Poemas de Medbh McGuckian

Leia os poemas traduzidos "Fumaça", "A máquina “Singer”", "Capitão Lavanda", "O currach não precisa de baías" e "O chalé de Marconi",
Medbh McGuckian, poeta da Irlanda do Norte
01/10/2022

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Smoke

They set the whins on fire along the road.
I wonder what controls it, can the wind hold
that snake of orange motion to the hills,
away from the houses?

They seem so sure what they can do.
I am unable even
to contain myself, I run
till the fawn smoke settles on the earth.

Fumaça

Eles tocam fogo nos juncos ao longo da estrada.
Fico imaginando quem controla isso, conseguirá o vento carregar
aquela ágil serpente alaranjada para as colinas,
para longe das casas?

Eles parecem seguros do que podem fazer.
E incapaz, até,
de me conter, eu corro
até que a fumaça bege repouse na terra.

The “Singer”

In the evenings I used to study
at my mother’s old sewing-machine,
pressing my feet occasionally
up and down the treadle
as though I were going somewhere
I had never been.

Every year at exams, the pressure mounted—
the summer light bent across my pages
like a squinting eye. The children’s shouts
echoed the weather of the street,
a car was thunder,
the ticking of a clock was heavy rain…

In the dark I drew the curtains
on young couples stopping in the entry,
heading home. There were nights
I sent the disconnected wheel
spinning madly round and round
till the empty bobbin rattled in its case.

A máquina “Singer”

Nas tardes eu costumava estudar
na velha máquina de costura de minha mãe,
vez por outra acionando com meus pés
o sobe e desce do pedal
como se estivesse indo pra algum lugar
onde nunca estive.

Todos os anos, na época das provas, a pressão crescia —
a luz do verão inundava minhas páginas
como um olho semicerrado. Os berros das crianças
ecoavam o ar da rua,
carros eram trovões,
e o tic-tac do relógio era temporal…

No escuro eu entreabria as cortinas
vendo casais jovens, parando na entrada,
voltando para casa. Havia noites
em que fiz a manivela desencaixada
rodar loucamente, girando e girando
até fazer chacoalhar a bobina vazia.

Captain Lavender

Night-hours. The edge of a fuller moon
wait among the interlocking patterns
of a flier’s sky.

Sperm names, ovum names, push inside
each other. We are half-taught
our real names, from other lives.

Emphasise your eyes. Be my flare-
path, my uncold begetter,
my air-minded bird-sense.

Capitão Lavanda

Tarde da noite. A extremidade de uma lua cheia
espera entre as texturas entrelaçadas
de um céu de aviador.

Nomes de esperma, nomes de óvulos, penetram
uns nos outros. Somos meio-informados
de nossos verdadeiros nomes, de outras vidas.

Realce seus olhos. Seja a luz
de meu caminho, meu degelado progenitor,
meu sentido-de-pássaro-de-mente-avoada.

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The currach requires no harbours

Infinite racy stir of water.
The rushes became too dense
in the narrow band of soft earth.

A strange hill rose out of the waves,
the island alive and breathing
with delicacy and a sense of space.

There was no current strong enough
to carry me away. There was no street.
The low-slung horizon, never perhaps before so easy,

sabotaged the once-upon-a-time
in a mood of misgiving or the melancholy
of all fragments. I saw her lover

dressing up as bird, his bride, his vigour,
her old detached griefs and new overlappings,
before she was betrayed by the bare branches.

O currach[1] não precisa de baías

Uma agitação infinita das águas.
Os juncos, muito densos
na estreita faixa de terra macia.

Uma estranha montanha emerge das ondas,
uma ilha viva que respira
com delicadeza e noção de espaço.

Não havia correnteza forte o bastante
para me levar dali. Não havia ruas.

O horizonte baixo, talvez jamais tão suave,

Sabotou o era-uma-vez
num espírito de apreensão ou de melancolia
de todos os fragmentos. Eu vi o amante dela

vestir-se de pássaro, a noiva, seu vigor,
suas antigas mágoas, destacadas, e novas sobreposições,
antes de ser traída por galhos nus.

Marconi’s cottage

Small and watchful as a lighthouse
a pure clear place of no particular childhood,
it is as if the sea had spoken in you
and then the words had dried.

Bitten and fostered by the sea
and by the British spring,
there seems only this one way of happening,
and a poem to prove it has happened.

Now I am close enough, I open my arms
to your castle-thick walls, I must learn
to use your wildness when I lock and unlock
your door weaker than kisses.

Maybe you are a god of sorts,
or a human star, lasting in spite of us
like a note propped against a bowl of flowers,
or a red shirt to wear against light blue.

The bed of your mind has weathered
books of love, you are all I have gathered
to me of otherness; the worn glisten
of your flesh is relearned and reloved.

Another unstructured, unmarried, unfinished
summer, slips its unclenched weather
into my winter poems, cheating time
and blood of their timelessness.

Let me have you for what we call
forever, the deeper opposite of a picture,
your leaves, the part of you
that the sea first talked to.

O chalé de Marconi[2]

Pequeno e vigilante como um farol
lugar puro e claro de nenhuma infância em particular,
é como se o mar falasse em você
e depois as palavras secassem.

Mordido e alimentado pelo mar
e pela primavera britânica,
parece que só pode acontecer assim,
e um poema provando que assim foi.

Agora que estou perto o bastante, abro meus braços
para suas paredes grossas como as de um castelo, e vou aprender
como usar sua selvageria enquanto, mais delicada que beijos,
tranco e destranco sua porta.

Talvez você seja um deus das coisas,
ou uma estrela humana, que perdura, apesar de nós
como um bilhete deixado junto a um jarro de flores,
ou uma camisa vermelha para ser vestida contra o claro azul.

O leito de sua mente maturou os
livros de amor, e você é tudo o que colhi,
para mim, da alteridade; o brilho desgastado
de sua carne é reaprendido e novamente amado.

Mais um desestruturado, celibatário e incompleto
verão que introduz seu clima expansivo
em meus poemas de inverno, enganando o tempo
e o sangue da atemporalidade.

Deixe-me tê-lo para o que chamamos
de para sempre, o profundo oposto a uma pintura,
suas saídas, aquela parte sua
com a qual o mar falou primeiro.

Notas

[1] Currach é um típico barco a remo (com versões mais recentes a motor) da costa oeste da Irlanda, de baixo calado, em geral com casco de madeira ou, por vezes, de couro ou mesmo lona. É usado tanto no mar quanto em rios.

[2] O italiano Guglielmo Marconi (1874-1937), o inventor do rádio, era filho de mãe irlandesa, se casou com uma irlandesa e realizou muitos de seus experimentos e exibições na Irlanda.

Medbh McGuckian
Nascida em família católica em Belfast, na Irlanda do Norte, Medbh McGuckian (1950) começou a escrever poemas muito cedo, ganhando seu primeiro prêmio importante com apenas 19 anos (British National Poetry). Desde então, ela tem se destacado como uma das principais e mais influentes vozes femininas da poesia irlandesa contemporânea.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho