Oblivion

Conto de Miriam Mambrini
Ilustração: Ricardo Humberto
01/05/2009

O filme era um pouco estranho, mas um grande filme. Os críticos acharam, Lúcia também. Eu achei confuso. Chamava-se… bem, isso não importa, o que interessa é que o filme falava da memória. Ou do esquecimento, tanto faz, se você fala de um, está falando do outro, um nega o outro, são como os dois lados de uma moeda. Mas isso todos sabem, como sabem que o bem não existe sem o mal, nem o bonito sem o feio.

Voltando ao filme, o protagonista era um homem. Sim, disso tenho certeza, um homem. Ele estava sempre anotando o que lhe acontecia nuns pedaços de papel para não esquecer.

Por esses dias pensei no filme porque não achava a chave do carro. Tinha acabado de entrar em casa com a chave na mão e, em minutos, segundos, ela desapareceu. Pretendia guardá-la no lugar de sempre, um gancho que fica em cima da pia da cozinha. Quando ponho as coisas no lugar certo, eu as encontro, mas dessa vez a chave sumiu antes.

Foi então que me lembrei do filme, como é mesmo que se chamava? Oblivion. Será isso? Não, não deve ser, pois não achei essa palavra no dicionário, havia oblívio, mas não creio que o título do filme fosse esse. Talvez Amnésia. Sim, Amnésia.

Pensei que poderia fazer como o protagonista e anotar as coisas em papeizinhos. Por exemplo, anotaria que a chave do carro sumiu e que a chave-reserva é guardada na gaveta da mesinha de cabeceira para essa eventualidade. Colaria os lembretes nos ladrilhos da cozinha para que me servissem de memória-reserva, tal como a chave que deve estar na gaveta da mesinha de cabeceira.

Achei um bloco de papéis amarelos autocolantes e escrevi no primeiro deles: “Alugar o filme sobre o homem que perdeu a memória”. Na locadora terão dificuldade em achá-lo, pois não sei o título (Oblivion, talvez), nem o nome do diretor ou de qualquer dos atores. Só me lembro que o assisti com Lúcia num cinema em Copacabana.

Foi mesmo com Lúcia? Faz tempo que não a vejo e o filme é moderno. Os filmes modernos são complicados, difíceis de entender, os antigos, eu entendia perfeitamente. Amnésia (sim, é esse o título e não Oblivion) é tão complicado que começa pelo final e vai recuando no tempo. Só quando ele acaba é que se sabe que o começo é o fim.

Anotei em outro papelzinho amarelo: “Procurar Lúcia”, e, em seguida: “Descobrir quem fez isso comigo”. Em outro ainda: “Matá-lo”.

A chave-reserva estava no lugar certo, ainda bem, senão jamais poderia tirar o carro da garagem. Saí com o carro e estacionei na Atlântica. É lá que costumo parar quando vou ver Lúcia. Queria perguntar uma coisa importante que com certeza ela poderia me responder. Sobre o filme, talvez, sobre Oblivion. Mas por que Oblivion? Essa é uma palavra grega. Preciso perguntar a Lúcia se o título é esse. O que sei é que o personagem anotava em pedaços de papel tudo o que lhe acontecia.

Escrevi: “O carro está na avenida Atlântica em frente ao coqueiro grande”. Andei por uma rua perpendicular à praia, que devia ser a Hilário de Gouveia ou a seguinte. Podia ser também a anterior. Não achei o prédio onde Lúcia mora e isso só pode se atribuir a uma confusão de ruas. Eu deveria ter seguido pela rua anterior ou a posterior àquela que tomei.

Já estava quase de volta à Atlântica quando me chamou atenção uma porta de ferro batido com desenhos geométricos que deixava ver uma portaria ampla. Tive quase certeza de que aquele era o prédio onde ela mora. O porteiro me viu e se aproximou, mas teve a precaução de ficar do lado de dentro. Era um nordestino de rosto bexiguento. Perguntou o que eu desejava. Ao ouvir sua voz, reconheci-o: era o porteiro do prédio de Lúcia. Perguntei se ela estava em casa, mas ele disse que não havia Lúcia nenhuma morando ali.

Talvez eu tivesse confundido os nomes, afinal, já fazia tempo. Perguntei por Luzia, Luciana, até Helena, embora eu não pudesse jamais ter esquecido o nome daquela mulher. Também não havia Luiza nem Luciana e a única moradora do prédio chamada Helena era uma velha nonagenária.

Voltei para a Atlântica e procurei o carro. Devo ter me enganado quanto ao ponto onde o estacionei. Por mais que andasse de uma esquina a outra e depois, no quarteirão seguinte, não o encontrei. Lembrei-me do papelzinho amarelo. De fato ele estava no bolso da minha calça e dizia que eu tinha estacionado em frente ao coqueiro grande, mas todos os coqueiros pareciam ter o mesmo tamanho. Provavelmente tinham furtado meu carro. Isso é comum: um cidadão estaciona o carro num desses recuos feitos na calçada especialmente para isso e, ao voltar, não o encontra mais.

Quando entrei no meu apartamento, havia vários papéis amarelos grudados nos ladrilhos da parede da cozinha. Alguém estivera ali e anotara novos lembretes. Num deles, li que a locadora não dispunha do filme Oblivion, em outro, que o encontro com Lúcia seria às 7 e meia em frente ao cinema Roxy para ver Amnésia. Num outro escreveram simplesmente “Matá-lo”, o que me deixou intrigado. Matar quem? Por quê? Quem eu deveria matar? Ou seria eu o cara a ser morto? Era uma brincadeira de mau gosto para se fazer com um cara pacífico como eu.

Estava em cima da hora. Achei a chave do carro no gancho em cima da pia, mas não o encontrei na garagem. Tomei um táxi, pois Lúcia já devia estar à minha espera. Ela não estava nem na porta, nem na sala de espera e o filme em cartaz chamava-se… bem, não lembro, mas com certeza não era o Oblivion a que combináramos assistir. A bilheteira não conhecia nenhum filme com aquele título, tinha, porém, uma vaga idéia de que passara ali Amnésia, nome que em boa hora me veio à cabeça. Então aquele filme em que o protagonista perde a memória e só consegue se lembrar de um homem caído no chão e de sangue nos ladrilhos da parede se chama Amnésia.

Se Lúcia não tinha vindo ao meu encontro, só podia ser porque a combinação fora para outra data. Achei que devia procurá-la em sua casa e me desculpar pelo mal-entendido. Dessa vez o porteiro era magro, escuro, tinha os dentes pra fora da boca e conhecia Lúcia, mas informou que ela não morava mais lá. Em algum momento eu soube disso, e quem sabe tivesse anotado num daqueles papéis amarelos que infestavam a minha cozinha.

No filme Oblivion, o único passado do personagem é a imagem dos ladrilhos sujos de sangue. Não estou tão mal assim, pois além dos ladrilhos sujos de sangue me lembro da moça de cabelos curtos que se chama Lúcia (ou Helena, pode ser Helena) e sei que ela tem um papel importante na minha vida. Sei também onde é a minha casa (volto para ela todos os dias) e, lendo os lembretes colados na cozinha, posso saber muitas outras coisas. Não me recordo por que cargas d’água tenho essa grande cicatriz ainda dolorida saindo de perto da orelha, entrando no meio dos cabelos e indo quase até a nuca. Talvez Lúcia saiba, é isso que quero lhe perguntar.

Na cozinha há ainda mais papéis amarelos. Vou arrancando alguns, amassando e jogando no chão. São coisas irrelevantes ou sem sentido, como aquele que diz simplesmente “Matá-lo”, e que me faz pensar que eu, logo eu, que sou do bem e da paz, vou ter que eliminar alguém. Ou como os que falam de Paula. O chão fica coalhado de papéis que dizem coisas como “Paula me traiu”, “Leo é amante de Paula”. Quem será essa Paula e esse Leo? Sei quem é Lúcia (ou Helena), a morena de cabelos curtos, mas não conheço Paula nenhuma, muito menos seu amante, embora o nome Leo me seja vagamente familiar.

Miriam Mambrini

É escritora. Autora de As pedras não morrem e Vícios ocultos, entre outros.

Rascunho