Poltrona 27

Trecho do romance inédito de Carlos Herculano Lopes
Ilustração: Marco Jacobsen
01/01/2011

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A noite estava escura e uma chuva fina, que havia começado pela manhã, não parava de cair. Era uma quinta-feira, véspera de feriado, já não me lembro qual. A rodoviária, como sempre acontece em ocasiões assim, estava lotada, com gente se acotovelando, num empurra-empurra dos diabos. Era como se o mundo fosse se acabar. Pela previsão da prefeitura, cerca de 100 mil pessoas deveriam deixar Belo Horizonte, como no meu caso, que ia para Santa Marta. Faço isso uma vez por mês, desde que comprei, da herança de minhas irmãs, os seus pedaços de terra deixados pelo nosso pai, morto depois de lutar com todas as forças contra um enfisema pulmonar, que nos últimos tempos praticamente o impedia de respirar sem o auxílio da bombinha, tornando a sua vida um inferno. As crises vinham tão fortes que uma vez, quando voltávamos do médico, tive de carregá-lo, pois ele não conseguiu subir a escada da casa, com menos de dez degraus, no Bairro da Floresta, em Belo Horizonte, onde vivia com minha mãe e uma irmã. Ao chegarmos à sala, depois de assentá-lo no sofá, ele segurou a minha mão e disse: Obrigado, meu filho, eu não agüentaria sozinho. Minha hora está chegando. Respondi-lhe: que isso, meu pai, o senhor ainda irá viver muito tempo, pare de falar bobagens, e saí dali, com desculpas de ir ao banheiro, onde lavei o rosto, tomei água, e consegui me controlar, pois não queria que me visse chorando. Acho que não percebeu, pois, quando voltei à sala, estava melhor e começamos a conversar. Depois é que fui embora. Mas aí já era bem mais tarde, quase noite.

Comprar as terras das minhas irmãs não foi uma transação difícil. Todas concordaram em vender suas partes para mim. A outra metade ficava para a minha mãe, que intermediou a transação. “Seu lugar é aqui, meu filho. Você cresceu aqui. Pegou passarinhos aqui. Criou seus carneiros aqui, brincou com seus amigos e andou a cavalo foi aqui. Jogou bolinhas de gude e soltou papagaio foi aqui. Pare com essa bobagem de querer outra terra, pois não vai dar certo.” Ela havia me dito, alguns meses antes, quando lhe falei que estava de olho numa pequena fazenda de uma amiga da família, quase na divisa com Itamarandiba, já entrando no Vale do Jequitinhonha. Também herança do seu pai, a dona a havia colocado à venda, pois não tinha tempo de administrá-la, nem de ir a Santa Marta com freqüência. E é com minha mãe que, desde então, tenho dividido sonhos e pequenas conquistas, como agora, quando começamos a plantar alguns sacos de brachiaria e estilosante, para quem sabe, daqui uns tempos, podermos sonhar com algum lucro.

E era para aquela terra, de onde saí aos 12 anos numa viagem de caminhão que durou três dias até Belo Horizonte, de carona com o tio Almerindo, vendedor de queijos e galinhas, que eu estava indo, naquela véspera de feriado de muita chuva, com gente saindo pelos ladrões na rodoviária de Belo Horizonte, onde parecia não caber mais ninguém. Como sempre acontece, havia comprado a poltrona 27, na janela, lado contrário do motorista, bem no meio do ônibus. Torcia para que nenhuma mulher com menino no colo, pois esses sempre acabam vomitando, fora o choro que arranjam a noite inteira, se assentasse ao meu lado. Também estava dispensando os bêbados, que sempre aprontam alguma, e rezava para o ônibus não ser assaltado, como vinha acontecendo com certa freqüência nos últimos meses.

