Veios

Conto inédito de Wilker Sousa
Ilustração: Fabio Abreu
01/03/2022

Se Pirulito desandar a latir, não será repreendido por perturbar os vizinhos. Quem sabe os latidos se sobreponham ao ronco de motosserra, já que os vidros da sacada e da porta da sala foram inócuos em contê-lo. O vira-lata, porém, anda amuado, dentro de um silêncio imposto sem ordens. Aumentar o volume da tevê seria opção, mas há dias Reinier deixou de assistir ao noticiário. A esperança tardou. Ligar o CD-player definitivamente não convém. O único som da casa vem da cafeteira expresso de cujo cachimbo caem dois fios fumegantes, mas apenas um deles encontra a xícara, posicionada, como de costume, à direita. O outro — que também poderia alimentar essa xícara, se centralizada, ou uma segunda, se agora à esquerda — cai direto no depósito de resíduos onde se perde em meio à fria poça esverdeada. Em direção ao centro, o giro ágil com a colher desenha um espiral acastanhado na espuma do café. Para pegar a última cream cracker, Reinier bate com indicador no fundo do pacote e ela cai partida ao meio. Ele junta as metades sobre a toalha, esmera-se para dissimular a fissura com os cacos espalhados. Detém-se na imagem por alguns segundos, suspende cuidadoso as metades unidas e as leva à boca.

É, é outro morticínio. Três não bastaram. Quantas mais estão condenadas? Pela brevidade dos roncos vários, ainda devem estar ceifando os galhos da vítima da vez. Aquele derradeiro ronco potente e prolongado — aprendeu a contragosto — é questão de hora, se muito. Reinier engole o café, veste aquela jaqueta azul de tactel sobre o moletom puído com que dormiu, põe a máscara, pega a coleira de Pirulito que, súbito, se põe de pé e inclina levemente a cabeça; é o segundo passeio em dois dias.

Ligar ontem para os órgãos competentes foi inútil. Gabinetes, secretarias, assembleias estão às moscas, mas bem que os sites oficiais poderiam informar algum canal alternativo para que o munícipe seja ouvido. Moradores, por sua vez, não podem organizar protestos na rua. É o cenário ideal para passar a boiada. Restou descer dois lances e bater à porta da vizinha, que, como previsto, o saudou sem perguntar se tudo estava bem. Não, não precisava de nada, quer dizer, só queria dividir com ela, tão afeita a plantas, a impotência diante de mais mortes evitáveis. Ela esboça um sorriso discreto de compaixão. Quando querem, seu Reinier, não tem jeito. Sem contato forte na prefeitura ou barulho da imprensa, tudo vem abaixo. Um dia, isso antes de vocês se mudarem pra cá, mesmo a gente ligando pra meio mundo, derrubaram um pinheiro lindo aqui em frente, com ninho de pássaro e tudo. Talvez a prefeitura substitua essas uvas japonesas, mas por essas árvores mirradinhas de agora. No máximo, por um manacá.

Mas ouvir hoje, de novo, o ronco assassino não só reacendeu como extremou nele a revolta, pois agora desacompanhada da razoabilidade que o conteve de voltar à rua após o silêncio das autoridades. Ao menos contra esta morte iminente cismou ser capaz de algo, portanto na pressa com que, na companhia do cão, vence as escadas do terceiro ao térreo, além de aflição, há um viço cuja motivação quiçá ingênua não o torna desimportante, dado o espanto em Reinier se redescobrir útil. Abraçar a árvore, amarrar nela a correia da coleira de Pirulito, despautérios espalhafatosos estão descartados. Confia, quer confiar, em sua velha habilidade de diálogo, em levar os funcionários a não se sentar no argumento fácil de cumprimento de ordens. Eichmann também alegou isso. Bom, talvez essa comparação não convenha, pondera, mas, na condição de psicólogo aposentado, há de encontrar exemplos palpáveis para mobilizar neles algo de humano sob os uniformes verdes.

