Poemas de Lucia Fonseca

Leia os poemas "Janelas", "Lembrança", "Primavera, hemisfério sul" e "Dueto"
Lucia Fonseca
01/07/2022

Janelas

I
Minha janela é uma alegria sobre a rua.
Ela derrama na calçada o telhado e a amendoeira
e coloca no horizonte o Corcovado.
Minha mãe olha o Cristo e diz se vai fazer sol ou chuva
e este é um segredo entre os dois.

De manhã, o sol fura a folhagem
e vem se aninhar aos pés da cama desfeita como um gato amarelo.
Sou pequena e subo na cama dos meus pais
para brincar com os lençóis
e agarrar a poeira que dança nos raios.
A amendoeira é um vitral verde picotado de pios.

Nenhuma janela é igual à minha.
Nenhuma outra ouviu minha mãe entrando no quarto
para me acordar: “Bom dia flor-do-dia!
Eu pensava em minha mãe como numa Rainha
e eu era princesa por empréstimo.

II
Um dia mudei de quarto.
Agora vejo o quintal.
A janela dos fundos tem o tanque, com a bacia de anil.
Tem o balanço, com o pé de maracujá
e o barulho da água caindo na cisterna.
O fundo do quintal tem tudo isso, mas não tem o sol.
Ainda assim a bacia de anil é um pingo de céu dentro de mim.

Lembrança

Quando te foste era janeiro:
calor ardente entre sepulturas
céu branco tremendo
sobre as asas dos anjos
ruído de pás e areia entre pedras.

Quando te foste era janeiro:
a mosca pousou no filó
que cobria teu rosto.
Só pude afastá-la, perdoa
não pude evitar que pousasse.

Primavera, hemisfério sul

A primavera é conhecida
pela falta de juízo.
Às vezes faz frio de inverno,
às vezes calor de verão.
Por vezes chove
ou neva.
Nasci numa primavera do hemisfério sul
quando as jabuticabas de outubro
inchavam sob a chuvarada.
No meu aniversário sempre chovia
e eu pensava que os colegas não viriam.

Nas noites quentes
revoadas de cupins entravam pela janela
e dançavam em volta das luzes.
E eu tinha pena porque mamãe matava todos eles
ou quase,
com uma bacia cheia d’água
erguida bem alto em direção ao teto /às luzes do teto.
Enquanto eles se afogavam
mamãe era uma sacerdotisa
cumprindo um rito.

Dueto

Minha vida transcorreu
num sonho não partilhado:
e eram ruas paralelas
com números infinitos
ruas e casas de assombro
cercadas de sono e pedras.

Mas dois pássaros cantavam
dividindo a madrugada
e entre as raízes e a terra
alguém desenhava folhas
preparando a primavera.

Lucia Fonseca

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). Tem nove livros publicados, entre poesia, romance e memórias. Recebeu o Prêmio Emílio Moura 1980, o Cecília Meireles 2011 e algumas menções em poesia; em romance, foi duas vezes finalista da Bienal Nestlé de Literatura e uma vez do Prêmio Casa de las Américas (Havana, Cuba, 1990).

Rascunho