Os matadores

Conto inédito de Frei Betto
Ilustração: Denise Gonçalves
01/09/2023

Ao entrar no bar do Onça, Mauro avistou-o à mesa ao fundo. Reparou que, entre os poucos fregueses, era o único ali a não usar máscara de proteção contra a pandemia. Trazia na memória a senha de identificação (“blusão preto de couro”) e a recomendação (“não ria do nome dele”).

O pistoleiro fumava atento ao celular; sobre a mesa, copo e garrafa de cerveja. Tinha olhos claros, luzidios, cabelos pretos encaracolados. A camisa entreaberta junto à gola deixava entrever a corrente de ouro no pescoço e o crucifixo dourado se destacava no peito cabeludo. Mauro se sentiu inseguro. Nunca havia se aproximado de um tipo como aquele. Ou seria medo? Como um matador afamado e temido suportava ser tratado por nome de mulher? Tirou o chapéu cowboy de abas largas e, com a mesma mão, coçou a careca. A outra segurava uma pasta.

Acercou-se, reverente, com o chapéu comprimido ao peito pela mão direita. Tinha a testa larga queimada pelo sol e, nos olhos, a expressão assustada era de quem pisava em terreno minado. Bom dia, meu nome é Mauro, venho por recomendação do Altino, disse balbuciante. O homem empinou a cabeça, pousou o celular sobre a mesa e mirou o estranho de voz abafada pelo tecido verde da máscara que lhe encobria metade do rosto. Pois não, criatura. Amigo do Altino é meu amigo. Tome assento, fique à vontade. E se não se importar, posso ver a cara do senhor? Mauro abaixou a máscara até o pescoço. A barba rala deixava entrever os primeiros fios brancos. Os lábios finos contrastavam com o nariz adunco. Gosto de conhecer quem faz negócio comigo. Aceita um gole de cerveja?

Mauro agradeceu e fez sinal para o garçom enquanto puxava a cadeira. Pediu um refrigerante. Reparou que o parceiro de mesa tinha dedos finos e longos, e as unhas pareciam sujas de graxa. Você não usa máscara? Sou disso não. Já basta ter que andar de capacete quando piloto a moto. Como curtir meu cigarro com boca e nariz tapados? Concordo com o mandachuva lá de Brasília, essa onda não passa de uma gripezinha. E só ataca velhos. Não entendo esse alarde todo por causa de um vírus. Tem até prefeito obrigando comerciantes a fecharem as portas. Se a moda pega, vai ter muita quebradeira e muito desemprego. E vou lá eu andar de focinheira por aí? Me desculpa o jeito de falar. Respeito quem usa, como o senhor. Cada um sabe de si e toma seus cuidados. Eu me incluo fora dessa. Gozo de muito boa saúde. Nem resfriado pego. Nem bala de fuzil me derruba, disse batendo três vezes com os nós dos dedos na mesa. Mas me diga, vem no recado do Altino? Como ele está? Sim, do Altino, lá da fazenda Liberdade, na fronteira com Amazonas. Ele manda um abraço. Está muito satisfeito com o serviço que você prestou. Aquele fiscal de desmatamento há tempos o importunava. Agora o Altino abastece sem problemas as marcenarias da região. Aquela encomenda me deu trabalho, seu Mauro. Com funcionário do governo me cubro de cautelas. Nada de peneirar o homem com meu trezoitão. Esperei que ele fosse pegar estrada e afrouxei as rodas dianteiras do jipe dele pra dar conta do serviço. E pelo que sei, comentou Mauro, você teve êxito na empreitada. Sim, o carro se desgovernou e despencou numa ribanceira. O homem ficou tão moído que nem abriram o caixão no velório. E você não tem receio de contar essas coisas para um estranho como eu? Tenho não. Conheço o chão em que piso. Se o senhor é amigo do Altino, então é também meu amigo. Então, parceiro, sou todo ouvidos. Pode adiantar o assunto.

Apesar do calor abafado, Mauro sentia tremores pelo corpo. Misto de fragilidade e constrangimento. Como as aparências enganam! Quem diria que este homem, com esse olhar tão cândido e barba bem escanhoada, é um matador profissional? De onde tira tamanha coragem para viver da morte alheia? Não teme ser preso ou morto?

A família de Mauro, motivada pela propaganda de “Pra frente, Brasil!”, havia abandonado as terras gaúchas para se instalar na Amazônia na época em que a ditadura militar prometera lotear a região para quem se aventurasse a “transformar a floresta em área de progresso”. De grileiro voraz, o pai dele se fez poderoso latifundiário, graças aos incentivos fiscais do governo federal e a falta de fiscalização das condições de trabalho do enxame de aventureiros que acorria à região, atraídos pelo sonho de riqueza fácil. Muitos caíam nas redes do trabalho escravo. Sob promessa de bom salário, eram recrutados pelos “gatos” para trabalhar em garimpos e fazendas. Ali, ganhavam uma ninharia, abasteciam-se nos armazéns locais e, confiantes no crédito, se amarravam em dívidas que os impediam de partir em busca de vida melhor, a menos que lograssem o impossível, zerar o débito. O pai de Mauro montou uma madeireira para exportar troncos de árvores abatidas e abriu pasto para espalhar gado. Deixou aos filhos uma dúzia de fazendas em terras antes ocupadas por posseiros e aldeias indígenas.

É serviço próximo ou distante?, indagou o pistoleiro reduzindo o tom de voz. A meio caminho, respondeu, nem tão longe, nem muito perto, seu Fá… Fá… Mauro gaguejou por receio de pronunciar o nome. O breve silêncio foi quebrado pela voz de barítono do matador de aluguel: Fátima! E não me envergonho de ter nome de mulher. E antes que o senhor se morda de curiosidade, conto logo a origem do meu nome, disse ao levar o copo de cerveja à boca. Um friso de espuma branca gravou-se por um segundo em seu lábio superior, logo absorvido pelo movimento rápido da língua, ágil como a de uma serpente. Minha mãe queria menina. Aferrada em sua fé, devota de Nossa Senhora de Fátima, fez promessa de batizá-la com o nome da santa. Mas Deus não lhe deu ouvidos. E como o senhor vê com a luz dos próprios olhos, sou macho. Minha mãe achou por bem não trair a santa. Promessa é promessa. E se Deus quis diferente, assim haveria de ser, mas o nome do filho seria Fátima. E quem sou eu pra quebrar promessa de minha finada mãe! Nunca, nunca. Até porque a santa tem sido minha protetora. Conserva meu corpo fechado e me protege do mau olhado.

Fátima era filho de militar transferido do sudeste do país para o norte na época da intensa repressão do exército aos guerrilheiros embrenhados nas matas em torno do rio Araguaia. Desde criança ouvira o pai, ao beber com os amigos, gabar-se, rindo, do desespero dos prisioneiros nas sessões de tortura, e de como alguns se submetiam à humilhação, a ponto de comer as próprias fezes na esperança de salvar a vida e evitar a degola. Sem se importar com a presença do filho pequeno, descrevia o pavor das “terroristas” aprisionadas diante da imensa jiboia jogada na cela que ocupavam e de como elas excitavam os militares ao reagirem aguerridas quando despidas para serem estupradas. Mal completara dez anos de idade e Fátima já aprendera a atirar com a garrucha que ganhara de Natal.

Dito isso, cavalheiro, vamos ao que interessa. Não vai tomar seu refrigerante ou agora aceita um gole da minha cerveja? Mauro desanuviou-se de seus pensamentos, distantes de seus ouvidos, agarrou a garrafa de guaraná e bebeu a metade no gargalo. Abriu a boca em chiado, satisfeito por aplacar a sede, e se justificou: Agradeço, mas prefiro evitar álcool. Tenho que rodar mais de duzentos quilômetros depois do nosso acerto. E, com a pandemia, a vigilância nas estradas anda redobrada. Ao vir pra cá, fui parado três vezes pelos agentes de controle sanitário.

Então deixemos os entretantos e vamos aos finalmentes, retrucou o matador. Mauro se curvou sobre a mesa e disse em tom confidencial: trata-se de um assentamento de sem-terra cuja propriedade é avizinhada com a minha. Gente maltrapilha, invasores de fazendas, comunistas disfarçados de pobretões, e teimosos que nem o diabo! A terra ocupada por eles é um desperdício, não tem um pé de soja, só milho, feijão e hortas de legumes e verduras. Fiz oferta, eles disseram não. Dobrei, recusaram. Entornei-me de impaciência: cadê o título de propriedade? Vacilaram na hora do tranco e, em seguida, se aprumaram no direito de usucapião. Preciso daquela terra, vendo carne aos frigoríficos que exportam para a Europa, tenho planos de expandir o rebanho e ali corre um igarapé farto em água. Se não querem ceder por bem, não me resta outra saída senão apelar para seus préstimos, seu Fátima.

