O crânio de Castelao (6)

Leia o capítulo 6 do folhetim "O crânio de Castelao"
Ilustração: Theo Szczepanski
01/04/2013

Capítulo 6

Sempre que viajava de avião P. brincava com uma idéia que acabara finalmente por deixar de ser angustiante para passar a ser apenas mais um divertimento: algures no meio desta viagem o avião vai perder um reactor e acabar por se despenhar no mar! E mais uma vez entretinha-se vendo-se a salvar-se agarrado a um pedaço de uma asa, enquanto tentava conciliar um sono que insistia em fugir-lhe. No entanto, estava bem comido e bem bebido e sabia a mala do Castelao em perfeita segurança numa bagageira três lugares à sua frente.

No aeroporto acabara por continuar enojadamente faminto diante do horror daquela McPorcaria de sanduíche com restos de dedos e unhas, mas agora, tranqüilamentesentado no cómodo recosto daquela cadeira, dava graças a Deus por não ter seguido a precipitada inspiração de roubar a bagagem ao moço do hotel e fugir com ele porta afora. Sorriu ao pensar em como se tinha imaginado passando de volta o arco detector de metais, os polícias desenfreados correndo atrás dele pelos corredores do aeroporto, se calhar até disparando as suas armas. Ainda bem que conseguira refrear aquele ímpeto heróico que certamente acabaria por terminar, se não de forma trágica, pelo menos bastante patética, porque a segurança dos aeroportos é como regra tão cerrada e severa que sem qualquer dúvida o teriam caçado muito antes de chegar à rua, pondo desse modo em risco todo o projecto.

Mas agora estava seguro e satisfeito. Um pouco à sua frente dormia como um anjo o moço do hotel que pouco antes ele vira colocar a maleta contendo a caixa de veludo azul onde se escondia o sagrado crânio do grande Daniel Castelao no espaço que lhe ficava por cima da cabeça. Inicialmente tinha pensado em aproximar-se, surripiar a maleta e guardá-la em lugar seguro, mas depois reconsiderou, tinha ainda muito tempo à sua frente, era uma viagem de pelo menos doze horas sem escala, ainda o melhor era realizar esse trabalho quase na hora da chegada, naquele momento em que todos os passageiros buscam a casa de banho.

Embalado pelos seus pensamentos, mas também pela refeição abundante, P. começou a sonhar com um triunfal regresso à Galiza levando nos braços o sacrário azul contendo o venerável crânio do grandioso herói popular anti-franquista. E por causa desse feito, ele mesmo P. um herói que tinha desafiado os poderosos do mundopara recuperar para a Mãe Pátria galega o crânio desse filho dilecto e amado…, diriam tanto a Sandra como a Elva.

Mas eis que de repente um barulho estranho sacode todo o avião com estranha violência, ao mesmo tempo que nitidamente se ouvem horríveis relinchos. Cavalos a bordo, estranhou P., acordando da sua modorra.Será que estou a bordo de um zoológico aéreo? Mas nem conseguiu concluir esse raciocínio, interrompido que foi por novos, furiosos e doloridos relinchos, acompanhados de desesperadas patadas que pareciam ameaçar a integridade do avião.

Que se passa, perguntou, agarrando a blusa de uma hospedeira que passava pela sua cadeira. Nada de grave, sorriu ela, alguns cavalos que viajam no porão com destino a uma corrida em Bombaim entraram em pânico. Estamos no entanto a tentar ver se se acalmam.

Mas não se acalmaram, muito pelo contrário. E poucos minutos depois aquele avião era um pandemónio de relinchos e patadas, agravadas que acabaram sendo por uma queda do aparelho numa poça de ar que terá colado os cavalos no tecto do contentor onde se encontravam fechados, o que certamente mais os exasperou. Mas o certo é que pouco depois era noticiado que o comandante tinha muita pena, mas por causa da segurança do seu vôo era obrigado a procurar ajuda no aeroporto mais próximo, e naquele momento já se estava encaminhando para o aeroporto internacional Amílcar Cabral, na ilha do Sal, Cabo Verde.

E de facto, meia hora depois o avião aterrava. Ainda era noite fechada, um negrume intenso cobria a ilha, aqui e aqui pontuada por aglomerados de luz que indiciava os centros urbanos.

Os passageiros foram convidados a abandonar o avião. P. esperou para sair depois do moço do hotel, certificando-se assim que ele deixava a maleta na bagageira. Ambos teriamque embarcar de novo quando a questão dos cavalos ficasse resolvida, ocupariam os mesmos lugares, de modo que não valia a pena preocupar-se em excesso.

Já na sala de espera para onde foram conduzidos, P. teve a sorte de encontrar vazio um maple onde se instalou com alguma comodidade. E o cansaço da excitação de todos aqueles dias anteriores abateu-se de repente sobre ele e adormeceu como um anjo.

Acordou com os desesperados berros do tratador dos cavalos opondo-se ferozmente a que os mesmos fossem abatidos — cada um deles vale 600 mil dólares, gritava, mesmo loucos valem mais que qualquer homem, não podem ser fuzilados como se fossem terroristas! —, quando viu a “sua” maleta passando à sua frente, melhor dizendo, roçando-lhe nas pernas. Levantou os olhos para fixar o moço do hotel e mostrar-lhe que aquela provocação não ficaria impune, mas qual não foi o seu espanto quando viu que quem estava na frente era…

Sandra, gritou, Sandra Bullock, que fazes tu aqui?

P. contava que, por exemplo, a Sandra tentasse fugir dali para fora. Porém, ela parou olhando para ele, um tanto espantada pelo exagero dos gritos. Mas acabou sorrindo: E você, que faz neste aeroporto perdido numa ilha deserta? E por favor, continuou, detesto que me confundam com gente que não conheço, devia lembrar-se de mim, sou a… Sandra ou Elva ou quem quiseres, interrompeu-a P., neste momento isso é pouco importante. Não sei, disse ela já séria, porque não sou nem Sandra nem Elva, já estou habituada a ser a Paula, Paula Casarão. E você é P. Pelo menos foi com essa letra que se identificou quando esteve na Universidade de Massachusetts para fazer a palestra sobre Memorabilia corpórea. No fim fui falar consigo, tinha achado deliciosa a idéia de no mundo actual alguém poder fazer fortuna vendendo ossinhos de gente tida como importante. Até cheguei a dizer-lhe que não estranhava o nome, porque tenho uma tia que só trata o marido por P., e convidei-o a um dia vir a Cabo Verde conhecer a colecção de ossos do meu pai, que também se dedica a essa actividade, porém com um objectivo mais nobre… ainda não se lembra?

Complicado! P. lembrava-se efectivamente da palestra em Massachusetts, porém não de ali ter encontrado a Sandra ou a Elva, mesmo que tivesse sido sob o nome de Paula Casarão. Seria completamente impossível esquecer essas duas mulheres que passavam o tempo povoando os seus sonhos… Mas e se já estivesse em tal estado de paixão pelas duas que já as via em todas as mulheres que cruzavam o seu caminho? Sim, sim, agora me lembro, foi dizendo enquanto se certificava que em absoluto aquela era a “sua” maleta, a que continha o crânio do inesquecível Castelao.

Sim, sem dúvida que era, tranqüilizou-se, pelo que continuou: Recordo até que me explicou que o seu pai, reitor de uma famosa universidade aqui na ilha, é um coleccionador importante de peças raras… Continua a fazer confusão, atalhou Paula rindo, o que me lembro é de lhe ter dito que o meu pai, o prof. Casarão, um nacionalista cabo-verdiano convicto e exasperado com a política de privatizações que está sendo levada a cabo pelo actual governo, tão razante que praticamente já vendeu as ilhas aos estrangeiros e só não vende as pessoas porque ninguém as quer comprar, jubilou-se e depois ofereceu-se para coveiro no cemitério de Nha Marquinha da ilha de S. Vicente, onde se dedicou a recolher peças das carcaças dos defuntos mais célebresdas ilhas, gente toda ela de grande intelectualidade, e agora está acriar o esqueleto do que ele pensa que terá que ser o cabo-verdiano do futuro, o patriota capaz de resgatar as ilhas.

O peixe morre pela sua boca, pensou P., já estás no papo, filha, porque cometeste a burrice de te denunciares a ti própria. Porque, num projecto dessa envergadura, nenhum crânio poderá ser mais útil que o do grande Daniel Castelao: escritor, artista, médico, anti-fascista convicto, nacionalista até aos colhões, quem melhor que ele para recriar esse tal cabo-verdiano novo que o pai desta maluca quer inventar? Claro que é o crânio de Castelao que está nesta maleta e claro que não vou descansar enquanto não me apossar dele e devolvê-lo à nossa Mãe Galiza donde nunca deveria ter saído!

Lembro-me agora, disse P. com um largo sorriso satisfeito, agora já me lembro de tudo, e quero conhecer esse teu pai-coveiro, esse estupendo Frankenstein das ilhas capaz deste pensamento genial: fazer um homem a partir de soltos pedaços de outros.

Paula, porém, não prestou atenção à ironia das palavras de P.: Neste caso terás de ir comigo a S. Vicente, disse, é na cidade do Mindelo que mora o meu pai, mas a meu pedido ele terá prazer em falar contigo, explicar-te o seu projecto e até talvez trocar impressões sobre essa vossa arte.

Sem qualquer cerimónia P. retirou a maleta da mão da Paula: Preciso de um visto de entrada no país, disse, e explicou-lhe as circunstâncias que tinham feito o avião aterrar no Sal. Não será difícil, disse Paula, dirigindo-se ao guichet da polícia de fronteira com o passaporte de P., sem se importar em deixar nas suas mãos a preciosa maleta.

P. ainda pensou que se fosse chamado para embarcar certamente que levaria consigo a mala, mas entretanto a Paula regressava com um visto de permanência de oito dias. Tempo mais que suficiente para conheceres tudo, disse ela empurrando-o para o local onde poderiam comprar o bilhete de passagem para S. Vicente.

Paula não fazia qualquer esforço para ter a maleta de volta, comentando apenas que era uma amabilidade escusada porque todo aquele volume continha apenas um leve chapéu. Sim, certamente, pensou P., se não fosse um sacrilégio chamar de leve chapéu ao poderoso crânio do grande galego Castelao que um maníaco qualquer pretende agora caboverdianizar.

Enquanto esperavam pela hora da saída, Paula sugeriu que se sentassem no bar: Vamos beber um cleps?, perguntou a sorrir. E isso o que é?, perguntou P. Cerveja a copos, explicou ela, o mesmo que em Portugal chamam “fino”. Na Galizadizemos beber um corto ou uma canha, disse P.Podemos beber, embora eu seja mais apreciador de vinho, de preferência verde branco. O nosso alvarinho é célebre em todo o mundo. Sim, troçou Paula, os portugueses fazem igual basofaria com o seu alvarinho, que difere do vosso apenas na maneira de escrever.

Finalmente foram chamados para embarcar. P. não estava habituado a aviões tão pequenos, mas Paula tranqüilizou-o: são de longe mais seguros que os grãndes, basta dizer que em quarenta anos tivemos apenas dois acidentes e ambos provocados por mau tempo, nunca por avaria.Sentados lado a lado, P. seguro da “sua” maleta entre os joelhos, olhou para a sua companheira de viagem. Já não lhe parecia tanto com a imagem que guardava, quer da Sandra quer da Elva. Agora parecia-lhe que de facto Paula era mais mulher que as outras, pelo menos na opulência dos seios, no recorte dos lábios a sugerir beijos, no penteado atrevido… Na América não cheguei a reparar que eras tão bonita, acabou dizendo. Bem, digamos que não tiveste muito tempo, respondeu ela.Mas mesmo assim, obrigada.

Acreditas que me enganas, pensou P., achas que mudas de nome e logo mudas de figura, mas não é pelo facto de o gel te fazer ficar com o cabelo como o das mulatas que viras cabo-verdiana. Não é engraçado, disse Paula de repente, virmos cada um do seu lado desde os confins do mundo, e encontrarmo-nos assim por acaso nesta ilha?

Já está, pensou P., desta vez ela vai escorregar e confessar que é a Elva. Porque a Sandra não me conhece e, enquanto Paula, diz que apenas nos vimos uma vez. Disse: Devia estar escrito algures no grande livro da vida que exactamentehoje nos encontraríamos naquele aeroporto semi-deserto e empreenderíamos juntos uma viagem de descoberta, se calhar de nós mesmos. Será nosso dever não defraudar o Destino.

Distraidamente ou propositadamente Paula tomou a mão de P. e começou a brincar com os seus dedos: Um galego de mãos finas, unhas limpas, cheirando a lavado e ainda por cima filósofo, disse.Na minha terra chama-se galegos aos trabalhadores braçais, sempre sujos e tresandando a suor.

