Número cinquenta e seis

Conto inédito de Stephen Leacock
Ilustração: Aline Daka
29/08/2019

Tradução: Ana Júlia Galvan

O que narrarei aqui foi-me dito em uma noite de inverno pelo meu amigo Ah-Yen no pequeno cômodo que fica atrás de sua lavanderia. Ah-Yen é um chinês calado, de semblante grave e pensativo e com aquela disposição de melancolia contemplativa tão comumente observada em seus compatriotas. Há entre mim e ele uma amizade que já dura alguns anos, e passamos muitas longas noites na penumbra da sala que fica atrás do seu comércio, fumando cachimbo de fumaça devaneante, mergulhados em silenciosa meditação. O que mais me chama a atenção na pessoa de meu amigo são as altamente imaginativas projeções da sua mente — o que, creio eu, é um traço próprio do caráter oriental, que o permite em grande medida esquecer dos detalhes sórdidos do seu chamado ao ocupar-se de uma vida interna criada por ele mesmo. Eu vivia em completa ignorância quanto à parte aguda e analítica de sua mente e só a descobri na noite sobre a qual agora escrevo.

A sala em que estávamos era pequena e escura, e, exceto pelas cadeiras em que nos sentávamos e pela mesinha sobre a qual enchemos e preparamos os nossos cachimbos, não contava com muitos móveis e era iluminada somente pela luz de uma vela de sebo. Havia alguns quadros na parede, a maioria composta de recortes grosseiros de colunas de jornais diários colados ali para disfarçar a vacância do cômodo. Somente uma das imagens tinha qualquer coisa de notável, um retrato em nanquim muito bem executado. O rosto era de um jovem rapaz — um rosto muito belo, mas de infinita tristeza. Havia muito que eu tinha ciência, embora não saiba como, de que Ah-Yen tinha passado por grande sofrimento, e, de algum modo, eu tinha ligado este fato àquele retrato. Contudo, sempre me abstive de perguntar-lhe sobre a imagem, e não foi até a noite em questão que tomei conhecimento da sua história.

Estávamos fumando em silêncio por algum tempo quando Ah-Yen falou. O meu amigo é um sujeito de cultura e de vasta leitura, e, como consequência, o seu inglês tem construções perfeitas; a sua fala é, sem dúvida, marcada pelo persistente sotaque líquido de seu país, o qual não tentarei reproduzir.

— Percebi — disse ele — que você tem observado detidamente o retrato de meu infeliz amigo, o Cinquenta e Seis. Eu não lhe falei de minha perda, mas como hoje é o aniversário da morte dele, eu falaria um pouco sobre ele de bom grado.

Ah-Yen parou por um instante; eu reacendi o meu cachimbo e assenti com a cabeça, de modo a mostrar-lhe que estava ouvindo.

— Eu não sei — continuou ele — em que momento em exato o Cinquenta e Seis entrou na minha vida. É claro, eu poderia descobri-lo se procurasse nos meus registros, mas nunca me preocupei em fazê-lo. Naturalmente, de início meu interesse por ele não era maior que por qualquer um dos meus outros clientes — talvez fosse até menor, visto que no curso de nosso relacionamento ele nunca me trouxe as suas roupas pessoalmente, mas sempre as mandava por meio de um garoto. Quando percebi que ele estava se tornando um de meus clientes frequentes, dei-lhe este número, Cinquenta e Seis, e comecei a especular sobre o que ele fazia e quem ele era. Não demorou muito até que eu tivesse chegado a inúmeras conclusões em relação a meu desconhecido cliente. A qualidade de seus linhos mostrou-me que, se não era rico, ao menos era bem de vida. Pude perceber que era um rapaz de vida cristã regular, que até certo ponto frequentava a sociedade; isso eu deduzi de seus envios para a lavanderia sempre consistiam do mesmo número de peças, de que suas roupas sempre vinham às noites de sábado e do fato de que ele usava camisas sociais cerca de uma vez na semana. Era de disposição modesta e despretensiosa, pois os seus colarinhos tinham apenas duas polegadas de altura.

Olhei para Ah-Yen com grande assombro; as publicações recentes de um estimado escritor tinham-me familiarizado com o processo do raciocínio analítico, mas eu não estava preparado para tamanha revelação da parte de meu amigo oriental.

— Quando eu o conheci, — continuou Ah-Yen — Cinquenta e Seis estava na universidade. Isto, é claro, eu não soube de imediato. Eu o inferi, contudo, com o decorrer do tempo, por conta de sua ausência da cidade durante os quatro meses do verão, e também por causa do fato de que durante o período de provas na universidade os punhos das suas camisas chegavam repletos de datas, de fórmulas e de proposições geométricas. Eu o segui com interesse no curso de sua carreira acadêmica. Ao longo dos seus quatro anos de duração, eu lavava a sua roupa semanalmente; meu contato constante com ele e a percepção sobre o caráter amável do sujeito, que obtive através das minhas observações, aumentaram a estima que eu lhe tinha, transformando-a em profunda afeição, e eu passei a ansiar por seu êxito. Fiz o que estava ao meu alcance para ajudá-lo em cada teste dali em diante, e passei a engomar os punhos de suas camisas até os cotovelos, de modo a dar-lhe o máximo possível de espaço para anotações. Nem sequer tentarei descrever minha ansiedade durante a tensão dos exames finais. Cinquenta e Seis estava passando pela grande crise da sua carreira acadêmica; pude inferi-lo pelo estado de seus lenços de bolso, os quais ele, aparentemente sem se dar conta, usou para limpar o bico da caneta-tinteiro no teste final. A sua conduta no decorrer dos exames testemunhou o desenvolvimento moral que se deu em seu caráter durante a sua carreira como graduando; pois as notas em seus punhos, que tinham sido tão abundantes nos primeiros testes, ora limitavam-se a poucas dicas, e estas sobre tópicos truncadíssimos, que desafiariam a memória comum. Foi com alegria exultante que recebi, enfim, o seu fardo de roupas a lavar num sábado, no início de junho — uma camisa social amarrotada, cujo peito estava fartamente salpicado com as manchas de uma taça de vinho derramada, no que percebi que Cinquenta e Seis havia tido o seu jantar de celebração do grau de Bacharel de Artes e Humanidades.

— No inverno seguinte, o hábito de limpar a caneta em seu lenço de bolso, o qual eu havia percebido no período de exames finais, tornou-se crônico, e eu soube que ele havia entrado no estudo das leis. Ele trabalhou duro naquele ano, e as camisas sociais quase desapareceram do seu fardo semanal. Foi no inverno seguinte, no segundo ano de seus estudos de Direito, que a tragédia de sua vida se iniciou. Tomei ciência de que houvera uma mudança em suas roupas: de uma, no máximo duas por semana, as camisas sociais passaram a vir em grupos de quatro, e os lenços de bolso de seda começaram a substituir os de linho. Ocorreu-me que Cinquenta e Seis estava abandonando o teor rigoroso de sua vida estudantil e passando a frequentar a sociedade. Percebi algo mais: Cinquenta e Seis estava apaixonado. Logo não era mais possível duvidar disso. Passou a usar sete camisas por semana; os lenços de linho desapareceram de seus fardos de roupa; seus colarinhos foram de duas polegadas para duas e um quarto, e enfim para duas polegadas e meia. Tenho em minha posse uma de suas listas de roupa daquele período; uma breve olhada revelará o cuidado escrupuloso o qual ele dedicava a sua pessoa. Bem me lembro das crescentes esperanças daqueles dias, alternando-se ao mais sombrio desespero. A cada sábado eu abria o seu fardo com temerosa expectativa de captar os primeiros sinais do retorno de seu amor. Ajudei o meu amigo de todas as formas que pude. Suas camisas e seus colarinhos eram obras-primas da minha arte, embora as minhas mãos não raro achavam-se trêmulas de agitação enquanto eu aplicava a goma. Ela era uma moça corajosa e nobre, disso eu sabia; sua influência estava elevando toda a natureza de Cinquenta e Seis; até então, ele tinha em sua posse certo número de punhos avulsos e de falsas frentes de camisa. Estas foram descartadas — primeiro as falsas frentes, desprezando a ideia mesma de fraude, e após algum tempo, em seu entusiasmo, abandonando também os punhos avulsos. Não consigo relembrar aqueles dias de radiante alegria pela corte à dama sem suspirar.

— A alegria de Cinquenta e Seis parecia penetrar e preencher a minha vida toda. Eu não vivia senão à espera do próximo sábado. A aparição de falsas frentes me lançaria ao mais profundo desespero; a sua ausência elevava-me ao ápice da esperança. Não foi até que o inverno se suavizou em primavera que Cinquenta e Seis forçou-se a conhecer o seu destino. Certo sábado, ele me mandou um colete branco novo — indumento que até então havia sido evitado pela sua modesta natureza — a ser preparado para o seu uso. Lancei mão de todos os expedientes de minha arte; compreendera os seus propósitos com aquela peça. O colete retornou a mim no sábado seguinte e, com lágrimas de felicidade, observei onde uma calorosa e pequenina mão repousara afetuosamente sobre o ombro direito, e soube assim que Cinquenta e Seis fora aceito como o amante de sua amada.

