Tradução: Ronaldo Cagiano
Vais
Ela está sobre seus olhos
equilibra os pés no olhar
tem a forma de suas costas,
a cor da cinza.
Só se vê no espelho cego de sua retina.
Ela chega até seus sonhos
e lhe pede em silêncio a lembrança
de uma frase: olhos de cão azul.
Desespera
tocar o olhar,
encontrar-se
neste lado dos lábios;
ajustar o rosto ardente
às palavras esquecidas,
às palavras nunca apreendidas.
Quem é você?, perguntas
sobre a chama de cada meia-noite.
Ela canta no vento das horas
para acender as paredes:
olhos de cão azul.
…
Aonde queres chegar?
Retocar a expressão dos rostos
penetrar como navalha em suas rugas
que tremem
ao engolir as palavras.
Ser a garra que arrasta suas misérias
a patada sonora que expulsa suas angústias.
Aonde quereis chegar,
Menina galhofeira?
Fazer estragos até romper-se o crânio
com o pó da minha lubricidade,
ser o pesadelo que te toma
e habita tua estupidez.
…
1976
Todos escutaram os golpes
mas foi a criança de pezinhos magros
a que abriu a porta
a que sentiu sobre seu rosto
a fúria assassina,
Trimegisto uniformizado.
A realidade já não seria a realidade
Necessário inventar outro mundo
Necessário inventar outra verdade
Criar outra mentira.
A criancinha de pezinhos magros
gritava ao seu avô
que escondia as palavras
que em uma caixa guardava a sua verdade.
Silêncio.
A menininha com pés magros
perde seus olhos verdadeiros
diante da fogueira
que devora sua memória.
Só recorda mortos.
Necessário inventar outro mundo.
Necessário inventar outra palavra.
Necessário criar o poema.
…
Insone (I)
Insone,
como as sestas sobre Haedo
à espera da cigana que te levará,
como dizia sua mãe, se não fores dormir.
O cheiro de jasmim come as palavras
a laranjeira guia o derroteiro
o pátio desaparece como seus olhos de sete anos
quando olhavas com as lentes do avô.
Quando tudo se faz cor
a retina se escurece
e pedes permissão, pequena,
para ficar a viver
nestes sonhos, assim,
insone,
ainda que seja somente um tempo.
…
Insone (3)
Insone,
encontrarás os ruídos da outra vida:
papai se barbeia em frente a um espelho na cozinha,
Rádio Colônia e a venda de um perramus.
Que é um “perramus”, perguntam seus olhos de oito anos.
Estava ali uma mensagem codificada
que papai esperava?
No entanto, as notícias falavam
da morte de um general
ou presidente — é o mesmo, diria o avô.
Os ruídos de outra vida
se convertem em cadeias, e o silêncio
amordaça as lembranças.