Não vai ser uma viagem fácil, ainda mais com um tempo assim, pensei, e como faltavam alguns minutos para embarcar fui até o segundo andar da rodoviária, no bar da Jacira, onde, antes de quase todas as minhas idas para Santa Marta, eu passo para tomar uma Coluninha e uma cerveja. Além do mais, por ali, costumo encontrar uns amigos, ou fazer novos, como uma vez, quando conheci um veterinário de Uberlândia que me deu ótimas dicas sobre silagem. Não cheguei a colocá-las em prática, mas aprendi muito, e até comprei um livro sobre o assunto, que o moço havia indicado, pouco antes de nos despedirmos. Só os tira-gostos daquele bar é que não prestam. Servem uma lingüiça de supermercado, encharcada de gordura, quando não um quibe, ou espetinhos de frango, que esquentam no microondas e ficam chochos, borrachudos e sem gosto nenhum. Também aproveito para bater um papo com Jacira, minha antiga conhecida, mas que naquela noite estava calada, bem diferente da mulher alegre e comunicativa que sempre foi. Alguma coisa, com certeza, tinha acontecido, e fiquei curioso para saber o que era.

O bar, por incrível que pareça, estava vazio naquela hora, embora fosse véspera de feriado e a rodoviária mais parecesse um formigueiro. Até um grupo de estrangeiros, uns 15 homens e mulheres loiros, com pinta de alemães, vi andando com suas mochilas nas costas e os inconfundíveis sacos de dormir, com os quais em qualquer lugar se ajeitam. Apenas dois casais, assentados nas mesinhas, tomavam cerveja quando cheguei ali, e um deles parecia discutir, pelos gestos que faziam. A moça, que se apoiava em uma bolsa colocada sem nenhuma cerimônia em cima da mesa, fumava sem parar e encarava o rapaz, que tentava acalmá-la, passando a mão nos seus cabelos. Muito compridos e negros, esses quase batiam na sua cintura. Se não estivesse fumando, nem bebendo, eu arriscaria dizer que era evangélica. O moço, bem gordo, estava vestido com uma camisa do Atlético, modelo antigo. Tinha o braço esquerdo tatuado e também fumava, soltando a fumaça para cima, de um jeito que parecia nervoso. O outro casal se beijava, como se nada mais no mundo importasse para eles, a não ser aquele momento. Estavam na mesa do canto.

Estou te achando triste, Jacira, aconteceu alguma coisa?, perguntei a ela, que sorriu sem graça, fincou os olhos no chão, ficou uns segundos em silêncio e disse: a vida não está nada fácil. Daí em diante, nos 20 minutos em que estive ali, até finalmente embarcar no ônibus de Itamarandiba, que lá pelas três e meia, quatro da manhã, se tudo corresse bem, me deixaria em Santa Marta, aquela mulher baixinha, de cabelos negros, sempre presos por um coque, contou que, de uns tempos para cá, andava deprimida, sem ver muito sentido nas coisas. Até a um psiquiatra havia ido, incentivada por uma amiga, que também sofria de depressão. Há mais de 10 anos estou aqui, atrás deste balcão, e até agora consegui guardar pouco dinheiro. Dá uma frustração danada, você não imagina, disse, com o moral lá embaixo. Mas não era só isso. Um sobrinho que ela criava desde a morte da mãe, sua única irmã, dera para beber, fumar maconha, e até o trabalho em um salão de beleza, no centro da cidade, ele havia deixado, logo depois de ter se formado no Senac com uma das melhores notas da turma. Tinham dado uma medalha para ele, com seu nome gravado. Uma foto sua, com ela no pescoço, saiu no jornal, que ela mandou colocar em um quadro. Mas, de uns tempos para cá, havia começado a andar com más companhias, uns rapazes lá do seu bairro, a Nova Cachoeirinha, onde moravam em um barracão alugado, nos fundos da casa de um pastor. Esse era baiano, de Feira de Santana. Passava seis meses em Belo Horizonte, e os outros nos Estados Unidos, com o bispo Marcelo, como havia lhe dito, sem disfarçar o orgulho nem perder as esperanças de levá-la para a sua igreja, no Bairro do Horto, onde pregava duas vezes por semana.

Tenho medo de que a polícia acabe com meu sobrinho, como aconteceu na semana passada, quase na porta da nossa casa, com um colega dele, que nem de maior ainda era e ficou lá, no meio da rua, todo sujo de sangue, igual um cachorro sem dono. Nem uma vela deixaram que a gente acendesse para o menino, disse a Jacira. Contou também, depois de levar outra cerveja para o casal, que parecia ter se acalmado, embora a mulher não parasse de fumar, que era de São José do Goiabal, mas vivia em BH há muitos anos, sem nunca ter se adaptado bem aqui, onde, durante esse tempo todo, só havia feito uma amiga, a Cleusa Helena, que também era garçonete e com a qual, às vezes, saía aos domingos, quando iam ao Parque Municipal, ou então, aos sábados, a um forró lá mesmo no seu bairro, onde até o Mangabinha já havia tocado. Tinha sido aquela amiga que havia lhe falado do psiquiatra, doutor Osmar, pois uma vez, quando teve uma crise nervosa, o tinha procurado, também por indicação de uma colega. Um dia, no forró, chegou a arranjar um namorado, um tal de Márcio. Mas ele, no final das contas, só queria saber de explorá-la, tomar o seu dinheiro, e ela acabou terminando com ele, que custou a desistir e, até ver que tinha mesmo levado um chute na bunda, ainda ficou uns dois meses ligando para sua casa, às vezes de madrugada, com voz de bêbado, enchendo o saco. Inclusive ameaças, falando que ia me matar, o cretino chegou a fazer, você acredita? Até na delegacia tive de ir.

E Jacira disse ainda que, com a ajuda de Deus e de Nossa Senhora Aparecida, quando saísse daquela depressão iria comprar um sítio na sua cidade, para onde pretendia se mudar depois da aposentadoria, que não demoraria muito para chegar, pois tinha sido fichada há 32 anos. E era para conseguir esse pedaço de terra que trabalhava dia e noite, como uma louca, ali naquele bar, e como cozinheira, num restaurante de uns turcos na Avenida Santos Dumont. Lá começava às nove da manhã e ficava até às seis da tarde, fazendo tabules, quibes, grão-de-bico, abobrinha recheada, quando então venho para cá, pois é pertinho e não gasto dinheiro com condução. Só não sabia se o sobrinho, que era tudo para ela, iria querer acompanhá-la quando se mudasse. Achava que não, pois tinha nascido em Belo Horizonte, estava acostumado aqui, e talvez não se sujeitasse a morar na roça. Ter de fazer serviços pesados, ficar o dia inteiro exposto ao sol e, à noite, sem opção, ser obrigado a ir cedo para a cama. Não ia ser fácil convencê-lo.

Também esperar o que lá do Goiabal, onde não tem nada de atrativo para uma pessoa jovem e cheia de vida como ele? Se ao menos conseguissem montar um salão por lá, quem sabe daria certo, e o sobrinho se adaptaria…?, disse a Jacira, e nos instantes seguintes, até que paguei a conta, aquela mulher, já mais animada, afirmou que, de qualquer jeito, iria ficar numa boa, sem deixar a tristeza tomar conta dela, porque senão acabaria morrendo, pois era sofrimento demais para uma pessoa só. No mês que vem, quando você passar aqui de novo, vou estar melhor, com uma cara mais alegre. Em seguida me estendeu a mão, perguntou de onde eu era, pois converso com tanta gente aqui, que acabo me esquecendo…. Disse ainda: vai com Deus, e desci correndo a escada rolante, que estava desligada. Faltavam menos de cinco minutos para a próxima partida, e a Prefeitura de Belo Horizonte desejava a todos uma boa viagem.

Carlos Herculano Lopes

O escritor e jornalista Carlos Herculano Lopes nasceu em Coluna (MG), em 1956. É repórter do EM Cultura, do jornal Estado de Minas, onde também assina uma crônica às terças-feiras. É autor dos romances A dança dos cabelos, vencedor dos prêmios Guimarães Rosa, 1984, e Lei Sarney, como autor revelação de 1987; Sombras de julho, prêmio V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira de 1990; O último conhaque e O vestido, finalista do Prêmio Jabuti 2005. Escreveu também três livros de contos, O sol nas paredesMemórias da sede, ganhador do prêmio Cidade de Belo Horizonte em 1982, e Coração aos pulos, prêmio Especial do Júri da União Brasileira de Escritores em 2002. Acaba de lançar a coletânea de crônicas A mulher dos sapatos vermelhos (Geração Editorial). O romance Poltrona 27 será lançado em breve pela Record.

Rascunho