Tabelinha

Entre passes de bola e conversas à beira-mar, um filho recorda os conselhos e memórias de seu pai, que ainda ecoam no presente
Ilustração: Italo Amatti
31/08/2025

Caminhamos na praia vazia, é fim de tarde. Levo uma bola comigo para ajudar no diálogo. Passo a bola para ele, calculando o ritmo do seu passo. Meu toque é preciso: sem que ele faça esforço algum, a bola chega ao seu pé no instante exato. Ele carrega a bola por alguns metros, depois me devolve. E assim vamos proseando — quer dizer, falar mesmo quase só ele fala, sempre fui mais de ouvir.

“A vida, meu filho, é uma lindeza, não tem dúvida, mas é uma luta, viu? Ela não sossega. Quando a gente acha que é assim, ela resolve assado. A gente esboça o futuro, faz planos, procura controlar a rota, mas muito do que a gente pensa não acontece, não. Ou vem de um jeito diferente. O jeito é confiar na vida. Procurar fazer direito e acreditar que vai dar certo.”

Lanço a bola para mim mesmo mais à frente, dou uma corridinha para alcançá-la. Depois espero que ele se aproxime para ficar ao meu lado e retomar a tabelinha.

“Já vi tanta coisa. Quase tudo mudou, deixou de ser como era — o carro, a televisão, as estradas — a maioria para melhor, não tem dúvida. O estranho é que a gente vai ficando velho por fora, mas, por dentro, nada muda: o que nos alegra continua a alegrar, as tristezas vêm das mesmas causas, a gente continua igual, só a embalagem vai murchando. Vira e mexe, essas coisas vêm à cabeça.”

Ele toca de primeira, a bola sai meio torta, estico a perna para dominá-la e a devolvo, também errado. É o momento mais pobre da nossa troca.

“Olha ali o siri saindo da toca. Essa é a hora deles, logo que o sol se põe. Quer ver que, quando a gente chegar perto, ele, vupt, corre de volta para o buraco? Ali, não falei?”

A bola está com ele. Seus pés são diferentes dos meus, mais cheios — uma das poucas coisas em que não somos iguaizinhos. Ele devolve a bola, que chega pingando.

“Quarenta e três anos. Caramba. O tempo avoa. Vovô e vovó estão velhinhos, tão dependentes. Dia desses, um colega do colégio me ligou: estão querendo fazer uma festa de 25 anos de formados. Um quarto de século, gente do céu! Você mesmo era um tico-tico até alguns dias atrás. Hoje chuta a bola com mais força que eu — aliás, você tem jeito pra coisa, sabia?”

Ele me devolve com displicência, tenho que dar outro pique. Também: toda hora ele para, fica olhando as ondas, pensativo, esquece o jogo, cantarola uma música que eu não conheço. Em vez de prestar atenção na bola.

“Como o mar é generoso de beleza. De um lado, o horizonte que vai embora e leva a gente junto; do outro, os contornos dos morros. Areia branca, as espumas, o rasante dos mergulhões, o cheiro de maresia. Só de ouvir as ondas quebrando a gente já sossega.”

Trocamos mais passes e frases. A praia foi ficando ainda mais vazia.

“E se hoje a gente fosse numa lanchonete? Cachorro-quente com batatinha, suco, sorvete… que tal? Tô ficando com fome. E assim a mamãe não vai ter trabalho.”

Entendi o que queria a conversa: dizer que era hora de voltar pra casa. Pego a bola com as mãos, dou uns tapas e a raspo para tirar a areia. Da beira do mar mudamos a direção rumo ao calçadão. As luzes das janelas e da avenida já se acenderam, misturadas à luz que resta do dia. A noite chega apressada.

Hoje vejo que ele tinha razão. Vira e mexe, essas coisas vêm à cabeça.

Cássio Zanatta

Nasceu em São José do Rio Pardo (SP). Já foi revisor, redator, diretor de criação, sem nunca deixar de ser cronista. Publica nas revistas digitais Rubem, The São Paulo Times e no jornal A Tribuna. É autor de três livros de crônicas: A menor importância, O espantoso nisso tudo e O máximo que eu consegui.

Rascunho