P. sorria olhando para ela. Apetecia-lhe fazer-lhe uma carícia, mas retinha-se, não podia deixar-se enganar por aquele ar de inocente cumplicidade, não podia esquecer que ela era a inimiga que a qualquer momento deveria desmascarar e reapossar-se do sagrado crânio do grande Castelao que, já não tinha dúvidas, se destinava a completar esse homem novo que o certamente louco pai dela pretendia criar. Foi no entanto distraído pela assistente de bordo que anunciava a descida do avião.

A terra estava agora mais visível. P. olhou pela janela mas só via pedras, rochas nuas num imenso descampado. Mas estava um dia limpo de nuvens, a terra e o mar pareciamao alcance de umbraço, tal era a luminosidade: Isso aí é sempre assim?, perguntou. Assim como?, estranhou Paula. Assim belo, disse P., uma beleza lunar, pelo menos é assim que imagino a superfície da lua. Pode ser assim, respondeu ela, essa beleza seca é a causa da nossa desgraça.

Felizmente que Paula não tinha avisado da sua chegada, pelo que não tinha ninguém à sua espera. De modo que acompanhou P. ao hotel Monte Cara, onde conseguiu um quarto sem grandes dificuldades, estava-se numa época de baixa ocupação. Já com a chave na mão, P. titubeou: Não te importas de me acompanhar um pouco ao quarto? Estava apenas a tentar ganhar tempo, desde que se tinham encontrado que se sentia seguro e tranqüilo carregando a maleta do Castelao, mas agora via-se na iminência de ter de a abandonar e isso elenão iria fazer de forma alguma, especialmente numa terra de todo desconhecida. Mas para seu espanto Paula aceitou de bom grado: Até vou aproveitar para me pentear e colocar o tal chapéu, disse, há muitos anos prometi ao meu pai desembarcar em S. Vicente de chapéuzinho, como as americanas velhas e ricas.

E de facto, mal entraram no quarto ela fez estalar os dois fechos da maleta e retirou uma caixa forrada de veludo azul de onde extraiu um belo chapéuzinho que colocou no alto da cabeça. Fica-me bem?, perguntou com graça.

P. olhava para ela e para a maleta sem compreender. Tenho que te contar uma coisa, acabou por dizer quase acabrunhado. Tudo que quiseres, riu-se ela, mas não agora, agora vamos mas é dormir. Descansa que voltarei e velarei por ti nesta cidade, não deixarei que sintas falta de nada.

Paula partiu e P. deitou-se sobre a cama sem se despir. Que desastre, que loucura, que erro tremendo. Paula tinha-se esquecido de levar a maleta e ele levantou-se de novo para a examinar: igualzinha à outra, até na identificação com um C maiúsculo que ele decidira como “Castelao” e afinal deveria ser mesmo “Casarão”. Regressou à cama e dormiu horas seguidas, até que o telefone o acordou: a Paula estava na recepção: O meu pai espera-te, disse alegremente.

P. pediu dez minutos para se arranjar e só nesse momento deu conta de que tinha saído do avião só com a pasta que tinha recebido do prof. F. Terei que telefonar, pensou ainda que sem saber como poderia explicar esse pavoroso engano. Pediu que a recepção lhe providenciasse escova e pasta de dentes e entrou na banheira. Teria que passar por um pronto a vestir.

Quando P. desceu Paula esperava-o já ao volante de um jeep: Entra depressa que o homem é frenético e está ansioso por mostrar a sua obra a um colega estrangeiro, disse.Tem a secreta esperança de que falarás da sua obra no jornal em que escreves.

Mal entraram no que pomposamente o prof. Casarão chamava o seu laboratório — um acanhado quartinho atafulhado de tíbias, fémurs, rótulas diversas, bolsas de plástico cheias de falanges, metatarsos, metacarpos e outras peças humanas, todas devidamente catalogadas e numeradas —, o homenzinho que parecia um gémeo do prof. F. atirou-se a P. de braços estendidos: A minha filha falou-me do seu interesse no meu trabalho, disse em forma de cumprimento.Parece que vocês da Galiza têm projectos semelhantes, podemos juntar esforços, a necessidade de criar um homem novo capaz de meter ordem nesta desenfreada liberalização globalizante torna-se cada dia mais urgente.

