Poemas de Donald Justice

Leia os poemas traduzidos "Anotações de ano-novo", "Vaga memória da infância", "Notas brancas", "Ausências", "Os avós" e "A confissão"
Donald Justice, Poeta americano
27/03/2017

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Lines at the New Year

1
The old years slips past
unseen, the way a snake goes.
Vanishes,
and the grass closes behind it.

2
No clouds — and the grayblues
subside into saffron.
Delicately they subside,
into the saffron.

Anotações de ano-novo

1
Os velhos anos deslizam
sem ser notados, como uma cobra que
Desaparece,
a grama se fechando atrás dela.

2
Não há nuvens — e os cinzas azulados
se transfiguram em cor de açafrão.
Delicadamente se transfiguram
em cor de açafrão.

…..

Vague memory from childhood

It was the end of day —
Vast far clouds
In the zenith darkening
At the end of day.

The voices of my aunts
Sounded through an open window.
Bird-speech cantankerous in a high tree mingled
With the voices of my aunts.

I was playing alone,
Caught up in a sort of dream,
With sticks and twigs pretending,
Playing there alone

In the dust.
And a lamp came on indoors,
Printing a frail gold geometry
On the dust.

Shadows came engulfing
The great charmed sycamore.
It was the end of day.
Shadows came engulfing.

Vaga memória da infância

Foi no fim do dia —
Vastas distantes nuvens
No zênite que escurecia
No fim do dia.

As vozes das minhas tias
Ecoando através de uma janela aberta.
E a conversa de pássaros mal-humorados numa árvore alta
Se misturava às vozes das minhas tias.

Eu, brincando sozinho
Como numa espécie de sonho,
e varas e galhos comigo, atuando,
Brincando, ali, sozinho

Na poeira.
E uma lâmpada se acendeu dentro da casa,
Imprimindo uma frágil e dourada geometria
Sobre a poeira.

Sombras chegaram engolfando
O grande e encantado plátano.
Foi no fim do dia.
Sombras chegaram engolfando.

…..

White notes

1
Suddenly there was a dress,
Inhabited, in motion.

It contained a forest,
Small birds, rivers.

It contained the ivory
Of piano keys,
White notes.

Across the back of a chair
Skins of animals
Dried in the moon.

2
It happened.
Your body went out of your body.

It rose
To let the air in,
The night.

From the sheets it rose,
From the bare floor,
Floating.

Over roofs,
Smaller and smaller,
Lost.

Entangled now
In the cold arms
Of distant street lamps.

3
The city forgets where you live.
It wanders through many streets,
And the streets turn, confused,
Upon one another.

Parks have deserted themselves.
All night, awnings are whipped
And cannot remember.

O forgotten umbrella…
Darkness saw you, air
Displaced you, words
Erased you.

4
And afterwards,
After the quenching of the street lamps,
Long after the ivory could have been brought back to life by any touch.

Afterwards, when I might have told you
The address of your future.
Long after the future.

When the umbrella had been closed forever.
Then, when not even the moon
Would have the power to bruise you any more.

Then, in another time.

Notas brancas

1
De repente havia um vestido,
Desabitado, em movimento.

Ele continha uma floresta,
Passarinhos e rios.

Ele continha o marfim
Das teclas do piano,
Notas brancas.

No encosto de uma cadeira
Peles de animais
Curtidas sob a lua.

2
Aconteceu.
Teu corpo deixou teu corpo.

Ele se elevou
Para que entrasse o ar,
A noite.

Desde os lençóis ele se elevou,
Desde o chão de tacos,
Flutuando.

Sobre os telhados,
Menor e menor,
Perdido.

E agora enredado
Nos braços frios
Das distantes lâmpadas dos postes.

3
A cidade se esquece de onde você vive.
Ela vagueia por muitas ruas,
E as ruas se viram, confusas,
Umas sobre as outras.

Parques se tornaram desertos.
Por toda a noite, toldos são surrados
E não conseguem se lembrar.

Oh, guarda-chuva perdido…
A treva te viu, o ar
Te desalojou, palavras
Te apagaram.

4
E depois,
Depois que se extinguiram as luzes dos postes,
Bem depois do marfim ter voltado à vida após alguém tocá-lo.

Depois, quando eu deveria ter te explicado
Qual seria o endereço do seu futuro.
Bem depois do futuro.

Quando o guarda-chuva para sempre se fechou.
E então, quando nem mesmo a lua
Vai ter o poder de te causar mais dor.

E então, num outro tempo.

…..

Absences

It’s snowing this afternoon and there are no flowers.
There is only this sound of falling, quiet and remote,
Like the memory of scales descending the white keys
Of a childhood piano — outside the window, palms!
And the heavy head of the cereus, inclining,
Soon to let down its white or yellow white.

Now, only these poor snow-flowers in a heap,
Like the memory of a white dress cast down…
So much has fallen.
And I, who have listened for a step
All afternoon, hear it now, but already fallen away,
Already in memory. And the terrible scales descending
On the silent piano; the snow; and the absent flowers abounding.

Ausências

Nesta tarde neva e não há flores.
Há apenas este som de queda, sereno e longínquo,
Como a memória das escalas descendentes das teclas brancas
De um piano da infância — do lado de fora da janela, palmeiras!
E a pesada cabeça do cactus, se inclinando,
Para em breve perder seus brancos ou branco-amarelados.

Agora, apenas um montinho com estas pobres flores de neve.
Como a memória de uma humilhação de vestido branco…
Tanta coisa se foi.
E eu, que por toda a tarde
Ouvi passos, os ouço agora, mas já idos,
Já na memória. E as terríveis escalas descendentes
no piano silencioso; a neve; a ausência abundante de flores.

…..

The grandfathers

Why will they never sleep?
John Peale Bishop

Why will they never sleep?
The old ones, the grandfathers?
Always you find them sitting
On ruined porches, deep
In the back country, at dusk,
Hawking and spitting.
They might have sat there forever,
Tapping their sticks,
Peevish, discredited gods.
Ask of the traveler how,
At road-end, they will fix
You maybe with the cold
Eye of a snake or a bird
And answer not a word,
Only these blank, oracular
Head-shakes or head-nods.

Os avós

Por que eles jamais dormirão?
John Peale Bishop

Por que eles jamais dormirão?
Os velhos, os avós?
Você os vê sempre sentados
Em varandas arruinadas, longe
No interior distante, ao cair da tarde,
Pigarreando e cuspindo.
Eles parecem estar desde sempre ali sentados,
Batucando em suas bengalas,
Rabugentos, desacreditados deuses.
Querendo saber do viajante como,
No fim da jornada, ele se estabelecerá
Você, talvez com os olhos frios
De uma serpente, ou de um pássaro
Sem responder palavra,
Além de inexpressivos e oraculares
Movimentos de sim e não com a cabeça.

…..

The confession

You have no name, intimate crime;
There is nothing to whisper.
You have fled across many pillows,
But you leave nothing behind.

Dressed in the silence you were sworn to,
You passed without recognition.
No door holds you, no mirror;
I am the lone witness.

You have escaped into smoke,
Into the dark mouths of tunnels.
Once in the streets you were safe,
You were one among many.

A confissão

Você não tem um nome, íntimo crime;
Não há o que sussurrar.
Você viajou por muitos travesseiros,
Mas nada deixa para trás.

Envolto pelo silêncio que jurou manter,
Você passou sem ser reconhecido.
Nenhuma porta o deteve, nenhum espelho;
Eu sou a solitária testemunha.

Você escapou na fumaça,
Pelas negras bocas dos túneis.
Antes você se sentia seguro nas ruas,
Você era um em meio a muitos.

Donald Justice (1925-2004)
Foi um poeta de poetas: muito admirado por seus pares, era um artesão perfeccionista no trato com as palavras, e totalmente avesso às badalações do mundo literário. Ganhou, entre muitos outros prêmios, o Pulitzer de 1980. É pouquíssimo conhecido no Brasil, o que é uma pena.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho