Ao entrar numa das mega-livrarias reluzentes de produtos da chamada “indústria cultural” — entre os quais se enfileiram os livros, esses sobreviventes de um já remoto mundo —, o leitor médio brasileiro com certeza estará em busca, basicamente, de quatro tipos de obras:
1) Os best-sellers, isto é, a literatura de entretenimento criadora de produtos para serem consumidos como se consomem litros de coca-cola;
2) As obras factuais, referentes a temas buscados no mundo tangível e real (exemplos: o livro de Drauzio Varella sobre Carandiru, lido junto com novo um título prometendo “sensacionais revelações” sobre o assassinato do presidente Kennedy, etc.);
3) Os livros de auto-ajuda — que não ajudam ninguém a respeito de nada, quer dizer, ajudam [sim] a engordar o faturamento das suas editoras e até dos seus autores; e, em QUARTO e último lugar, o leitor estará procurando, por fim, LITERATURA propriamente dita.
Não adianta vir pra cima de mim tentando dizer que, ora, é tudo literatura.
Sabemos que não é. Por exemplo: Lya Luft sabe, perfeitamente, que o que ela deu para escrever, nos últimos anos, não é literatura de modo algum, e não adianta ela até ameaçar (conforme ameaçou, num programa televisivo de entrevistas) que “se retiraria”, etc., caso os entrevistadores continuassem a chamar de auto-ajuda a auto-ajuda da lavra recente da senhora Luft, com a qual Lya ajuda o editor Sérgio Machado a ajudar a conta bancária própria com os novos títulos da “escritora” gaúcha auto-ajuditícia.
Os livros factuais que estão aí, na maioria praticamente absoluta: não adianta enrolar, também neste “segmento”. Truman Capote escreveu um grande livro — A sangue frio — com base na realidade da vida de dois assassinos condenados à morte, mas esse conteúdo o talentoso norte-americano transtornou e transformou, fez virar literatura, como novo tipo de “reportagem” quase ficcionalmente tratada, etc., etc. O futuro monturo de Carandiru mornamente recordado pelo médico Varella tem alguns momentos de interesse, sim, mas o capote de Capote era um número maior, e isso serve de comentário aos outros Carandirus plantados nas vitrines, incluindo a “literatura étnica” que já foi comentada na primeira parte desta minha arenga sobre o entulho do entulho.
Eu não nasci ontem, lindezas. Não venham com conversa para boi dormir no meu colo. As livrarias estão oferecendo merda para ser consumida como aqueles jovens do filme de Pasolini (Salò) consomem o cocô que a indigna República lhes oferece sem papel de presente (pelo menos as reluzentes livrarias providenciam ao menos isso!), e ninguém está a reclamar, ora-ora!…
Esse Fernando Monteiro é um ressentido, um recalcado, um frustrado, um escritor provavelmente medíocre (“quem é? Nunca ouvi falar nele!”) que inveja o sucesso alheio, os milhares de exemplares vendidos sobre perdas & ganhos, Cabul, Carandiru, Curaçao, Curucucul, o escambau.
Cegueira
Aliás, o escambau é justamente o maior sucesso de todos os tempos da literatura da semana passada tupiniquim. Diante do deus Escambau, eu me confesso (por que não?) medíocre, frustrado, recalcado, ressentido, o escambalíssimo. E este Rascunho é um jornal metido a besta, onde escrevem os recalcados, frustrados e medíocres como este locutor que vos fala. Neste pasquim desprezível, nós — os maus — ocasionalmente nos dedicamos (como agora) ao mister de atacar, espumando pelos cantos de lábios roxos, a atual literatura coprológica embalada em papel celofane e correspondentemente recebida pelo vazio acrítico que también recepciona todos os lindos e maravilhosos filmes blindados pela cegueira que eles “denunciam”, conforme denunciou, por sua vez, o articulista José Carlos Oliveira Jr., na revista Contracampo (www.contratempo.com.br). Leiam com atenção:
A crítica (….) aceitou o jogo, caiu na dança. Sempre achei que a crítica seria a última trincheira, a última barricada antes do triunfo publicitário. Mas não: de uns tempos pra cá ela parou de se revoltar contra a publicidade. Após deixar de se incomodar, começou a achar que a publicidade não só não era tão má quanto se pensava, como ainda trazia coisas boas. E agora veio o pior: nem sabe mais distinguir o que é e o que não é publicidade. Perdeu o olhar. Responde de modo favorável, ou complacente, ou negligente. No caso da negligência, é assustador: simplesmente não consegue mais perceber o mundo se trocando por signo publicitário. Olha para um papel de parede e vê o mundo. E escreve sobre o papel de parede como se falasse do mundo. A publicidade e suas práticas mais hediondas se naturalizaram no cinema (brasileiro, mas não só). Nessa visão de cinema, o “criar” não é mais identificado a um trabalho dinâmico com a matéria; é um retrocesso simbólico, onde a idéia passeia livre, leve e solta — a idéia sobrevive à perda de vínculo com o pensamento e com o olhar. É o mar sendo substituído por “um grande azul de síntese”; o ator servindo de portfólio para o preparador de elenco. O filme sendo uma embalagem para uma idéia de filme. E essa idéia é sempre rasa, sempre retrógrada, não tem como ser de outro jeito.
