Poema de Fernando Paixão

Leia o poema inédito "Passos em Firenze"
Ilustração: Mello.
27/11/2018

Passos em Firenze

Porque o ato de respirar conjura
sentenças com o clarear do dia
abrir os olhos começa num ponto
zero do sono, tateio leve, zonzo,
heterônimo. Chove, chove, chove.
O tom cinzento das montanhas
é cortado por pássaros, o álcool
da hora matutina vacila
ao contato do linho vertical.
Insistente, o céu deixa de ser
urna abstrata.

Do alto, pode-se ver campânulas
coroando a linha dos telhados.
Ao longe predomina o tom ocre
suspenso no cimo
de pórticos e pilares. Os edifícios
gozam de particular eternidade.
As guerras de povos inimigos
já não consomem os taludes
como em outros séculos,
nem a claridade espadana o sangue
dos derrotados.

O Duomo eleva-se convicto
de sua magnitude geométrica,
adornado de retas e círculos
em louvação. Chove. Chove.
A água incita uma onda de sortilégio
que sobe das pedras.
E penso na passagem das horas
como um orvalho acolhido
nos ombros:
será então possível tomar este dia
por uma data sensível, bicuda,
atenta aos cavos das ruas?

A cidade veste outra intimidade
quando a garoa persiste,
parece um animal enjaulado
esmorecido sob as nuvens.
Acolhido no fluxo das esquinas
e dos rostos flutuantes,
passeio e procuro o presságio
dos pequenos recantos.
Sigo o batido das calçadas
e me protejo nos beirais.

Os guarda-chuvas dos turistas
pelejam inquietos,
igual a cogumelos dançantes
espiam os musgos do céu.
Na Ponte Vecchio, casacos
movem-se aleatórios, atraídos
pelo espetáculo das vitrines.
Por debaixo, corre o rio indiferente
salpicado de gotas
e esquecido das águas renascentistas.

Entro pela Via Calimala,
de tão diversos palacetes,
mas viro à direita, indeciso,
até chegar à Piazza della Signoria.
E encontro o espanto: a cabeça
decepada de Medusa
erguida em triunfo na mão de Perseu,
lembra um troféu irritado.
Sob o punho vencedor
pende a face horribilis,
devorada por serpentes famintas.

Estátua de rocha encarnada,
Perseu relaxa o corpo,
mas com a espada à espreita,
como se a si mesmo perguntasse:
De que vale a cabeça sem o resto?
O que sentes agora, de olhos vazados?
E emenda logo com a resposta:
— Aceita o destino que te cabe,
mortal suspiro dos encantos,
e deixa arder em sangue
o que ainda sobra do teu rosto.

Parado (quase em pedra, digo),
observo algum tempo a figura
no alto, recolho da antiga cena
uma adivinha fechada,
ainda não fixada no círculo
de uma frase qualquer.
Presume o segredo cúmplice
de um homem e uma mulher
levados ao extremo dos corpos,
obedientes ao vaticínio dos deuses
devorados pelo ciúme.

Fica o horror abraçado à forma,
desfaz a pedra e veste a lenda,
ainda fresca e intensa.
Brilha agora com a chuva matinal
e continua a cegar nossos olhos.

Guardo a imagem no bolso,
retomo o caminho e sigo.

Fernando Paixão

Nasceu em Portugal. No ensaísmo, publicou Narciso em sacrifício (2003), sobre a obra poética de Mário de Sá-Carneiro, e Arte da pequena reflexão (2014), sobre o gênero do poema em prosa. Estreou na poesia em 1980 e desde então publicou seis livros, o mais recente deles, em 2015, Porcelana invisível.

Rascunho