Travesseiros

Conto de Fernando Marques
Ilustração: Marco Jacobsen
01/07/2011

Àquela hora, como voltar pra casa? Estava longe da cama, no olho da noite — na zona. Resolveu tomar uma providência:

— Você não me arranja um lugar pra dormir?

De quebra, quem sabe o sexo.

Ela foi doce. Disse tadinho com os olhos. Garoto de classe média, ali, faz seu sucesso. No contexto e por contraste, a pedra. Ele que esperasse.

Entrou e saiu. Chamou. Abriu a porta do cubo, apontou a lâmpada apagada comentando:

— A bocetinha tá queimada, mas você pode deitar aí.

Olhares lânguidos. Um instante, ele pediu:

— Volta mais tarde, tá?

Ela prometeu que voltaria.

Que lugar, resmungou. Conteve o nojo. Dormitório público, púbico, tinha seu ranço. Mas que cansaço. Precisava se despir, evitar o vexame de ser visto vestido — caso ela voltasse, devia fingir a superioridade dos machos.

E as lentes de contato? Saco.

Os sapatos. As meias, dentro dos sapatos. A camisa e a calça, cuidadosamente dobrá-las, pô-las na borda da cama. Antes as lentes: a caixa de fósforos, o papel higiênico; agora embrulhadinhas no papel, guardá-las na caixa, no bolso da calça. Dinheiro, necas. E que trabalho.

Vamos ver se relaxo. Virou-se para o lado, o quarto respirava. Esquisito. Vai pegar o travesseiro, que late: um cachorro, concluiu espantado. Dentro do cubo, o cão. Sem plumas.

Saiu. No corredor, avaliava-se: mas eu, com medo de bicho? Para constatar: é nós. Corredor comprido, ao longo muitas portas, quartos iguais àquele. As histórias macabras sobre zonas e morte nelas começavam a rolar na cabeça. Na rua, crescia uma discussão; temia que explodisse, e pra dentro da casa onde estava. Sabe lá? No quarto não entro, expulso pelo vira-lata; pra fora não vou, seminu sob a noite estrelada; e se fico nesse espaço, o corredor, sei lá se me acham. Em terra estranha, não se brinca de excentricidades, teve o despacho de refletir.

Tomando fôlego — coragem, covarde — como quem dentro da água gelada saltasse, entrou, impávido ou quase, no quarto às escuras. Sentou-se bem na beira para não ferir a suscetibilidade do cão, que não me morda, ora, era o pensamento positivo que se alternava com uma espécie de raiva: motel de pulgas, lulu de bordel. Totó. Rex. Lassie! Lembra da Lassie?

Veste a calça, calça as meias, os vira-latas não mordem a não ser que a gente os morda, o rito agora ao contrário. As lentes, molhadas, de novo nos olhos: não mais que um banheiro no vasto sobrado, desses onde se pousa de cócoras. Aqui se escreve a história de Brasília.

Com os movimentos o cão saiu, voluntariamente, talvez com sono ou susto, ainda malseguro nas pernas. Os animais têm alma, aquele deve ter achado muito pouco viris as minhas atitudes. Ah, noites vis, noites cândidas e irresponsáveis.

Grande homem, ele se censurava dentro do ônibus que o devolvia à sua quadra. Onde os travesseiros não latem.

Fernando Marques

É professor universitário, jornalista, escritor e compositor. Publicou os livros Contos canhotos (LGE), Retratos de mulher e o livro-disco Últimos. Doutor em literatura brasileira pela UnB.

Rascunho