O pistoleiro acendeu um cigarro e encheu de novo o copo de cerveja. Degustou um gole, secou os lábios com o dorso da mão direita e deu uma profunda tragada: Bem, criatura, isso a gente resolve fácil, disse exalando a fumaça pelas narinas. Quantos eles são? Duas dezenas de famílias. E quantos devo despachar? Bastam os três líderes. Se der cabo deles, tenho certeza de que não fica uma família ali. Como não é gente graúda, faço baratinho pro senhor. Cinco mil por cabeça! Negócio fechado? Está de bom tamanho, reagiu Mauro. Daria pra pagar em duas vezes? Sem problemas. Metade antes do serviço e o restante quando as encomendas forem entregues nas mãos de Deus.

Como não gosto de correr riscos, posso fazer mais uma pergunta? Fique à vontade, seu Mauro, aqui o senhor é o patrão e eu, o empregado. Fátima percebeu que o fazendeiro empalidecera. Soltou de novo forte baforada de fumaça pelas narinas e apoiou os dois cotovelos na mesa: Solta o verbo, amigo! E se por acaso você for preso e obrigado a entregar o mandante? O pistoleiro se debruçou sobre a mesa para segredar com mais segurança: Isso está fora de cogitação. Há anos presto esse tipo de serviço aqui na Amazônia. Se eu der com a língua nos dentes, quase todo esse pessoal do agronegócio e da mineração vai pro brejo. Mas eles têm a polícia e a Justiça nas mãos. Essa gente da lei finge que não sabe de mim e eu finjo que nada tenho a ver com os defuntos encontrados por aí com a boca cheia de formiga. Já tenho mais de cem finados nas costas e continuo de ficha limpa. Não me meto em rolo. Só trabalho pra gente de grana como o senhor. E ai do polícia que se meter com fazendeiro graúdo nessa região! Não pensa que a minha proteção vem só da santa que me dá nome! Dito isso, me passe, então, as coordenadas.

Mauro tirou da carteira a foto ampliada do time de futebol dos sem-terra. Com a caneta esferográfica, fez um círculo em torno do rosto de cada um dos três visados. No verso, anotou a localidade. Que lugares essa gente costuma frequentar, seu Mauro? Bem, eles não são de circular muito. Ficam mais na roça deles. Mas sempre vão à feira de Juruti, aos sábados, e durante a semana ao armazém do Mané português e à loja de sementes e adubos.

Seu Fátima, em quanto tempo acha que dá conta do recado? Se o adiantamento me for entregue esta semana, penso que em dois ou três meses liquido a fatura. Encomenda no varejo é mais fácil. Mas esta do senhor é de atacado. Preciso de mais tempo. E como o senhor sabe, por causa desse vírus espalhado por aí a circulação anda meio restrita. Há muitos bloqueios nas estradas para impedir que veículo com placa de um município entre no outro. Mas tenho meus jeitos. Nunca desapontei um cliente.

Posso lhe passar o adiantamento agora, seu Fátima. Preciso apenas passar ali no banheiro. Pois não, fica à vontade. Pouco depois Mauro retornou com a pasta na mão esquerda e um pacote de maços de cigarro na direita. Está tudo aqui, amigo. Quer conferir ali no banheiro? Careço disso não, parceiro, sei a quem dou fé, disse o pistoleiro ao agarrar o pacote e enfiá-lo por dentro da camisa.

Também sou católico como você, seu Fátima. Vejo pela cruz no seu peito. E peço desculpas por meter minha colher na sopa do vizinho. Feito o serviço, não lhe fica nem um fiapo de culpa? De modo algum. Nenhum fiapo. Só fico arrependido quando sai notícias de que a vítima tinha filhos ainda por criar. Tenho dó de criança órfã. Mas eu e Deus temos o nosso jeito de acertar os ponteiros. Vou lá na igreja de Nossa Senhora de Fátima, conhece? Conheço sim, fica em Mamuru, costumo frequentar a festa de São João e doar uma vaca pro leilão da paróquia. Essa mesma. Lá tem uma bonita imagem de Nossa Senhora de Fátima. Sempre que me vejo naquela igreja, ajoelho diante da santa madrinha, desfio minhas rezas e depois entro na fila do confessionário.

