Ninguém me vê

Conto de Carlos Quiroga
01/06/2008

O autor é um dissidente da norma “oficial” que o galego usa na atualidade com grafia do castelhano. Neste texto, emprega a norma de aproximação ao português da Associação Galega da Língua, mas é partidário do Acordo Geral para a Lusofonia…

Venha, como se nada. Ponho o indicador e encosto o carro.
Nom vai realmente frio. Parou de chover. Compostela sempre igual.
Parece que temos umha fonte por cima. Mas já nom chove. Menos mal.
Esta hora é boa. Ao escampar isto vai-se encher de gente a pé. Melhor.
Está bem a gente. Que mirem. Quanta mais gente andando melhor.
O único terrível seria ficar de carro engasgado. Engarrafado. O único.
Ficar atrapado seria terrível. Ou levar um golpe no carro. Isso, isso também.
Mas a esta hora nom. Nem muito carro nem nada. Esta hora é boa.
Ninguém vai reparar especialmente em mim. Aqui está bem.
De modo que como se nada. Assim, o indicador. Encosto. Venha.
Santiago de Chile é ideal. Boa escolha. Fundamental começar com bom pé.
E esta rua conheço bem, magote de gente sempre.
Ninguém vai reparar especialmente em mim. Aqui está bem.
Quanta mais gente melhor. Cada um ao seu. A ver, descer, abrir atrás.
Assim. Todos andam. Todos miram. Ninguém vê. Cada um ao seu.
Pego na primeira saca de lixo sem abrir muito a porta. Como se nada.
Que nom se veja nada do interior do carro. Assim. Com calma.
Vou deixar a carteira no assento. Nom seja o demo que me caia fora.
Estas algibeiras frouxas nom dam confiança. Devim deixar em casa.
Andar com a carteira para estas cousas. Claro que podo ter um percance.
Mais vale acalmar-se, que percance vou ter! Quem ma vai pedir!
Com ter precauçom todo irá bem. Deixo-a aí e já está. Sem mais voltas.
Seria estúpido que me caisse ao lado de um contentor! Menudo drama!
Assim, com mais sacas vazias no assento. Nunca se sabe farám falta. Pronto.
Todo em ordem. Vamos lá. Com toda normalidade. Calma.
Muita gente pára um segundo para deitar umha saca de lixo. Mesmo de carro.
É o mais normal do mundo. Mesmo a esta hora. Sempre se tem um apuro.
A ver. Isso é, bem fechadinho o lixinho. Reforçado por três bolsas.
Olha que nom gastei bolsas nem nada. Compradas num pedido no Froiz.
Que sorte ter em casa reserva. Depois comprarei mais. Prevenir.
Ainda me quedam essas do assento. Mas comprarei. Noutro hiper diferente.
Se alguém investiga pedidos do Froiz, quê…? Todo o cuidado é pouco.
Bom. Cada embrulho é um senhor embrulho. Ninguém repara.
Foi boa ideia vir a esta hora. Ninguém me vê. Esta hora é boa.
Mais cedo os contentores estariam vazios. Melhor agora.
O justo, nem muito cedo nem muito tarde. Ninguém me vê.
Se ficassem mais tempo da conta era capaz de vir algum cam farejar.
As meninas bem, faltas de macho, sacam os bichos para passear-se elas.
Meninas bobas. Nunca se sabe com elas. Levam ao passeio para que caguem.
Por deixá-los cagar em dissimulo consentem-lhes que mordam o lixo…
Deuses, que perigo. E se ainda vem algum cam que teime em ranhar?
A esta hora é impossível. O risco é nulo. Ficam no contentor. Dentro.
Agora já pouco tempo terám de ficar. Nom vai calor. Nom cheiram.
Nom, a esta hora o risco é nulo. Nem essas bobas com cam.
Se chego a vir mais tarde os contentores estariam cheios a rebentar.
Aí sim. Nom quero nem pensar que ficassem as bolsas à tona. Caindo.
Mas ficam pelo meio, mais ou menos. Está no ponto. E ninguém vê.
Os que se ocupam de desabar o lixo das casas deitam por cima outras.
Deitam por cima e as saquinhas ficam polo meio e tudo. Que bem.
A primeira um sucesso. Santiago de Chile é ideal. Perfeito.
Parei-me mais da conta. Tenho que despachar-me. Mas foi arrancar.
Esta rua conheço bem. Toda a gente vai ao seu. Ninguém repara.
Era onde vinha encontrar-me com a tia aquela do restaurante A Roda.
