Todas as sentenças de todas as lápides

Conto de Luciana Thomé
Ilustração: Maureen Miranda
01/12/2009

“Quando foi a última vez que falou com a mãe?” Eu não entendo a pergunta. Peço que Camila repita. Repete, por favor, a ligação está ruim, tua voz está cortada. Chorando, ela soluça algo que parece: “A mãe! Quando foi a última vez que falou com ela, Ana?” Meus pés congelam. Suspensa, com as mãos na direção do carro, sinto os pensamentos gigantes demais para os limites da minha cabeça. O real como um cenário em desconstrução: em segundos, o mundo se transforma num palco de caos e desespero.

Falei com ela na sexta-feira antes de viajar. Respondo, temendo a próxima frase. O que minha irmã pretende dizer? Será mais uma das constantes brigas da família? Problemas, dinheiro e picuinhas. Ou uma notícia derradeira? Sempre tive medo da morte. De sonhos a preocupações, todos passavam por caixão lacrado e finitude. Minha incapacidade de vencer o temor me obrigou a conviver com ele. Sei que ela está por perto, todos os dias. Bom dia, boa tarde, boa noite, dona morte. A presença constante que não é notada até que tudo muda, e vira nunca mais. Aliás, como é que se dá essa notícia para alguém? “Preciso te contar uma coisa.” O mensageiro se aproxima cabisbaixo, com as mãos retorcidas uma na outra, respira fundo e dispara num só fôlego. Ou pronuncia frase a frase, algumas perguntas, como se, em etapas, afundasse a lâmina que não sairá mais do peito. Meu peito. Nosso.

Sigo vencendo cada curva da estrada, terminando a viagem e me preparando para encarar a rotina nos olhos. Dirigindo, mantenho o celular grudado na orelha. Puxa, mana, que jeito mais estranho de avisar sobre um falecimento. Meu coração endurece o tórax, feito gelo que mata a pele e necrosa.

Lembro da última vez. Fui visitar a mãe numa tarde de pouco trabalho, quando, tipicamente, o expediente emenda uma sessão de cinema. Dessa vez, abdiquei de pipocas e filme. Entrei no apartamento com as chaves que ainda mantenho e a encontrei sentada no sofá da sala, com o controle remoto na mão e desviando o rosto da tevê. De pijamas e descabelada, apresentava sinais de pós-enxaqueca e falava com olhos miúdos. Comentamos sobre meus problemas no escritório, pagamentos atrasados, alguma nova pseudocelebridade que causava polêmica no jornal, um detergente recém-lançado com potência na limpeza e odor de perfume. Falei que viajaria no Carnaval. Não, mãe, praia não. Vou para o interior, me esconder um pouco da cidade grande e dos meus grandes amigos. Ela riu. Perguntou como estava o Bruno. Eu menti. Estamos muito bem, ele foi convocado no feriado e vai fazer plantão na rádio.

Caladas, presenciamos nossa conversa apagando. Morta. Como um relacionamento que assume conotações de falsa camaradagem, de sorrisos polidos e de um “fica bem” que tenta eximir toda a culpa pela distância inevitável. Desgastada como outras tantas relações obrigatórias, onde “eu te amo” é proibitivo, e “desculpe” soa como um desaforo. E a mágoa que vem da escolha? Pensar que um dia, quando eu cruzava a rua perto da faculdade, iria chutar aquela pedra. Redonda, gasta de tanto salpicar pelo asfalto. Ela voou como pássaro, chegando rente às canelas descobertas dele, um rapaz com uma bermuda dois tamanhos maiores que o corpo. Ele saltou para evitar o choque no osso. Não fiquei envergonhada por ser menina jogando o sete na rua. Quem sabe foi isso que atraiu Bruno — minhas tranças com cor de vontade, fingidas de castanho claro e castigo.

As pedras, eu trago comigo para atirar com força contra os muros. Por isso inventei que jogava amarelinha, e pulei e pulei. Pulei os quadros imaginários, de milhões de números, jogando as pedras e me projetando como se não fosse uma brincadeira, mas trabalho sério e concentrado. E consegui. Perdi o nosso futuro em algum lugar dos quadrados escritos a giz. Acho que entre o quarenta e cinco e o setenta e oito.

Os ouvidos atentos escutarão meu adeus. Entulharei a mala com essas conquistas abstratas quando for embora. Talvez, deixe uma carta para Bruno. Quem sabe também arriscarei alguns desenhos. Homem e mulheres com pernas e braços de madeira e cabeças redondas e lisas. Homem em posições moralmente embaraçosas. Tirem as crianças da sala! Pois eu estava por perto, assistindo e me abraçando a essa dor. Isabela, Mariana, Cibele, Paula, Nara, Carmen. Acompanhando o corpo dele roçar em todas as partes de todas essas mulheres. Procurando nele as falhas que só poderiam estar em mim.

Viajo com guerras, mentiras e todos os meus cadáveres no porta-malas. O espelho aponta a maquiagem inexistente, os pedaços que faltam do esmalte de tom escuro nas unhas, a raiz aparente do cabelo não pintado. Eu sou a pessoa esquartejada em vida. E meus pedaços tentam seguir, mesmo que em direções opostas.

Camila, não te entendo, pára de chorar que não compreendo o que está me dizendo. “Precisamos conversar… Agora… É sobre a mãe.” O que quer que seja, também parece perdido, como nos perdemos dos outros e de nós mesmas, irmãzinha. Como algo que nunca será recuperado. Como o antes disso, e todo o resto que virá depois. “A mãe morreu para mim, Ana.” Concreto ou não. Às vezes, nossos túmulos nos perseguem, mesmo que não signifiquem o silêncio eterno. Acelero na direção da cidade e suas sentenças. E os prédios, assim de longe, lembram lápides enfileiradas.

Luciana Thomé

É escritora, jornalista e editora. Participou das antologias Contos de oficina 35 (Oficina de Criação Literária de Luiz Antonio de Assis Brasil) e Ficção de polpa (Volumes 1, 2 e 3 – Não Editora).

Rascunho