Ilustração: Denise Gonçalves

Mauro entornou na boca o resto do guaraná e, ao pousar a garrafa na mesa, deu uma bafejada como se um gole de cachaça lhe tivesse ardido o peito. Não me diga! Você se confessa com o padre? Confesso a Deus, mas tem que passar pelos ouvidos do padre, senão careço de absolvição. Mas dessas encomendas você não fala, não é mesmo? Falo sim, confirmou Fátima arregalando os olhos de Mauro. Falo tudo. Tirar a vida dos outros nem sempre é crime. Às vezes é acidente. No meu caso, é acerto de contas. Se há crime, a culpa é do mandante. Entenda bem, não estou acusando o senhor de criminoso. Sei que está só em busca de justiça e a favor do progresso. Mas assim como meu trezoitão não fura a lei ao cuspir balas, pois não tem vontade própria, também não posso ser acusado de criminoso porque faço o que me encomendam. Não sou eu que decido. Como agora no nosso trato. Nada tenho contra seus vizinhos de cerca. Sou apenas a ferramenta que o senhor usa para fazer o serviço. Mas sei que matar é pecado. Isso aprendi de berço de minha finada mãe, que me ensinou rezas e os dez mandamentos. Por isso me confesso. Conta ao padre o que faz?, perguntou Mauro ao encará-lo com espanto. Conto tudo. Ele até pede detalhes. E você responde? Claro, estou ali pra rogar a misericórdia de Deus, e se lá de cima ele sabe de tudo da nossa vida, por que haveria de esconder meus pecados? E não tem medo de ser denunciado pelo sacerdote? De modo algum. Me fio no segredo de confissão. Se o padre me denuncia, quem fica mal na foto é ele. Como vai provar a acusação? Vai ter que acertar contas com Deus. Assim, recebo a absolvição, zero o meu débito com Deus e vou em paz, pronto para nova empreitada.

No sábado, Fátima colocou a máscara para se enfiar no meio do povaréu que circulava pela feira livre de Juruti, frequentada pelos sem-terra. Não para se proteger do vírus, que já tinha se disseminado por toda a região, causando 117 mortes, mas para dificultar sua eventual identificação. Incomodado, fungava por detrás do pano preto enquanto percorria os corredores de barracas no encalço de sua próxima vítima, cuja foto ele trazia enfiada no bolso interno do blusão preto. A multidão se espremia atenta às bancas de frutas, legumes e hortaliças. Quase ninguém usava máscara de proteção. Ao se aproximar da barraca de pastel e caldo de cana, avistou um rosto parecido. Puxou a foto e conferiu. Era um dos três. Conversava com outro homem enquanto merendava. O pistoleiro manteve-se à distância, sempre atento a seu alvo.

O agricultor arredou pé poucos minutos depois, carregado de sacolas. Na franja da feira, ajeitou tudo na carroceria de uma velha camionete, em cujas portas estava estampado: Assentamento Paulo Freire – MST. Fátima acavalou-se em sua moto, cobriu-se com o capacete preto e partiu no encalço dele. Sabia de antemão o trajeto que faria e havia preparado a cilada de véspera. Já na estrada de terra, o pistoleiro passou-lhe a frente. E mais adiante, num trecho ermo do caminho, logo após acentuada curva, ajeitou a armadilha: estendeu no leito da estrada um tronco seco de árvore e fingiu esforço para removê-lo. Em menos de cinco minutos a camionete completou a curva, o motorista viu o obstáculo e desacelerou o veículo. Estendeu a cabeça para fora da janela e advertiu: Calma aí, companheiro, vou ajudá-lo. Desembarcou e caminhou ao encontro do motoqueiro. Devia estar com raiz podre, comentou o agricultor. O pistoleiro fez que sim com a cabeça, balançando o capacete. Ao dar-lhe as costas para agarrar o tronco, Fátima sacou a arma e disparou dois tiros. Um na cabeça e outro no rumo do coração. O homem emborcou silente sobre o tronco e uma poça de sangue se dilatou na terra abaixo de seu rosto. Em seguida, o matador subiu na moto e tomou rumo.

Uma semana após a ida à feira, Fátima amanheceu com os olhos inchados e o corpo mole. Ao ligar o rádio de pilha, escutou no noticiário que o número de mortos na região por infecção do novo coronavírus havia chegado a 192. Apesar do calor amazônico, sentia um pouco de frio. Estendeu o braço em direção à prateleira na qual guardava o rádio, apanhou a garrafa de cachaça, puxou a rolha com os dentes, deu-se um alentado gole, devolveu a garrafa, puxou a toalha de banho estendida na ponta da rede e se cobriu. Deu-se mais um tempo de sono.

Uma hora depois, ao levantar da rede, teve certeza de que ficara gripado. A tosse seca lhe sacudia o peito e arranhava a garganta. O cigarro lhe amargou a boca. Buscou no armário do banheiro uma aspirina e preparou chá de hortelã com gengibre na expectativa de se sentir melhor para, no fim da tarde, ir a Mamuru se confessar na hora do Angelus. Mas, terminado o almoço, a moleza lhe tinha tomado todo o corpo e a tosse prosseguia insistente. Deitou-se na rede ansioso pela soneca.

Na manhã seguinte, despertou febril. Sentia dores nas costas. Tomou café forte e, com a ajuda de chá de raiz de alcaçuz, engoliu duas aspirinas. Ouviu no rádio que, na região, mais 23 pessoas tinham falecido nas últimas vinte e quatro horas, vítimas da covid-19. Montou na moto e foi em busca do doutor Ernesto, médico do Posto de Saúde.

Cadê o doutor Ernesto? Então o senhor não sabe?, perguntou-lhe a enfermeira do posto enquanto lhe tomava a temperatura. Ele não trabalha mais aqui. O que houve, Ana? Foi expulso do Brasil, seu Fátima. Ele e todos os seus colegas cubanos que trabalhavam pelo interior afora. Lá de Brasília o governo decretou não querer eles mais aqui. Nem teve tempo de arrumar as coisas dele. E agora, Ana, quem vai atender o povo do município? O prefeito tenta encontrar um substituto. Não é fácil. Quem vai querer trabalhar nesses cafundós para cuidar de lavradores e boias-frias? Os ricaços se viram de outro jeito, entram num teco-teco e vão se tratar lá em Belém. Pobre de quem é pobre!

Ana confirmou que ele tinha febre. Acho que o bicho pegou o senhor, seu Fátima. Que bicho? Ora, esse vírus que anda derrubando gente por tudo quanto é canto. O senhor tem usado máscara? Às vezes. Incomoda muito. Não dá pra curtir meu cigarro. O senhor tem que se defender, seu Fátima. O vírus já matou mais de duzentas pessoas aqui na região. Vou encaminhar o senhor à escola municipal. Vai ficar lá em observação. Na escola? Sim, como as aulas estão suspensas, e aqui no posto os únicos dois leitos continuam ocupados, a escola virou ambulatório de campanha. Todos os suspeitos de infecção são encaminhados pra lá. Já tem mais de setenta pessoas internadas lá, parece que todas derrubadas pelo vírus.

Deve ser mesmo gripe, Ana. Eu ainda nem cheguei aos cinquenta e sempre gozei de boa saúde. Estou fora da faixa de risco. O bicho é arisco, amigo, não faz seleção de idade nem de sexo. Até fazendeiros têm contraído a doença.

Dois dias depois de dar entrada no ambulatório, o pistoleiro, acometido de falta de ar, foi transferido de ambulância para a única cidade da região cujo hospital tinha dois respiradores. Ao dar entrada, soube que os dois estavam ocupados, bem como os doze leitos existentes, e que o número de vítimas fatais do vírus na região já somava 243. Foi socorrido com balão de oxigênio. Deitado na maca, com a roupa empapada de suor e de olhos arregalados no teto do corredor, Fátima teve medo. Medo de morrer ali e ter o corpo jogado anônimo numa vala comum, como vira na TV, sem sequer merecer uma reza e uma vela. Sem poder falar, exclamava mentalmente: Meu Deus, não me deixa morrer! Oh, Nossa Senhora de Fátima, me salva dessa. Não me leve agora, madrinha querida. Prometo por tudo quanto é santo mudar de vida. Nunca mais faço mal a ninguém. Largo dessa vida de encomendeiro. Busco trabalho honesto. Vou ser entregador de pizza. Juro por Deus! Jogo a arma no rio e até abandono a região. Tomo o rumo do sul à cata de emprego decente. Mas não deixa a dita cuja me levar agora, madrinha adorada. Se apegue aí com Deus pra ele encompridar meu prazo de validade.

No dia em que recebeu alta, após duas semanas internado, soube que o número de mortes na região pelo novo coronavírus havia atingido a marca de 508. Dois auxiliares de enfermagem levaram Fátima em cadeira de rodas até a porta da rua. Deixou o hospital cercado pelos aplausos dos funcionários.

Em casa, guardou resguardo durante cinco dias. No sexto, sentindo-se bem melhor, carregou a arma, tirou a foto de dentro do blusão de couro, fixou na mente a imagem dos outros dois líderes sem-terra, ajeitou o capacete sobre a cabeça, montou na moto e partiu para não deixar de cumprir o trato. Tinha em mente dar conta da encomenda de Mauro, receber a segunda metade do valor combinado e, em seguida, retornar à sua mesa no bar do Onça e ficar calmamente à espera do próximo cliente enquanto degustasse sua cerveja.

O número de mortos na região, vítimas da covid-19, havia chegado, naquela manhã, a 666.

Frei Betto

É autor de 77 livros, entre os quais os romances Tom vermelho do verde, Minas de ouro, Aldeia do silêncio, Um homem chamado Jesus, Hotel Brasil, todos editados pela Rocco. Premiado duas vezes com o Jabuti, é educador popular e assessor de movimentos sociais.

Rascunho