Quando resolveu levar Pirulito para dar uma volta ontem, Reinier estacou diante dos cortes severos na primeira árvore, ao que foi tomado por aquela iminência doída que lhe consumira semanas a fio. A placa PODA, porém, afixada nela e em outras duas árvores, encarregou-se de restabelecer o torpor atual. Após a volta no quarteirão, contudo, só encontrou duas de pé. PODA. Em tempos de tantos eufemismos para matança, devia ter desconfiado. Para não passar ao lado dos restos da primeira, ainda que porventura derrubada por estar roída por cupins, Reinier puxou brusco o vira-lata e atravessou a avenida. Vendo-o horrorizado, uma senhora, da garagem, tentou tranquilizá-lo. A poda era porque as raízes agressivas estavam trincando o quintal do sobradão. No fim, graças a Deus, sabe?, pois as frutinhas imundavam a calçada, sem contar que árvore desse tamanho é prato cheio pra assalto. Logo veio à cabeça de Reinier a imagem — possivelmente em uma das revistas de decoração ainda empilhadas na prateleira do criado mudo à direita da cama de casal — de uma casa construída ao redor de uma árvore. Não havia outra solução? Resolveu agir. Como os funcionários da prefeitura estavam na pausa do almoço, o melhor era contatar a secretaria municipal do meio ambiente, embora custasse o tempo de voltar para casa e encontrar o celular, preterido desde que cessaram os boletins médicos. O aparelho só tem servido para responder com atraso e laconismo as mensagens do genro. A filha não tem falado com ele. Quase uma hora depois, embora o poder público só se fizesse ouvir pela motosserra, Reinier, sob influência do relato da vizinha, não cogitou voltar para demover os funcionários.

Ouvido da rua, o ronco é, na verdade, um coro de motosserras. A morte, agora, deve ocupá-los todos. Difícil, portanto, acreditar que mudas já tenham sido plantadas, difícil acreditar que a tarefa também caiba a esses homens. Após cruzar a primeira esquina, já vê a calçada nefasta. A vítima é outra uva japonesa, está imediatamente após aquelas três. Felizmente ainda está em tempo, pois sequer lhe cortaram os braços. Estranho, porém, que, apesar do ronco intenso dos motores, ninguém trabalha nela. O ronco vem do chão, ali onde mataram as outras.

Ao chegar à calçada, Reinier encontra um pequeno grupo de moradores. Indignados como ele? Logo percebe estarem ali não para dissuadir os funcionários, mas se beneficiar de seus préstimos. São dois homens empunhando motosserra. Estão quase agachados e, a julgar pelo suor demasiado em plena manhã de outono, não é fácil atenderem aos pedidos, ainda assim o fazem de bom grado. Fatiam o que sobrou de uma das vítimas de ontem — aquela primeira? — e presenteiam moradores com rodelas de tronco. Há quem consiga mais de uma. A maioria fala em churrasco, sangue, carnes fatiadas. Do fundo, um terceiro funcionário chega para alertar os colegas que o caminhão já vai sair, agiliza, agiliza aí. Hoje, ali, não haverá mais vítimas. É Reinier, contudo, quem primeiro reage ao aviso. O ronco e o cheiro de gasolina dos motores são terríveis, sobretudo para Pirulito, que recua apavorado. Reinier afaga o cão, mas o puxa para bem perto do primeiro funcionário e, em tom sereno, pede, por imensa gentileza, uma rodela. Ouve-se de Reinier até um bom-dia, contrariando seu princípio de não saudar quem estiver sem máscara. Só se for agora, patrão, mas é só essa, pessoal. O outro funcionário desliga a motosserra, para decepção dos moradores que acabam de chegar. A camada generosa de serragem lembra aquelas cinzas — algo de que, para inconformismo da filha, Renier não quer ouvir falar por nada —, portanto se ele desviar o olhar para o chão durante o corte, o mal-estar será imediato, mas não o faz, magnetizado pela porção de corpo que lhe cabe.

