Silêncios

Conto de Mauro Tietz
Ilustração: Marco Jacobsen
01/01/2007

Ela saiu da farmácia com a mesma indiferença com que enfrentara o dia. Ia se encontrar com Pedro, na entrada sul do parque, onde iriam passear. Em dias como esse o parque costuma estar mais vazio, o que para ela é um alívio, apesar de ela caminhar muito mais movida pela insistência do filho do que por vontade própria. Pedro sempre tentava distraí-la, como se com isso pudesse aliviá-la. Mas a vida para ela já se esvaziara havia muito. Há tempos que as coisas começaram a desbotar. É como se tudo se banhasse em sépia…

Ele caminhava como se fosse uma descarga de energia que não tinha para aonde ir: tenso. Eram-lhe insuportáveis os barulhos da rua, muito mais do que os internos. Os carros, as pessoas, em nada havia sossego. Mas não. Talvez mais insuportáveis fossem mesmo os barulhos internos: vozes, persistentes e cruéis. Pensamentos, metálicos e obsessivos. Tortuosidades. Ele caminhava assim, sem o saber, ao sabor de fibras expostas. Em nenhum lugar havia paz.

Pedro esperava pela mãe na entrada sul do parque. Marcava com ela ali pois sabia que esta era a parte do parque de que ela mais gostava. Aos nove anos de idade ele já se habituara com o comportamento melancólico e soturno da mãe, como também com seus silêncios intermináveis. Mesmo assim insistia nos passeios, pois ainda que ela não percebesse, nessas ocasiões os traços de sua face se suavizavam e parecia haver alguma serenidade.

Ela estendeu a mão para o filho com um meio sorriso, como fosse uma espécie de véu que punha para protegê-lo de ver o deserto que ela era em seu mundo interior. Sequer culpa ela conseguia encontrar quando percebia que nem mesmo Pedro lhe assegurava um mínimo de significado para a vida. Quietos avançaram para o interior do parque quase vazio. O menino tentava conduzi-la para o canto de algum pássaro ou para as cores de uma flor. Ela fingia, mas dentro era como se fosse um espectro, uma sombra deslizando para os intervalos escuros do lusco-fusco.

Ele entrou no parque recebendo pela face um halo de silêncio, tal qual uma onda de intenso calor se descobre refrescando ao contato da brisa. Precisava silenciar-se. Saindo em busca de alguma quietude, esgueirou-se pela entrada sul do parque e avançou pelas vielas, torturado, em busca…

Pedro percebeu que a mãe queria ficar sozinha. Alegando qualquer desculpa, afastou-se e ficou de encontrá-la novamente no lado sul, de onde iriam para casa. Ela não retrucou, deixou o filho ir e ficou pensando em como se tornava uma carga para ele. Mas alguns passos depois já sentia novamente a paisagem de abandono e quietude por onde transcorria sua existência.

Os dois se olharam numa passagem secundária do bosque, houve uma espécie de reconhecimento mútuo: entre eles uma espécie de espelho dos contrários. A sede reconheceu a água. Ele na direção dela forçou passagem segurando-a pelo antebraço e levando-a para dentro do bosque. Ela diante da magnitude de tudo se deixou levar feito pedaço abandonado em qualquer maré. Os dois no limite, os dois caminhando nos precipícios do insuportável. Ele um coro de vozes em lamentos e angústias. Ela uma espécie de corpo vazio que não oferece qualquer vontade, qualquer resistência.

A mão direita dele sente no bolso o cabo vermelho e duro do canivete. Ela quieta espera sem saber por quê. Rápido ele leva a ponta da lâmina para o lado do peito e entre as costelas encontra com um som abafado o coração que recebe como alívio o golpe. Ela emite um suspiro, inaudível, que se deixa entrever pelo arco dos lábios que ali, nos limites da dor e do prazer, se entregam a um absoluto que não pesa, só apaga. Quieta, morre.

Pelo avanço da lâmina se povoou de morte o deserto, e onde era insuportável silêncio soprou a brisa cálida das existências póstumas. Pelo fio da navalha se esvaíram as vozes, as angústias e lamentos. Onde era o desespero se assentou uma quietude infinita, um silêncio de calmarias.

Agora em paz, ele se dirige para a saída sul do parque, onde vê um menino com uma garrafa de água nas mãos. Não entende o que um garoto faz ali parado na saída do parque. A ele pareceu já ter visto aqueles olhos antes. Resolveu tomar o ônibus e foi embora lembrando de sua própria infância quando num tempo longínquo, antes de tudo, ainda era silêncio e paz.

Mauro Tietz

Estudou psicologia e filosofia. É coordenador de Literatura da Fundação Cultural de Curitiba.

Rascunho