A mise en scène como forma de inteligência, como linguagem unificada da percepção sensível e do conhecimento objetivo do mundo, essa mise en scène está em baixa por aqui. Analogamente, na crítica, onde um mínimo de atrito se deveria produzir, encontra-se a complacência, o consensualismo, o olhar não-provocativo, confortado pelas imagens, consolado pelo fato de que filmes ainda existem e estes se levam a sério o suficiente para merecer um texto dedicado. O olhar que não cobra, não provoca, não afronta os filmes mesmo em face de sua mediocridade, esse olhar parece dizer: façam qualquer filme, bom ou ruim, consistente ou leviano, fascista ou humanista, mas me dêem o que escrever.
A crítica brasileira não ligou muito para o fato de que em Ensaio sobre a cegueira — cujas imagens estouradas constituem um efeito visual profundamente óbvio enquanto transposição da significação para a forma — faltou a Meirelles a desconfiança do bom artista, que hesita diante do caminho mais fácil (não confundir com o mais simples) e termina por rejeitá-lo, e sobrou-lhe a convicção do bom publicitário, que se regozija de suas idéias paquidérmicas, de seu modo de significação agressivo, descarado, que renuncia à criatividade sem crise de consciência, já que amparado pelo bom funcionamento das imagens. Os filmes, hoje em dia, precisam acima de tudo funcionar. O verbo invadiu os sets de filmagem e agora também a crítica: atrás da câmera ou na frente da tela, todos procuram a imagem que funciona. Eis por que a crítica não se incomodou com Blindness e no geral aprovou, pois reconheceu ali um bom discurso-através-de-imagens, uma boa transcrição visual do texto. Reconheceu um filme que funciona, e isso, cada vez mais, é o que lhe basta. Miséria da crítica.
Fim da longa citação. Senhores & Senhoras: a literatura, igualmente, precisa apenas funcionar na Cultura.
Miséria da literatura — digo eu, ecoando o bisturi de Oliveira sobre as cabeças cortadas dos filmes. Do mesmo modo acéfalos de significado significativo, os livros se oferecem nas vitrines, nas montras, nas girândolas (pagas?) e nas estantes das mega-livrarias, principalmente. E os cegos, em rebanho, passam pelos caixas, obedientes, levando a cega Lya Luft, o gago Paulo Coelho, o surdo — mas não mudo — livreiro das Cabulands e outros, para dentro da alma esvaziada pelas leituras “impostas” pelo conglomerado publicitário massivo das editoras, assim orientadas (em lúcida análise de Francisco Lopes):
Todo escritor experimentado sabe que o refinamento estético é pouco democrático, que implica em não adular esse leitor comum, em avançar no experimento, na dificuldade, na reinvenção da linguagem. Todo escritor que refina seu instrumento sabe que está progressivamente se afastando da esfera popular. Mas, nesta seara, sob o clichê das “estórias bem contadas” que jamais deixou de ser invocado e aceito amplamente, há formas civilizadas de entretenimento literário, como os romances policiais de P. D. James e outros. Pode-se, aliás, saltar dela para patamares mais elevados numa evolução natural do gosto por ler. Essa mediania não precisa ser vilanizada por autores mais arriscados que, desesperados por não serem aceitos, ressentidos, tratam de enfiar livros medianos ou apenas bons e lixo massificante num mesmo saco.
O que incomoda, hoje em dia, a quem escreve com a ambição de ir mais fundo à alma humana, não fazendo concessões demasiadas às soluções demagógicas, não é a mediania cultural bem-intencionada. É sentir-se um proscrito, um amaldiçoado, como se a liberdade intelectual, o gosto pela imaginação à solta, pela invenção estética, fossem coisas antipáticas e dignas de linchamento — muita gente fica mortalmente ofendida ao notar que está sendo levada a refletir e a passar por coisas ambíguas e inconcludentes, ao abrir um livro. O mercado é de fato liberal, pois admite que nele entre toda espécie de produto, mas joga para os porões da invisibilidade tudo que não seja tônico, utilitário, humorístico, escapista, fácil de vender.