Quando o corte está prestes a ser concluído, Reinier avança ainda mais e, malgrado a tensão da correia da coleira, abaixa e consegue segurar pelos lados a parte já fatiada da rodela para impedir que, tão logo desprendida, gire noventa graus e se choque violentamente contra o chão. Sem avarias, é posta por ele embaixo do braço esquerdo. É penoso aprumar-se. Agradece a gentileza e volta para casa. Apressados, os homens recolhem suas ferramentas e deixam para trás um pedaço de tronco que pode render mais três, quatro rodelas. Não tarda a ser posto por uma mulher e possivelmente seu filho no porta-malas de uma perua escura.

Reinier cambaleia, mas não para. Ao menos Pirulito está calmo. Respirar sob a máscara cirúrgica está ainda mais difícil, ainda assim é possível sentir o cheiro forte da rodela. A calva goteja. Ao longe, na direção contrária, vem uma jovem senhora de feição familiar e ele lembra ser este o período da manhã em que a vizinha de baixo costuma sair para caminhar. Reinier não quer dar explicações e, se o fizesse, ela não entenderia. Só um susto, porém. Em frente ao prédio, põe cuidadosamente a rodela na calçada e abre o portão. Decide acomodá-la sob um arbusto do jardinzinho de trás, no canto da garagem. Voltará para buscá-la, é só o tempo de deixar Pirulito no apartamento. Sacode a roupa para tirar o excesso de serragem e alguns fragmentos de casca. Não quer encontrar e não encontra a vizinha ao subir. Abre a porta do apartamento, mas apenas Pirulito entra, deve estar com sede, coitado. Reinier sobe mais dois lances de escada até a cobertura, onde pega um saco plástico preto grande. De volta ao térreo, põe a rodela no saco e logo dá dois nós justos para reter o ar acumulado a fim de dissimular o conteúdo. Sobe equilibrando o embrulho nas mãos espalmadas, não cruza com ninguém.

Trancada a porta da cobertura, deposita o embrulho pesado sobre a pia de granito São Gabriel, retira a rodela e atira o saco longe tão logo vê sair algumas formigas. Pega um vaso de kalanchoes secas na empoeirada mesa de festas e traz para perto. Pode permanecer como e quanto quiser diante da fração de vida extraviada. Só ele e ela. Sob o afago demorado, está gelada, seivosa ainda. O cheiro não incomoda. A profusão de círculos concêntricos escuros a partir da medula ratifica o acúmulo de ciclos findos, longevidade; o tecido externo, rosado e tenro — ele, leigo em ciências naturais, deduz — é um ciclo incompleto, um ciclo cuja maturação não convinha àquela calçada. No fim da tarde, se muito, vai pegar o formão na caixa de ferramentas, talhar fora o anel imaturo, talhar fora os últimos meses. Vai ficar só com o núcleo de ciclos findos, o núcleo maciço, que, após receber uma, duas demãos de óleo vegetal, há de não apodrecer.

Põe a máscara e desce. Hábito recente, antes de entrar no apartamento Reinier descalça o tênis, mas decide agachar e enfim pôr para dentro o par de sandálias em tom pastel com fios de couro trançados. As rasteirinhas dela. Vai até a área de serviço contígua à cozinha, tira a máscara, toda a roupa, põe para lavar. Abre o vitrô basculante. Da abertura da parede da cozinha, vê Pirulito no sofá, enrolado em si, tal como na manhã em que o resgatou da rua faminto e doente.

Wilker Sousa

É escritor, jornalista e mestre em Teoria Literária pela USP. Em 2016, foi premiado no concurso Paulo Leminski de contos. É autor de as digitais das sombras (Patuá). Como jornalista, foi editor de literatura da revista Cult.

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