Quando conheço, sinto que não pertenço e me perco

Conto inédito de Clarissa Comin
Ilustração: Mello
01/02/2022

I.
As ranhuras das maçãs e as pintas das bananas são suas impressões digitais, ou seja, jamais haverá dois padrões de cascas iguais. Conhecer a banana é dia. Despida de sua casca amarela, põe-se a nu seu corpo baunilha, evidente, sem grandes mistérios dantes. Devora-se tudo em poucos nacos, inclusive a casca, ótima para refogados. Conhecer a maçã é uma operação mais complexa, é noite. Seu miolo, ventre baunilha, quase pálido, é composto por duas metades espelhadas simetricamente (embora em uma delas sempre haja mais sementes que na outra). Sem sabor marcante, tendendo ao ácido, sobretudo se são as maçãs verdes, salienta-se o amertume de suas sementes, caso deseje dar cabo da fruta inteira.

II.
De longe, todas as bananas e maçãs são parecidas, salvo detalhes ínfimos. Não são os seres humanos isso também? Como ser vários num mundo feito para que sejamos um? Contrariar a Física e habitar dois lugares ao mesmo tempo. Existir em múltiplas versões de si sem precisar nascer outras vezes. Evitar a racionalização dos sentimentos e entregar-se à volúpia da dúvida. Contrariar Descartes. Partir das certezas às inquietações. Não saber fazer é o ponto de partida para fazer de outro modo. Catar os cacos pela estrada. Fabricar novos artefatos apenas para que se tornem cacos, seus e de quem quer que seja. A invenção.

III.
Quando me faço silêncio, faço-me também escuta, limpidez tenaz dos pensamentos. O silêncio torna audíveis os detalhes escondidos pelos ruídos do dia — furadeiras e betoneiras, a sede do concreto em converter-se pó. O dia é estratégico, planejado por arquitetos, homens de negócios e atletas de alta performance. Por isso posso dizer que o silêncio faz-me noturna, etérea, composta de um fluido feito da matéria dos sonhos, rarefeita, de gases nobres capazes de condensar as relíquias impressas nos silêncios sensatos desta noite que avizinha-se de seu fim.

IV.
Quando dia, faço-me ruídos, amarelos, gritos, berros, cantorias e risadas em cascata. Notificações. Dispositivos que denunciam o estado desperto, o não-sono. A despeito de sua luminosidade, o dia não traz a clareza dos contornos, mas sim a perda de controle. Consumir o que não é necessário. Cílios postiços, regimes, vibradores. Não consumir o que é necessário. Maçãs, espinafre, riachos e aves na sacada. Responder as chamadas não atendidas. Coloque no modo avião. Que horas são? Já posso sair? Ele está vindo? Falta muito? Ninguém tem tempo, anda logo! Aqui faz barulho, vamos para longe do Centro? Trens não são poéticos. E se tivesse um jatinho, melhoraria? Sala vip sem strip?

V.
O Sol amarelo dos trópicos confere-nos uma das maiores produções de bananas no mundo. República das bananas: em se plantando, tudo dá. Um golpe por semana. A naturalização da barbárie. Os latinos sem etiqueta, sempre fazendo arruaça na frente das visitas. Quem semeia vento colhe tempestade. Os regimes de chuvas controlados pela maior floresta do mundo. Na Amazônia não tem banana. Carmem Miranda era portuguesa. Nos fez famosos na gringa com suas roupas e chapéus de bananas. Canções de exportação. As manufaturas bacanas não ficam pra gente — café, chocolate e suco de laranja. São vendidas a preço de banana, quem dá mais? Macacos, várias raças, algumas em extinção (durante anos um amigo cuidou de um mico-leão-dourado sem que ninguém, a não ser seus pais, soubesse. O bichinho morreu mês passado e virou peça de museu). Na pré-escola, uma tia desmentiu que eles gostassem de bananas, embora as ilustrações dos livros de Estudos Sociais provassem o contrário. Embananou-se.

VI.
A maçã gosta de climas úmidos e gelados. Não temos tradição com esse tipo de fruta. Chega o verão e elas rareiam, quase vinte mangos o quilo, vêm todas da Argentina ou algo que o valha. A maçã do amor. Lá em casa era um acontecimento ter maçã, motivo de discórdia. Comia-se inteira. Os mais novos tinham direito a um quarto e os mais velhos aos miolos e às cascas. A deusa da Discórdia traz uma maçã na mão. Éris. Era uma vez e o livro da catequese mostrava uma ilustração assustadora em que Eva, numa posição lânguida e ousada, ouvia a serpente. Eva era linda, parecia a Vênus do Botticelli, um pouco mais magra (talvez os padrões de beleza já tivessem sido atualizados pela igreja do século 20). As imagens do Paraíso insinuavam que viveríamos em um clima tropical, apesar de todos parecerem terrivelmente loiros. Na catequese, ensinavam como uma mulher deveria se comportar. Poucas palavras, sisuda, de pernas fechadas, ereta. A mulher de deus é casta e não oferece as maçãs do rosto para ninguém beijar, além de jamais cobri-las com maquiagem. As santas das ilustrações pareciam ter as bochechas esfoladas por um rouge genético. Eram todas iguais. Eva, não. Eva era pálida, desfalecia ao lado da serpente vampiresca e parecia implorar por mais.

VII.
Maçãs e bananas são substantivos primitivos, isto é, não derivam de nenhum outro. Necessidades elementares: pão, fogo, casa. Necessidades suplementares: fast-food, ar-condidionado, jet ski. É curioso pensar que o contrário de primitivo seja civilizado. Após um acidente de moto minha prima ficou meio retardada e só assistia desenho animado, o dia todinho, sem parar, fazendo meus tios pagarem caro em assinatura de tevê a cabo numa época em que isso custava os olhos da cara. Depois do acidente ela também passou a nomear certas coisas através de paráfrases. Lembro vivamente de duas, a maçã e a banana, suas frutas favoritas. Maçã: aquela fruta levemente arredondada com um pequeno e fino cabo no meio. Banana: aquela fruta comprida coberta por uma casca amarela com manchas escuras. Nos desenhos animados, os macacos aparecem comendo uma delas. Nas suas exaustivas explicações ficava claro que ela não havia perdido vocabulário, pelo contrário, na verdade este se multiplicou. As horas mortas. A velocidade menos vezes três. Conversar com minha prima era um deleite maior que ler o dicionário. Furtivamente, minha tia pagava-me em balas a paciência que eu desconhecia. Meu sonho era ler os cadernos de minha prima, mas isso ainda era uma caça ao tesouro em expedições que duravam horas, dias e fracassavam. Ela queria ser escritora e eu, sem saber, debochava: os escritores escolhem as palavras certas e não as deixam fugir, ao contrário de você.

VIII.
É só depois de muitos anos que recupero a lembrança de minha prima e seu mundo verborrágico, talvez porque agora eu começo a escrever e sua história é a primeira a florescer. Mas olha, foram feitos inúmeros esforços para que sua afasia cessasse. Fonoaudiólogos, psicólogos, psiquiatras e espíritas. Expectativas suspensas. A menina seria cirurgiã cardiovascular, fetiche da família fodida, enquanto o irmão mais novo pirava em ser zen-budista. A ironia entre a verborragia e a precisão da linha cirúrgica. A ironia entre a verborragia e a circunspecção litúrgica. Todas as noites ela escrevia secretamente em seus cadernos. Rabisca, rabisca, rabisca. Dizia que a noite era propícia à escrita. Foram anos estudando seu comportamento até que, uma tarde, burlei o cerco e catei alguns cadernos para ler no banheiro. Qual o espanto? Sua escrita não tinha nada das paráfrases sinuosas do dia a dia. Na verdade, era comovente e filosófica:

Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida.

IX.
Como eu dizia, é preciso suspeitar do dia. A luz dura incide nos intervalos entre os prédios e as ruelas sufocadas. Essa luz opõe-se à sombra úmida que habita o interior dos prédios, rescendendo à lavanda e outros cheiros de gente velha. Ora, veja, mesmo o dia é invadido pelas notas noturnas, pela não-luz. O dia é lá-fora e a noite é aqui-dentro. À noite, no abismo do quarto, quando requer-se clareza para passar os acontecimentos em revista, cria-se um dia aqui-dentro. A rolagem dos fatos oscila em código binário, zero, um, zero zero, zero um. Fiz, não fiz, disse, não disse, foi, não foi. Outrora esse espaço era preenchido por rezas. As crianças costumam brincar com os interruptores antes de dormir, liga, desliga, liga, desliga. Acredita-se que algumas ainda contem carneirinhos. Deve ser um jeito de espantar o medo. Candelabros, abajures, spots, lanternas, lamparinas. Breu, escuro, trevas, cerração. Antes de dormir é possível acessar o espaço que antecede o sonho, embora ninguém nunca tenha voltado para dizer como é. Um poeta dizia que é ali onde residem as palavras justas (ou apenas as palavras fujonas?).

X.
Cercada pelo silêncio uso com contenção as palavras que ressonam em um pálido dicionário aquático. Para não perder o rigor, exercitam-se em uma hidroginástica coreografada pelas palavras mais velhas. Nesse dicionário, semelhante a um aquário, as visitas são reguladas e seguem um protocolo meticuloso de segurança. Eu mesma, apesar dos anos de prática e formações continuadas, não tenho carta branca para incomodá-las (sim, para elas qualquer visita é um transtorno, a saída de uma delas exige o realocamento das outras). O procedimento de captura é uma arte detalhada e cheia de artifícios, pois elas teimam e divertem-se em escapar. É preciso ser paciente e saber que se está lidando com bebês, que são compostos por pura água. Quando apanhadas, vistas mais de perto, vê-se que são úmidas, quase pegajosas, recém-saídas de uma hidratação profunda. Uma vez que são transpostas do mundo úmido e noturno que lhes é natural, são acordadas em um outro, distinto, amarelo e seco, diurno e tropical, feito de bananas. Mas não se pode esquecer a ambiguidade do dia. Algumas palavras repousam nesse sono ferrado há eras e demora até que sejam importunadas. Temo não saber o que fazer quando encontrá-las despertas, nuas e secas sobre a minha mesa. O uso indevido pode ressecá-las, advertem. O uso devido é permitido, ainda que isso as retese e, de tempos em tempos, precisem ser novamente afogadas em seu habitat natural. Isso é para que estejam anfíbias e possam recarregar-se da umidade noturna, feita de maçãs e outras frutas cujos nomes ainda é preciso inventar.

Clarissa Comin

É doutora em Estudos Literários, professora e escritora. Pesquisa literatura brasileira contemporânea e ministra oficinas de escrita. Tem dois livros publicados: vasto trovarr (2019), e nebulosas (2020). Além disso, tem textos e traduções publicados em coletâneas e revistas eletrônicas.

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