Daí que, sem perceber, a gente entra na fila. Fila para quê? Para onde? Não há placa que indique, seta que oriente. Não importa, algo ancestral nos manda ficar na fila. E, quando você entra numa delas, inevitavelmente é o último da fila.
Você espicha a cabeça, procura enxergar até onde ela vai, constata que dobra o quarteirão, moleza. Só quando chega ali, vê que tem outro quarteirão mais à frente, e outro, e outro. Mas sempre aparece algum desastre, música ou show de calouros para a gente se distrair.
A princípio, a fila anda devagar. Os pés se arrastam, lentos, indecisos. Enfrentam as garoas, cozinham ao sol, buscam as sombras das árvores. Sem ter a menor ideia de que, com o tempo, um mecanismo misterioso os acelera e, mero número na fila, a gente obedece, vai sendo levado (iludido que não), até que, no final, vira atropelo de cena de filme mudo em preto e branco.
Numa fila, a gente olha mais para a frente. Só muito de vez em quando para trás e constata que, estranhamente, aquele cara de boné não está mais lá, mas sim uma senhorinha de bolsa estampada e, mesmo essa, será substituída por um vereador em campanha e, esse, por uma dançarina dos sete véus.
Mesmo dentro da fila, a gente entra em outras filas: fila do pão, do embarque, para entrar no estádio (essa, mais para tumulto), da imigração. É, essa coisa de uma fila dentro da outra ficou confusa, mas é assim mesmo. Passam amores, uns menores, outros vou contar; passam empregos, que pareciam a coisa mais preciosa do universo (não são), passam até alguns cachorros, que a gente nem sabia que podiam entrar na fila — mas que depois a gente vê que, sem eles, fica meio sem graça. O dinheiro vem e passa, a saúde vem e passa, a gente assobia Vai passar, do Chico, e arrisca algum livro de autoajuda para ver se.
Saudades de dar a mão para os pais ou para os filhos na fila.
A fila sobe e desce escada. Entra no mar e fura as ondas. Dorme em camas de hotel e se senta nos bancos escolares. Cai num buraco fundo, sai no Japão e volta. A fila na cabeça da gente. Os mais preparados e espertos chegam lá primeiro, e a gente vai ficando. O grandão tosco dá um chega pra lá e o lugar vira dele. Alguém cutuca nossos ombros e pergunta: “É essa a fila?” Respondemos que sim e, na maior sem-cerimônia, a pessoa entra na frente. Cadê o guarda? Cadê o segurança? Cadê Deus?
Por gentileza, a gente cede o lugar aos mais velhos, aos mais frágeis, aos perdidos. Por distração, a gente esquece de avançar. Por burrice, empaca. Como em toda fila que merece o nome, chega o vendedor de algodão-doce. Já estou escolhendo o rosinha, quando meu gastro, duas pessoas adiante, se vira e me olha com cara feia. Ainda bem que se pode beber na fila. E a gente sempre acaba exagerando, tomando três saideiras sem sair, mistura bebida, perde o rumo, faz besteira — você não?
Há o tropeço e o gozo. Há a risada e a lágrima que a gente esconde. Os advérbios e a fé na loteria. As prestações da casa e a correição das formigas. Carros com motor turbo e gasolina aditivada, mas que não são capazes de nos fazer ganhar posição alguma. A gente se gasta na fila. A gente se perde e reencontra. Consome nove sapatos, mas jamais se aborrece, pois prefere ficar descalço.
Um sujeito saiu da fila. Por que isso aconteceu?
E quando se descobre que sua fila era outra? — bem que você não estava reconhecendo ninguém ao redor. Aquele ali furou a fila. Aquela aproveitou para distribuir santinhos. Uma bola chegou quicando, bem na sua direção, você armou o chute, um mané chegou do nada e, catapimba, chutou primeiro. Onde fica a fila da reclamação? E a das sugestões?
Tanto passou, tanto aconteceu, gente do céu. Falta muito? Quem sabe? Quanto acontecimento na vida das minhas retinas tão fatigadas etc.
Olho ao redor. Continuo sendo o último da fila.