oficial da morte que aquela estranha decifrou perfeitamente. Só não sabia que o seu “amigo” sequer chegara a receber o prêmio, na capital sueca (que ela trocava por Helsinque). Vivia fora do mundo, uma senhora ainda bonita, num bosque público, com os esquilos também públicos e bem alimentados por rações compradas pelos moradores de Hudson, NY. O Nobel é menos Nobel ali, na verdade ela só ficara sabendo que Graumann ganhara “um prêmio muito importante”, havia morrido logo depois e, bem, a vida prosseguia — como sempre.

Quando eu toquei a campanhia do seu apartamento, e me identifiquei prontamente, falei de Lúcio Graumann, disse ao que viera, pedi para entrar (fazia frio), ela tinha os olhos de uma cega que custasse a lembrar das visões perdidas na adolescência. Esse tema — o da adolescência — me leva a dizer algo em defesa de Lúcio, no seu relacionamento com a “daltônica”. Quando ele a conheceu, ela não era nenhuma garota balthusiana de pernas distraidamente pousadas sobre o braço de algum sofá necessitando de conserto, mas uma jovem freqüentadora de salas de música, leitora dos livros recomendados pela crítica e pintora nas horas vagas. Aqui, não pude imaginar nem bonequinha de seda com o sexo louro se anunciando sob o tecido grosso da calcinha de lã incapaz de emocionar um Capote. Fazia frio, aliás, mas não tanto assim, para o caso da lã íntima (eu sei que eu tomara duas doses a mais), e ela não reclamava de frio, naquela hora e na recordação de si mesma, caída, desacordada, debaixo do sinal com o aviso para dirigir devagar, por causa dos esquilos e das crianças; de maneira que foi levada para dentro da Ledig, apertada contra as cores confundidas da camisa de Lúcio (o que sua memória para cores registrara bem nítido).

“Eu escrevi sobre ele, não quero publicar nada; apenas escrevi” — C. repetiu, quase nervosa, colocando os óculos por algum tique ou hábito, antes do esforço para sorrir e atenuar o tom enfático da frase. Seria, pleno, talvez o mesmo sorriso da moça acordando, trinta anos atrás, com o aroma do café forte que Graumann sabia fazer como um turco.

— Nem tudo é para virar literatura.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho