Tributo

Conto de Sergio Faraco
Ilustração: Marco Jacobsen
01/12/2009

Não são pontuais essas meninas, às vezes se retardam com o cliente anterior e ainda vêm de ônibus, mas ao entardecer, na hora combinada, ouvi a campainha. Fui abrir o portão e calcula meu espanto, era uma de minhas alunas do turno da manhã. E não era senão aquela que, em vão, pedira minha assinatura em documento falso, a bolsa de iniciação científica que pleiteava sem satisfazer os requisitos. Demorei-me a virar a chave e só o fiz ao lhe ouvir aquilo que mais parecia um gemido:

— Professor…

Já ouvira falar de universitárias pobres que, para custear os estudos, prostituíam-se, mas boatos são hipóteses peregrinas que se esfumam, outra coisa é te defrontares, em tua casa, com essa penosa realidade.

•••

Uma vez ao mês, raramente mais de uma, eu ligava para a agência e dava um nome fictício, o endereço já não precisava. Sempre atendia o mesmo homem, Guilherme. Ele sabia que eu não tinha preferências excludentes por louras ou morenas, negras ou amarelas. Exigia que tivessem menos de 25 anos e mais de 18.

Se me envergonhava?

Deveria?

Ora, tanta gente faz isso… Mais cedo ou mais tarde todos vêm a pagar pelo prazer, previne um dos bobos de Shakespeare.[1]

Ou isso ou nada, não é?

Pois tua pele responde fielmente à corrosão dos anos, sobretudo nas mãos, cujo dorso engendra ressequida teia, e ao redor dos olhos, que as pregas apequenam, e teus cabelos se alvejam, caem e te legam retorcidas farripas que não se submetem ao pente, e teus dentes não resistem, e perdem o esmalte, e se quebram, já dependes de ferros que te esmagam as gengivas, e teu ventre se avoluma dir-se-ia na mesma proporção em que se te adelgaçam as pernas, e teu organismo é presa de humores insidiosos e logo percebes que as jovens e apetecíveis mulheres não te olham desta ou daquela maneira, simplesmente não te olham, és tão-só um obstáculo anteposto a outras e atrativas visões.

Não nego que, às vezes, perguntava-me se não estava a corromper aquelas moças, mas, vê bem, quando vinham a mim já tinham sido corrompidas por outros e não só pelos cafetões, sobretudo pelos sonhos de uma vida melhor que acalentavam na pobreza.

Um drama?

Que o fosse.

Eu não passava de um figurante, e em meu ínfimo papel, antes de qualquer torpeza, concorriam minhas privações: como se não bastassem a viuvez, a solidão, a angústia que se apossava de mim na casa deserta de emanações femininas, em meus afazeres na universidade convivia em dois turnos com o viço e a sedução da mocidade.

De longe.

Via pernas, prenúncios de seios ou um pé descalço de dedos finos, delicados, e afligia-me a certeza de que a outros aproveitavam esses mimos, talvez sem que lhes atribuíssem tão subido valor. E então, uma vez ao mês, raramente mais de uma, comprava o que já não me davam.

•••

Naquela tarde, telefonara a Guilherme.

E a garota estava ali, ai de mim.

Não a levei ao quarto, mas à mesa da sala de jantar, como faria se procurado por alunos, quem sabe à espera de que abrisse a bolsa para pegar o livro e o bloco de anotações. Sentada, ela olhava ao redor, e se fixou na cristaleira, onde teimavam em perdurar reminiscências conjugais, o colar de âmbar aninhado num cálice, vetustos cristais, a faca que cortara o bolo do casamento, a caneta de ouro que pertencera a um longínquo avô e fora usada na cerimônia civil, além de um porta-retrato que perpetuava os noivos sorridentes.

— Aquele retrato é o seu?

— É.

Estremeceu ligeiramente.

— Quer que eu vá embora?

— Por quê?

