Sua aparência era em tudo banal. Seu rosto era desses que se esquecem facilmente, de traços regulares e inexpressivos. Também se vestia com roupas comuns. Mas, desde o começo, cismei que carregava um segredo, que sua vida escondia um drama; senti que era um sobrevivente.
Ximenes não sorria. Talvez tenha sido isso o que me chamou a atenção. Mas não era um tipo taciturno ou desagradável. Apenas suavemente melancólico e de olhar indiferente. Conversava com naturalidade, sem animação, sempre no mesmo tom, como se evitasse expressar sentimentos.
Passava o dia por detrás do balcão, acompanhando o vai e vem na rua. O pequeno armazém era sua janela para o mundo. Educado, parecia mais um ex-seminarista do que um comerciante de secos e molhados. Depois, eu soube que o rapaz de pernas tortas e sintomas de retardo mental que vez ou outra aparecia na calçada do armazém para tomar sol era seu irmão. As feições se assemelhavam. Talvez fossem gêmeos, pensei. Nunca perguntei e ele jamais o mencionou. Até hoje, nada mais sei de sua família, nem mesmo se Ximenes era casado ou tinha filhos.
Sua venda era uma miniatura dos velhos empórios portugueses de secos e molhados. Pela manhã tinha o pão fresquinho e o leite, o que era conveniente, na falta de padaria próxima. Única venda naquela rua, ao longo do dia supria-nos com o mais urgente e necessário. À direita da entrada ficava o pequeno balcão com pia e cafeteira e atrás dele a prateleira na parede com as cachaças e os vinhos doces de São Roque. O lado esquerdo era inteiramente ocupado por quatro grandes caixotes com a farinha de mandioca, o arroz, o feijão e a batata. Na prateleira dos fundos, ocupando a parede de alto a baixo, ficavam os enlatados, café, sal e açúcar. Entre as duas portas de aço da entrada, uma pequena geladeira mantinha os refrigerantes e cervejas.
Sem ajudantes, ele sozinho atendia pressuroso os fregueses, mais numerosos durante a manhã, e logo retornava para detrás no balcão. Servia com presteza, mas sem demonstrar interesse, como se pouco lhe importasse vender ou não vender. Só se alegrava quando uma criança aparecia com a lista de compras; então a regalava com um pirulito. Chegava a interceptá-las na calçada para oferecer a guloseima.
No meio da tarde, três pinguços encostavam-se no balcão e ali permaneciam cerca de duas horas, bebendo. Eram sempre os mesmos e a conversa não variava. Repassavam, a cada dia, as notícias da tevê, os resultados do futebol. Por detrás do balcão, Ximenes participava daquele pequeno mundo dialogado, ouvindo mais do que intervindo.
Percebi que Ximenes conhecia todos os moradores da rua, alguns de muito antes de minha chegada ao bairro, e sobre cada um parecia ter juízo de valor, ciosamente guardado para si. Não era um fofoqueiro. Era, digamos, um observador da conduta humana. Quando começamos a conversar ele já sabia que eu era escritor.
Expressava nesses rápidos encontros uma visão de mundo completa e coerente, como alguém que recebeu formação sólida, familiar ou em escola boa, talvez colégio de padre. Tinha opinião formada sobre os fatos da política e do cotidiano, mas não fazia questão de expô-las e nunca polemizava.
Com o tempo, o enigma que eu vira em Ximenes, em vez de se elucidar, adensou-se. Percebi que o pequeno empório estava lentamente a se esvaziar. Primeiro, Ximenes parou de nos suprir o pãozinho quente e o leite fresco de todas as manhãs. Perda grave que embora de início parecesse isolada, foi determinante na mudança do caráter da vendinha, ao nos negar o mais necessário já no começo de cada dia.
Em algumas semanas, esvaiu-se o estoque. Ximenes deixara de repor as mercadorias. Primeiro esgotaram-se as batatas, depois acabou o feijão, o arroz e por último a farinha de mandioca. Os enlatados duraram bastante, mas ao fim de um mês já não havia quase nada, nem mesmo as latinhas de massa de tomate e de sardinhas portuguesas. Só sobraram o café e o açúcar. Ximenes era viciado em café, que servia no balcão ralo e adoçado. Da rua, o cenário era desolador: prateleiras nuas de parede a parede e de cima até em baixo, como se um exército inimigo houvesse tudo saqueado. Só o pequeno mundo dos pinguços e suas conversas de fim de tarde mantinha-se intacto, rente ao balcão.
Quando perguntei o motivo do esvaziamento da vendinha, Ximenes culpou os novos mercadinhos. Não dava para concorrer. Um deles também assava pão e já que não ia mais vender pãezinhos, cortara também o leite, desobrigando-se assim de levantar as portas antes das sete. Podia abrir mais tarde, ou até folgar.
Dias depois, perguntei por que não oferecia refeições, como as padarias passaram a fazer para enfrentar os mercadinhos. Dá muito trabalho para uma margem de ganho diminuta, disse. Não pagava a pena. Foi quando me confidenciou que tentaram lhe impingir uma máquina de jogo para atrair novos fregueses, até ameaçaram, mas preferia baixar as portas a aceitar jogo de azar.
Nesse dia notei que, exceto naquelas duas horas em que se reuniam os cachaceiros, Ximenes não mais se postava na extremidade do balcão próxima à rua; recuara para os fundos. E seus cabelos haviam encanecido. O armazém deixara de ser a janela de onde um Ximenes atento observava o mundo lá fora. Virara um refúgio disfarçado de bar. Um boteco precário, dotado apenas de um balcão e alguma pinga, que Ximenes servia impassível a três ou quatro desocupados esperando, assim me parecia, que o mundo também se esvaziasse.
Ocorreu-me que há meses, exatamente desde a época em que ele parou de repor mercadorias, eu já não via na calçada em busca de um pouco de sol o rapaz entrevado que diziam ser seu irmão. Pensava nisso quando uma criança passou defronte o bar sem que Ximenes se movesse para lhe oferecer um pirulito.