Uma espécie de um longo sudário numa das paredes do quarto chamou a atenção de P. Sim, esconde algo que lhe mostro daqui a pouco, continuou o prof. Casarão. Pessoalmente,senti essa necessidade quando, vinte anos depois da nossa independência duramente conquistada, vi o meu país a ser alegremente repartido entre portugueses, espanhóis, italianos, alemães e sei lá mais quem, por um partido que assaltou o poder através de um golpe de estado eleitoral e se dedicou a amolecer as consciências das pessoas através de benesses mas também do medo que foi instilando na sociedade. Ora, para fazer face a essa violência e mudar esse estado das coisas, só criando um novo homem de excepcionais qualidades. Foi por isso, ia dizendo o sr. Casarão enquanto fazia correr o sudário para deixar à vista um longo esqueleto a que faltava a cabeça, que tendo como suporte principal a coluna vertebral do grande patriota Loff de Vasconcelos, fui-lhe juntando peças escolhidas de outros cabo-verdianos famosos. Por exemplo, o tórax é de Guilherme Dantas, mas já o resto do corpo está dividido entre Pedro Cardoso, Eugénio Tavares, Jorge Barbosa e Baltasar Lopes e outros intelectuais. À primeira vista o cérebro de tudo deveria ser a cabeça de Amílcar Cabral, dada a sua condição de político conseqüente. Porém, decidi que ele ter-se deixado matar quase à toa é uma grave nódoa no seu curriculum, vamos ter necessidade de alguém mais duro, mais implacável, mas está difícil. Já estive até tentado em importar um crânio do estrangeiro, alguém do tipo de Fidel Castro, capaz de lutar até ao fim por uma idéia, pena é ele ainda estar vivo. Enfim, a minha idéia, depois de tudo completo, é modelar o esqueleto com uma massa de argila fresca e mole e depois desafiar Deus a insuflar-lhe vida. A tarefa desse homem novo dotado de coragem será lutar e reconquistar a sua terra.

P. ouvia o professor enquanto examinava o decapitado esqueleto dependurado do tecto. Existe alguma desproporção entre as peças, disse, um dos fémur é muito maior que o outro, o mesmo acontecendo aliás com as tíbias e os úmeros. Acho também que existe um maior número de costelas do lado esquerdo, sem contar com uma mão onde contei sete dedos. Sim, sorriu o sr. Casarão, é propositado. Não deve conhecer a nossa história, mas ela tem sido completamente desequilibrada ao longo dos séculos e o novo homem que busco deve espelhar esse secular desequilíbrio.

Faz sentido, pensou P. Porém, não resistiu a mais uma pergunta: Bem, e se Deus não satisfizer o seu pedido? Nesse caso já poderei atribuir-lhe toda a responsabilidade pelodesastre que tem sido a nossa vida, respondeu o professor.

P. fez sinal a Paula enquanto dizia, voltarei depois para obter um conhecimento mais aprofundado da sua obra, penso que a comunidade científica merece conhecer este grandioso feito.

Saíram para o fresco da tardinha. Tenho fome, disse P., não como há quase 24 horas. Vamos então comer, disse Paula agarrando-o pelo braço, sabes que tive imensas saudades tuas? Que bonita que ela é, disse P. abraçando-a e pousando um leve beijo nos seus lábios, mas antes deixa-me dizer ao prof. F. onde me encontro neste momento, ele deve estar desorientado com a falta de notícias. Ligou o telemóvel de que aliás se esquecera desde que o desligara ao entrar no avião em Lisboa. Um longo apito indicou-lhe uma mensagem escrita. Era exactamente do prof. F.: “Crânio Castelao ontem localizado sobre mausoléu Evita Perón cemitério Recoleta Buenos Aires ponto regresse imediatamente”.

Leia o capítulo 7 por Quico Cadaval

Germano Almeida

Nasceu em Boa Vista (Cabo Verde), em 1945. Formou-se em Direito na Universidade Clássica de Lisboa e exerce atualmente a profissão de advogado na ilha de São Vicente. O gosto pela escrita e pelo jornalismo tem acompanhado sua vida profissional. Para além da produção literária, foi sido responsável por projetos como a fundação, com Rui Figueiredo e Leão Lopes, da revista Ponto & Vírgula, do jornal Aguavivae da Ilhéu Editora. É autor dos romances O testamento do sr. Napumoceno da Silva Araújo (1989, adaptado para o cinema em 1997), Os dois irmãos (1995), Mar da Laginha (2004) e Eva (2006), entre outros. É autor ainda de O dia das calças roladas (ensaio), A ilha fantástica (narrativa), Estóreas contadas (crônica) e Viagem pela história das ilhas (investigação histórica). Seus romances foram traduzidos para diversas línguas.

Rascunho