O leitor comum não quer se sentir ameaçado pela infelicidade de alguns autores que lidam com seus abismos individuais, ainda que engenhosamente imaginativos, de maneira alguma. Mais e mais é adulado, tutelado, e não terá nunca a sua burrice questionada, para não sofrer abalos na auto-estima (e a auto-estima de um obtuso com dinheiro no bolso vale muito mais que a qualidade superior e óbvia de um pobre diabo culto sem recurso algum — George Orwell já havia notado isso com muita precisão em seu “Mantenha o sistema”). O leitor comum é, hoje em dia, contemplado com ofertas sempre mais e mais eufóricas e pode desprezar com tranqüilidade os produtos intelectuais que o obrigarão a pensar ou a, no mínimo, duvidar do que pensa, sente e vê.
Essa euforia, contrabandeada de outras formas de entretenimento (especialmente a televisão) parecia menos insidiosa e tirânica em anos recuados, talvez por a indústria cultural ser ainda menos pesada e tentacular no país naqueles tempos: ninguém que dissesse, repetindo Torquato Neto, que era preciso “desafinar o coro dos contentes”, no dever de incomodar e causar inquietação com que toda arte dita mais séria se investiu no século 20, parecia assim tão deslocado lá pelos anos 70 e parte dos 80. Hoje, os que dizem a mesma coisa, dizem-na para seus pares e sabem que serão ouvidos só entre estes. O público simplesmente não compreende uma recusa obstinada ao sucesso, um desejo de refletir sobre o mundo e não de aceitá-lo pelo que é — uma injustiça atrás da outra — e desfrutar dele o máximo possível.
A seriedade do escritor, que tenta ser aceito escrevendo de uma maneira abertamente impopular, parece imperdoável. Um número maior de gente com escolaridade não significou, de modo algum, um crescimento dos letrados. O que fez sim foi incrementar os consumidores de televisão, cada vez mais vorazes no desejo de uma vida mais e mais superficial, sem interrogações. A maquininha produz euforia ininterrupta, irrealidade constante a um preço mínimo, e para quê se preocupar com as questões sisudas que alguns livros oferecem se elas poderão afetar as ilusões nocivamente, paralisar as esperanças, a cegueira diligente? A sofisticação parece ameaçadora. É ameaçadora, inclusive e talvez principalmente, para os donos das redes, que não vão de maneira alguma se dar ao trabalho de oferecer refinamento, podendo faturar com o lixo que eles sabem ter retorno certo e, intimamente, é de lixo mesmo que seu gosto particular é feito, ao que tudo indica.
O impasse trágico que isso produz, para quem quer escrever a sério, é muito menos analisado do que deveria. Os desdobramentos vão ser mais e mais graves. Mesmo os livros destinados ao medianamente culto ficarão cada vez menos literários. Braço da indústria de entretenimento sem apelo tão maciçamente sedutor, o mercado editorial cederá cada vez mais a um imperativo de irreflexão provindo de gente que lê muito mal e não deseja se emendar de modo algum. Tristeza e sombras, senso trágico da vida ou simplesmente consciência da morte, cairão nas zonas de tabu cultural com mais e mais intensidade. Só se aceitará o que for eufórico ou totalmente digerível.
É debaixo dessa euforia — por vezes engrossada por algum membro da fileira dos escritores refinados que, ressentido demais, bandeou-se para a facilidade — que nos movemos hoje em dia, e que ninguém se iluda com a penetração dos livros mais sentidos e mais sérios: foram lidos apenas pelos poucos já capazes de acolhê-los. Legião que, ao em vez de se ampliar, só tem feito diminuir.
Para concluir com voz e pescoço meus (e não dos outros): há trinta, quarenta anos, quando, entre as vinte e as trinta primaveras, eu entrava em livrarias que ainda não eram “mega”, não me movia a busca de best-sellers, nem da realidade mal devolvida em forma de livro ou a falsa “ajuda” autocolante, etc.: buscávamos — a minha geração e eu — encontrar a literatura, ou aquele livro que ali se encontrava, quem sabe, precisamente à nossa espera (como diz W. H. Auden), misterioso e único, e talvez capaz de nos salvar e também redimir o mundo.
Hoje, infelizmente não é mais assim — e vai de mal a pior aquilo que a maioria procura, ao entrar nas livrarias reluzentes como catarro em parede. Para encontrar a Literatura (ainda!), a opção seria ir procurar uma das bibliotecas que o Brasil contabiliza para cada 33 mil habitantes, embora 90% das 5.796 bibliotecas públicas registradas “como nunca antes (?) neste país” não tenham acervo adequado, segundo o presidente do Conselho Nacional de Biblioteconomia.