— Por mim, eu fico, mas essa situação…

Olhava novamente para a cristaleira, por que o fazia, se às outras como ela pouco ou nada se lhes dava o que viam? E seria um meio sorriso aquela contração no rosto? A cristaleira e seu caduco acervo não deviam estar ali, eu sabia, sempre soubera, sempre tivera a amarga consciência de que meu arsenal de quinquilharias — aquelas e outras distribuídas pela casa ou guardadas em malas e caixotes — afogara-me tanto a vida que não me sobrara alento para reconstruí-la de outro modo.

E agora era tão tarde…

•••

Só não era tarde para um consolo.

Ainda não me refizera da surpresa, mas já sentia no corpo os trabalhos da idéia de que logo teria nos braços um exemplar da espécie que me agoniava. A carne universitária. A própria, tenra e limpa, para me nutrir e saciar enquanto as Moiras não me cortavam o fio.

— Vais ficar?

— Claro — e acrescentou: — Faço porque preciso, acho que dá para entender, não dá?

Dava, sim, como não? Era só uma troca de atenções para facilitar a caminhada.

— Como se te desse a mão e me desses a tua.

Na porta do quarto, deteve-se, talvez a reprovar a desordem de meus pertences, o roupeiro entreaberto, a penteadeira empoeirada, a cama desfeita, o chinelo de borco, uma trouxa de roupas no chão, talvez a esbarrar na catinguenta atmosfera da peça, que como essas casas que vendem móveis usados cheirava a sapato velho. Eu estava tão habituado àquelas visitas que já nem arrumava ou arejava a casa, como nas primeiras vezes em que as recebera.

Uma hesitação fugaz, logo avançou.

— Ponho a bolsa aqui?

Indicava a penteadeira, outro continente de lembranças: o gatinho de louça, o porta-jóias, a escova de cabelo, a travessa dourada e um frasco vazio de Mitsouko, no qual eu ainda pensava inalar uma redolência amadeirada. Sim, podia, ela largou a bolsa, voltou-se. Não era bonita, mas tinha um rosto de traços suaves, infantis, a contrastar com a vivacidade do olhar. Um querubim com olhos de falcão.

Anoitecia.

Eu estava com pressa, receava fracassar, e após deitá-la, despi-la e, num hausto, me inebriar nos brandos odores de sua louçania, e logo ao sentir o quanto me cingia e inflamava sua estreita, ungida intimidade, ah, como era bom, ela parecia corresponder e minha alma como renascia, desabrochava como um gerânio de inverno.

Súbito, seu corpo se enrijou.

— E o papel?

— Que papel?

— Aquele que pedi. Vais assinar?

Agora me tuteava.

— Foi por isso que vieste?

— Evidente que não. Como eu ia saber, se lá na agência deste outro nome? Vim pelo dinheiro, mas, já que estou aqui, quero o papel.

Ergui-me nos cotovelos.

— Então é assim? Além de pagar, preciso vender a assinatura?

Seu olhar parecia advertir que eu não estava lidando com as meninas que Guilherme arregimentava na periferia, e o sorriso com que respondeu não era de bondade ou compreensão:

— Se aceitas e até achas certo que eu me venda, por que não podes te vender também?

— É diferente…

– Diferente? Por que é diferente? Porque és professor e, na tua opinião, sou uma puta? — e elevou a voz: — Te decide!

Seus traços tinham perdido a suavidade. Com surpreendente energia, empurrou-me para o lado. Não se cobriu, e seu corpo firme, harmonioso, era quase um insulto ao meu, desconjuntado mamulengo cujo arremedo de sexo se enroscara em seu berço de penugem grisalha.

— Pela última vez: vais assinar?

Olhava-a com a lembrança daquilo que começara e tanto combinava com o moço que eu era no retrato da cristaleira. Olhava-a sem nada dizer, humildemente, deixando que exercesse sobre mim, para meu bem, sua cruel suserania.

— Vou — eu disse.

Nota
[1] Noite de reis. 2º Ato, Cena IV. (N. do E.)

 

Sergio Faraco

Nasceu em Alegrete (RS), em 1940. É autor, entre outros, de Dançar tango em Porto AlegreRondas de escárnio e loucura e Lágrimas na chuva.

Rascunho