O crânio de Castelao (5)

Leia o capítulo 5 do folhetim "O crânio de Castelao"
Ilustração: Theo Szczepanski
01/03/2013

Capítulo 5

Big Mac, Big Mac. Lá estava na sua boca aquela pasta de sabor neutro e ele a remoer e remoer, nem se distinguia o que era carne, disque, do que era uma folha de alface. Aquelas macporcarias, sempre atractivas nas fotografias e logo que as comias lembravas aquela falta de sabor verdadeiro, alimento sem alma, ou acaso alimentos dum mundo próximo no que não haverá alma, haverá um pequeno vazio dentro de cada coisa, de cada quem. Pensava aquelas coisas porque estava deprimido, disse P. para ele próprio. Isso era, deprimia-se com aeroportos, os aeroportos eram como aquela coisa que estava a comer, lugares brilhantes e cheios de rótulos luminosos mas também sem alma. E agora que caralho fazia, puxava para Rio ou para Goa atrás daquela moça, atrás daquela memorabilia corpórea? E então notou alguma coisa dentro da boca, remexeu com a língua, aquilo era um corpo estranho naquela massa que chamavam enganosamente hamburguesa. E de súbito sentiu nojo, cuspiu na bandejinha de plástico. Que coisa era?

Era a ponta de um dedo. Um bocadinho de carne e de unha. Seguiu a cuspir o que ainda tinha na boca. Levantou com nojo a tampa do sanduíche e ainda havia outra coisa, um anaquinho de papel, uma palavra: “não vá”. A mão já ia pegar no papel quando a deteve, o que era aquilo, uma ameaça. E a ponta do dedo era a prova de que a ameaça era séria. Desde o balcão do bar o encarregado olhava para P., ele susteve o seu olhar. Teria sido ele quem lhe enviara aquele aviso? Não parecia, mais bem semelhava surpreendido e preocupado de que cuspisse o seu saboroso sanduíche. Seria o cozinheiro que assomava às vezes por uma janela servindo os seus encargos? Fosse quem fosse, o que tinha colocado aquele aviso lá formava parte de uma organização maciça e com gente em todas as partes. Olhou em volta na procura do moço do hotel Goa, que o tinha seguido até aquele aeroporto, mas não o viu. Cuidado, talvez estivesse a ficar paranóico. Quiçá fosse uma coincidência que o moço fosse até lá, a gente dos hotéis tem muitos contactos com os aeroportos, é parte do seu ofício. Mas aquela advertência… Uma advertência confusa, pois aquele “não vá” proibia-lhe ir a Rio ou a Goa?

Um pedaço de dedo, outra memorabilia corpórea, tinha entrado num mundo no que pelos vistos eram coisa comum. Que fazia ele metido entre essa gente? Ele tinha estudado o tema de fora, era um universitário, nunca tivera interesse em formar parte desse mercado macabro. Estava cá pela sua ambição, o professor F. tinha-lhe colocado diante a miragem duma vaga no seu departamento da Universidade de Santiago de Compostela e ele papara a miragem num bocado, com fome. E nem sequer tinha uma garantia de que aquela vaga era certa, estava naquele aeroporto de Lisboa no meio de uma trama internacional, como um agente secreto ao que pelos vistos conhecia todo o mundo. Olhou de novo em volta e então viu o moço do hotel Goa que agora sim que saía da cozinha por uma porta lateral e liscava ligeiro de lá perdendo-se por um corredor.

Duvidou, não sabia se devia perseguir o moço do hotel ou interrogar o encarregado. Ergueu-se e tomou o bandejinha de plástico acusadora para encarar o encarregado, mas lembrou que o moço do hotel vestia uma samarra e carregava uma pequena mala, também ele marchava para algures. Abandonou a bandeja mortuária e foi-se na direcção que tomara o outro, já saía do local e ainda enxergou atrás dele como se achegava uma moça do negócio a recolher a sua mesa e como se detinha curiosa a olhar os restos que ele deixara.

