Caminhamos na praia vazia, é fim de tarde. Levo uma bola comigo para ajudar no diálogo. Passo a bola para ele, calculando o ritmo do seu passo. Meu toque é preciso: sem que ele faça esforço algum, a bola chega ao seu pé no instante exato. Ele carrega a bola por alguns metros, depois me devolve. E assim vamos proseando — quer dizer, falar mesmo quase só ele fala, sempre fui mais de ouvir.
“A vida, meu filho, é uma lindeza, não tem dúvida, mas é uma luta, viu? Ela não sossega. Quando a gente acha que é assim, ela resolve assado. A gente esboça o futuro, faz planos, procura controlar a rota, mas muito do que a gente pensa não acontece, não. Ou vem de um jeito diferente. O jeito é confiar na vida. Procurar fazer direito e acreditar que vai dar certo.”
Lanço a bola para mim mesmo mais à frente, dou uma corridinha para alcançá-la. Depois espero que ele se aproxime para ficar ao meu lado e retomar a tabelinha.
“Já vi tanta coisa. Quase tudo mudou, deixou de ser como era — o carro, a televisão, as estradas — a maioria para melhor, não tem dúvida. O estranho é que a gente vai ficando velho por fora, mas, por dentro, nada muda: o que nos alegra continua a alegrar, as tristezas vêm das mesmas causas, a gente continua igual, só a embalagem vai murchando. Vira e mexe, essas coisas vêm à cabeça.”
Ele toca de primeira, a bola sai meio torta, estico a perna para dominá-la e a devolvo, também errado. É o momento mais pobre da nossa troca.
“Olha ali o siri saindo da toca. Essa é a hora deles, logo que o sol se põe. Quer ver que, quando a gente chegar perto, ele, vupt, corre de volta para o buraco? Ali, não falei?”
A bola está com ele. Seus pés são diferentes dos meus, mais cheios — uma das poucas coisas em que não somos iguaizinhos. Ele devolve a bola, que chega pingando.
“Quarenta e três anos. Caramba. O tempo avoa. Vovô e vovó estão velhinhos, tão dependentes. Dia desses, um colega do colégio me ligou: estão querendo fazer uma festa de 25 anos de formados. Um quarto de século, gente do céu! Você mesmo era um tico-tico até alguns dias atrás. Hoje chuta a bola com mais força que eu — aliás, você tem jeito pra coisa, sabia?”
Ele me devolve com displicência, tenho que dar outro pique. Também: toda hora ele para, fica olhando as ondas, pensativo, esquece o jogo, cantarola uma música que eu não conheço. Em vez de prestar atenção na bola.
“Como o mar é generoso de beleza. De um lado, o horizonte que vai embora e leva a gente junto; do outro, os contornos dos morros. Areia branca, as espumas, o rasante dos mergulhões, o cheiro de maresia. Só de ouvir as ondas quebrando a gente já sossega.”
Trocamos mais passes e frases. A praia foi ficando ainda mais vazia.
“E se hoje a gente fosse numa lanchonete? Cachorro-quente com batatinha, suco, sorvete… que tal? Tô ficando com fome. E assim a mamãe não vai ter trabalho.”
Entendi o que queria a conversa: dizer que era hora de voltar pra casa. Pego a bola com as mãos, dou uns tapas e a raspo para tirar a areia. Da beira do mar mudamos a direção rumo ao calçadão. As luzes das janelas e da avenida já se acenderam, misturadas à luz que resta do dia. A noite chega apressada.
Hoje vejo que ele tinha razão. Vira e mexe, essas coisas vêm à cabeça.