Trem maluco

Passeio com o filho se transforma em crônica política e afetiva — entre metrô lotado, panela, minicozinha e uma imensa vontade de gritar “Sem anistia!”
Ilustração: Italo Amatti
03/09/2025

Minha esposa soube da Ocupação Palavra Cantada no Itaú Cultural assim que teve início; em maio, se não me engano. Ótimo programa para o nosso filho, fã da dupla formada por Sandra Peres e Paulo Tatit. Adiamos, adiamos até esquecer que adiamos e eis que, já em agosto, num sábado à noite, nos demos conta de que a exposição acabaria no dia seguinte. Amanhã ou nunca!

Como a Paulista fecha para lazer aos domingos, era melhor deixar o carro na estação de metrô mais próxima e seguir até a Brigadeiro, bem na cara do gol. Quando chegamos ao estacionamento, estranhamos a dificuldade para encontrar uma vaga. Logo vimos descer dos carros gente com a bandeira nacional e a camisa da seleção. Que roubada! Só havia me cercado de amarelinhas em Copa do Mundo, mas aquilo, de Copa, não tinha nada, porque ninguém festejava, ambulante nenhum vendia cerveja, faltavam risos e uma leveza qualquer nos corpos, que mais pareciam marchar até o metrô. Sem contar os que bramiam ser brasileiros com muito orgulho e amor, mas se enrolavam na bandeira dos hermanos ou na do tio Sam alaranjado.

A plataforma até que não lotou e, teimosos, resistimos. Enquanto me censurava pelo vacilo de nada ter lido sobre o ato dos “patriotas” e me dava conta de que vestia verde, meu filho nos perguntou se o Brigadeiro era longe. Achei fofo e o instinto era corrigi-lo, é a Brigadeiro, a estação, mas a concordância estranha para mim e natural para ele, cuja referência é o doce, me fez pensar na origem da guloseima tupiniquim, criada para angariar fundos para a campanha presidencial do brigadeiro Eduardo Gomes, derrotado em 1945. E saber que hoje fazem PIX aos milhões e saem à rua para um ex-capitão de araque, ex-presidente golpista. Não o corrigi. É perto. Só quatro estações, filho.

Foi uma eternidade. Nem em 98, quando enfrentei uma baita fila na bilheteria do setor corinthiano no Morumbi para assistir ao dérbi (3×1 para nós!, diga-se), me senti em ambiente tão adverso. Não tenho dúvida de que, nesse domingo, eu e muito gavião daquele domingo estaríamos do mesmo lado. Não me atrevo a falar em tortura, seria desrespeito com quem sofreu e sofre essa atrocidade — defendida, aliás, pelo capitão de araque e sua milícia “cristã”. Mas foi bizarro me ver rodeado de amarelinhas — eu, que tenho duas — e me sentir tão forasteiro. Quando chegamos à Paraíso, um monte de “patriota” foi entrando e, ao aviso sonoro, forçaram; por pouco, alguma tornozeleira teria impedido o fechamento das portas. Fomos espremidos. Nisso, um homem me olhou com simpatia — deve ter sido minha blusa verde — e advertiu: “Cuidado com o bolso!”, e eu completo em silêncio: “-minion!”. Se, ideológica, nossa adesão implícita àquela massa já afligia, imagine daquele jeito!

Na Ocupação, ufa, nenhuma amarelinha. Ocupação, ainda mais de cultura, é coisa de esquerdista, então estávamos num oásis. Para um menino de mão ligeira como ele e para nós, que penamos para conter essa ligeireza onde é inapropriada, foi uma alegria e tanto ler o aviso “Pode tocar”. Ele tocou pandeiro, triângulo, campana, chocalho; bateu colheres de pau uma na outra; abriu e fechou porta, gaveta, cortina, armário, janela, panela. Das preciosidades, uma minicozinha dedicada à canção Sopa, primeiro hit que embalou o sono dele. Estavam pendurados os vários ingredientes triviais e inusitados cuja presença “na sopa do neném” é aventada na letra (“Será que tem macarrão?/Será que tem caminhão?”); e, sobre uma bancada, cinco panelas de onde era possível ouvir cada um dos instrumentos do arranjo. Quem dera sempre soubéssemos como a banda toca…

Após um café no Sesc, de onde vimos o ato “patriótico” menos disperso em frente ao Masp, julgamos que a volta seria tranquila. Que nada. Havia apenas uma escada aberta para o acesso à Brigadeiro, então o gargalo para as catracas foi ficando horrível. E, confesso, não contava que a corda de parte da “patriotada” pararia tão cedo. Ali, naquele sufoco, sem ventilação e luz natural, os brados antidemocráticos ribombavam em nós, principalmente no nosso filho, que levava as mãos aos ouvidos e dizia: “Porcaria! Porcaria!”. Quando enfim cruzamos a catraca, fomos até o fundo da plataforma, onde havia só uns gados pingados.

No vagão, nosso menino até sentou. Vi nas costas de alguém uma bandeira nacional cujo círculo foi saqueado e, em seu lugar, o rosto do líder supremo deles. Minha vontade foi ter à mão a panela e a colher de pau da Ocupação e bater, bater aos gritos de “Sem anistia! Sem anistia!”. Mas esse trem – embora maluco como o da canção Trem de brincar, que meu filho e eu cantamos alternando os versos — não é de ferro como aquele, mas de chumbo; e, por isso, se eu gritasse, alguém ali poderia soltar um pum, obviamente não aquele dos passageiros do Trem de brincar, do trem com graça. Além de fake news, o que será que tem na sopa dessa gente? De todo modo, dessa sopa não como; porque, se como, VOmito.

Wilker Sousa

É doutor em Teoria Literária pela USP, professor e crítico literário. É autor de as digitais das sombras (Patuá) e foi segundo colocado no Concurso Paulo Leminski de contos (2016).

Rascunho