Botou-se às carreiras por aqueles corredores e finalmente viu lá na frente a figura apressada do que procurava. Refreou a carreira e foi-se achegando conservando a distância, aí estava aquele carregando a mala com cuidado contra si próprio, numa mão levava um bilhete da Indian Airlines. Viu que se dirigia a uma porta de embarque e não o duvidou, foi atrás deixando um par de pessoas interpostas entre eles dois e cuidando que não o descobrisse. Ao passar pela máquina que examinava com raios X a bagagem, reparou em que o guarda lhe perguntava por algo e o moço do hotel dava explicações com convicção, mesmo tirava do bolso da samarra uma documentação. Achegou-se quando foi sua vez de passar e ouviu que dizia que era estudante de Medicina, o guarda assentia, estava para deixá-lo passar. Pode finalmente contemplar o ecrã que mostrava a radiografia das equipagens e lá estava aquele crânio. Já o guicho aquele guardava a documentação com uma mão e com a outra recolhia a mala com um sorriso de entendimento com o guarda.

E então sentiu sobre si o horror do momento, aquele homem carregava aquela cabeça como se fosse um simples contrabando, uma miserável mercadoria que haveria de dar um lucro. O crânio do Castelao. Aí naquele aeroporto impessoal um guicho traficava com um naco de um dos homens mais dignos, de alguém que morreu exilado e derrotado por atrever-se a sonhar uma Galiza livre e com direitos. Ele nunca tivera muito interesse pela política, mas lá quando tinha iniciado os seus estudos universitários participara uma temporada nas reuniões de uma organização nacionalista galega. Não compartira o entusiasmo ardente de alguns camaradas, mas lembrava uma vez na que acudira um deputado e lhes evocara a morte do Castelao no exílio da ditadura do General Franco, pela França, New York, Cuba, Buenos Aires. Naquele departamento de um alto edifício de New York rodeado de emigrados e exilados de todos os países do mundo escrevera “sou um exilado de uma pátria desconhecida”. Castelao morto derrotado, entre emigrantes cheios de morrinha e exilados sem esperança, enterrado no cemitério da Chacarita de Buenos Aires. Levado logo à Galiza finalmente, mas não pelos que partilhavam o seu sonho, mas pelos políticos da direita que governaram na ditadura e agora seguiam a governar na democracia. Pobre Daniel Castelao, o sonho da Galiza derrotado e agora trazido e levado, burlado, aos golpes pelo mundo nas mãos de gente sem escrúpulos. Aí parado diante daquela imagem do crânio no ecrã sentiu que lhe ardia a cara ruborescida, tinha vergonha de si próprio, ele andava na procura daqueles restos por conseguir uma vaga na universidade, não pela profanação mesma. Profanação por cima do mais indefeso, o sonhador de um país frustrado e débil.

Sem pensá-lo, quando o outro soltou a mala para guardar o bilhete num bolso por baixo da samarra, pegou-a pela asa e botou a correr com ela passando de volta pelo arco detector de metais e empurrando na gente para que o deixasse passar. Por trás dele vozes de alto dos guardas, estrépito da gente. E ele a correr com aquela mala na mão pelos corredores do aeroporto. Só ele sabia que carregava com uns restos queridos num lugar e que não era um ladrão mas um cidadão que vinha de fazer um acto quase heróico. Heróico, mas também patético e desesperado. E estava numa situação quase ridícula, como ia sair de ali?, para onde?, que podia contar se era apanhado?

NOTA
O folhetim O crânio de Castelao foi idealizado pelo escritor Carlos Quiroga, por ocasião do encontro Galego no mundo — latim em pó, em Santiago de Compostela, na Galícia, em 2000. Escritores de países lusófonos se revezaram em sua escrita, cada qual ficando responsável por um dos onze capítulos, que serão publicados nas próximas edições do Rascunho.

Leia o capítulo 6 por Germano Almeida

Suso de Toro

Nasceu em Compostela, Galícia, em 1956. É licenciado em Arte pela USC, roteirista de televisão e colaborador em imprensa e rádio. Publicou mais de vinte livros de narrativa, teatro e ensaio, como Polaroid (1986, Prémio Crítica Galega), A sombra cazadora (1994), Calzados Lola (1997, Prémio Blanco Amor), Trece badaladas (2002), Home sen nome (2006) e Sete palabras (2009), entre outros.

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