Ah-Yen fez uma pausa e permaneceu em silêncio por algum tempo; o seu cachimbo apagara-se e jazia frio na palma fechada de sua mão; seu olhar estava fixo na parede na qual a luz e as sombras se revezavam conforme oscilava a fastidiosa chama da vela. Por fim, tornou a falar:

— Não me alongarei sobre os felizes dias que se seguiram — dias de espalhafatosas gravatas e alvos coletes veranis, de imaculadas camisas e elevados colarinhos usados não mais que uma única vez pelo meticuloso amante. A nossa felicidade parecia estar completa e eu não pedia mais ao destino. Ai de mim! Não estava destinada a perdurar! Quando os ensolarados dias de verão foram desvanecendo e convertendo-se em outono, pesou-me notar ocasionais desentendimentos — apenas quatro camisas em vez de sete, ou o ressurgimento dos abandonados punhos e frentes de camisa. Seguiam-se as reconciliações, com lágrimas de penitência sobre o ombro do colete alvo, e então retornávamos às sete camisas. Mas as brigas tornaram-se mais frequentes e por vezes houve tempestuosas cenas repletas de emoção passional que deixaram uma carreira de botões quebrados no colete. As camisas foram vagarosamente reduzidas a três, e então caíram para duas, e os colarinhos do meu infeliz amigo decaíram para uma polegada e três quartos. Em vão, dediquei meus maiores cuidados ao Cinquenta e Seis. Pareceu à minha razão torturada que o lustro de suas camisas e de seus colarinhos teriam derretido um coração de pedra. Ai de mim! Todos os meus esforços visando à reconciliação pareciam fracassar. Passou-se um horrendo mês; as frentes falsas e os punhos avulsos estavam todas de volta; o entristecido amante parecia glorificar-se em sua perfídia. Por fim, numa noite sombria, ao abrir o seu fardo descobri que ele havia comprado uma pilha de falsas frentes de celuloide, e o meu coração me dizia que ela o tinha abandonado para sempre. Não sou nem capaz de dar-lhe ideia do quanto sofreu o meu amigo nesta época; basta dizer que ele passou da celuloide para uma camisa de flanela xadrez azul e do azul para o cinza. A visão de um lenço de bolso vermelho em meio às suas roupas serviu-me de aviso de que a sua decepção no amor havia conturbado a sua mente, e eu temia pelo pior. E então houve um angustiante intervalo de três semanas, ao longo das quais ele não mandou nada, e depois daquilo veio o último quinhão que recebi de si — um fardo enorme que parecia conter todos os seus efeitos. Nele, para o meu horror, descobri uma camisa cujo peito estava manchado pelo carmim profundo de seu sangue e transpassado por um buraco irregular que mostrava por onde a bala chamuscou-lhe o peito e perfurou o seu coração.

— Uma quinzena antes, lembrei de ter ouvido os garotos na rua anunciarem a notícia de um suicídio terrível, e agora sei que deve ter sido o dele. Passado o primeiro choque de meu luto, busquei mantê-lo em minha memória e desenhei o retrato que está aí do seu lado. Tenho alguma habilidade nesta arte e estou seguro de que consegui captar a expressão de seu rosto. A imagem é, sem dúvida, uma imagem ideal, pois, como você sabe, eu nunca vi o Cinquenta e Seis.

A campainha da porta de entrada da loja tocou com a entrada de um cliente. Ah-Yen levantou-se com aquele ar de silenciosa resignação que marcava as suas maneiras e permaneceu na loja por algum tempo. Quando voltou, não parecia estar no clima de continuar a falar sobre o amigo que perdera. Deixei-o logo em seguida e caminhei pesaroso de volta aos meus aposentos. No caminho, meditei profundamente sobre o meu caro amigo oriental e sobre a compreensão simpática de sua imaginação. Mas um peso angustiava o meu coração — algo que eu o teria dito de bom grado, mas que não pude sequer mencionar. Não consegui encontrar forças em meu coração para estilhaçar o castelo de fantasias que ele construíra no ar. Pois minha vida havia sido isolada e solitária e eu não tinha conhecido amor como aquele de meu amigo ideal. Ainda assim, tenho a recorrente lembrança de certo fardo enorme de roupas a lavar que mandei a ele cerca de um ano atrás. Estivera ausente da cidade por três semanas e, como consequência, minha pilha de roupas sujas tornou-se muito maior do que o normal. E, se não estou enganado, encontrava-se mesmo no fardo uma camisa esfarrapada que havia sido seriamente manchada pela quebra de um vidro de nanquim vermelho em minha maleta de viagem, e que fora queimada no lugar onde caíra a cinza do charuto que eu fumava enquanto colocava as roupas no fardo. Disso tudo não tenho absoluta certeza, mas sei ao menos que até um ano atrás, quando transferi minha conta para um estabelecimento mais moderno, meu número na lavanderia de Ah-Yen era Cinquenta e Seis.

 

 

Stephen Leacock
(1869–1944) foi um economista, professor universitário e autor canadense. Sua carreira como escritor de ficção começou um pouco ao acaso: vendia textos para complementar a renda. Logo o seu talento para a escrita humorística tornou-se evidente. Fez rir todo o mundo anglófono: diz-se que, num certo período do século 20, Leacock era mais conhecido do que o próprio Canadá. Escritor prolífico, publicou mais de quarenta títulos, entre ficção e não-ficção. Dentre os seus fãs ilustres estão Groucho Marx e Scott Fitzgerald.
Ana Júlia Galvan
Rascunho