Vinha ao seu apartamento foder nela. Foi ela que me ensinou a foder.
Que puta era, caralho. Que puta era aquela tola…
Tinha um cu enorme, e um quarto a prova de som. Era o que valia.
Andava sempre quente. Acabei por afazer-me a que gritasse como umha cadela.
Mas colheu-lhe gosto ao meu pastor alemám, precisamente. Que porca.
Eu estava em quarto ano de Direito e tinha pouco tempo para sacar o cam.
Nom fora grande ideia aquela de ter um cam. E logo passa-me isso.
Devim suspeitar quando se punha tam contento ao vê-la a ela.
Se ela nunca o sacava à rua quando lho deixava. E entom? A cabrona…
Depois um dia apanhei-nos, e ela nom negou. Que descarada.
Depois custava-me deixar-lhe o cam. Ela ria-se quando lho deixava.
Ainda duramos. Mas eu tinha ciúmes do Rocki, para que negá-lo.
O Rocki queria melhor ficar com ela do que comigo. E um dia mordeu-me.
Acabei por matá-lo. Que ia fazer. Teria sido melhor matá-la a ela. Puta.
Esse era o seu portal. Três sacas no seu contentor. Polos velhos tempos.
Podo deixar mais de umha porque estám bem fechadas. Claro.
Também nom vou passar horas com isto. Ninguém me vê. A ver.
Nesta rua até podo fazer outra paragem. Na esquina da praça de Vigo outra.
Mas calma, tenho de fechar o carro de cada vez, merda!
A ver se no instante de descer lhe dá por vir algum cabrom meter mao no carro.
Tenho que pensar em todo, caralho, nom vou estragá-lo agora. Calma.
Respirar fundo. Assim. Concentrar-se num ponto. Sem nervos.
Merda, agora começa a chover outra vez. Bulir. Ninguém me vê.
Vai haver mais trânsito e estará complicado. De modo que arreando. Bulir.
Claro que devo separar as paragens, nom vá alguém dar-se conta.
Alguém andando que repara em mim descendo aqui com bolsa e logo ali.
Seria raro. Poderia haver suspeitas. E se depois algumha bolsa…
Bom, nem pensar nisso. As bolsas vam sumir no limbo sem ninguém saber.
E a gente passa de ti, caralho. Cumpre só ter cautela. Pensar em todo.
Nem muito próximas nem muito afastadas, portanto. As paragens.
Seria cansativo umha por rua. Cautela inútil. Umha bolsa por rua é pouco.
Portanto paragens assim afastadinhas. Rápidas. Duas ou três. Depende da rua.
Do lado do S. Luís passo, nom seja o demo algumha cámara na montra.
Terei de dar outra vez a volta para entrar na Avenida de Vilagarcia.
Aqui dá para outras duas. Bar Riky. Pouco movimento.
Estes metem pouco lixo por cima, seguro. Mas tanto tem, ninguém vê.
E já vai ficando menos. Ninguém me vê. Aqui nom há problema.
A cidade velha é que seria lio, mas aqui é perfeito. Os camions engolem. Automaticamente engolem, daqui a nada. Sem deixar vestígio.
Esse é o plano. Sumindo para sempre. Está perfeito.
Na cidade velha estám as cámaras. Que filhos de puta. Espreitam tudo.
Lembro-me aquela vez com o sobrinho do fulano da Deputaçom de Ponferrada.
Queria que lho tirasse fora como fosse, claro. E devia-lhe um favor ao velho.
Ai, que hóstia! Já nom me sentara bem a telefonadela à hora de comer.
Mas os favores pagam-se. E essa gente é perigosa. Acabei por ir, claro.
De todos os modos foi curioso. Aguardando que declarasse o merdinha.
Até o passei bem com o sargento de guarda. O macaco aquele de bigode.
Devia ser sargento, creio. Divertia-se ensinando na sala aquela os aparelhos.
Até podia entrar nos quartos das casas, o canalha. Que tipo!
Putas cámaras, e que bem as movia o tio! Para espiar as tias.
O que nom teria visto o fulano! O que teria gravado!
Mas agora jogo à contra. E estou avisado. Na parte nova ainda bem…
Uff, perfeito. Estou começando a suar. Nom é o peso das bolsas. Serám nervos.
Hóstia, fechar o carro de cada vez, merda! Em que quedamos!
Calma, nom passa nada. Simplesmente estar atento. Concentrado.
Vou tirar as luvas um segundo. Nom passa nada por ir de luvas.
Pode ser um tipo que vem da finca, eu que sei. O quatro-por-quatro de currante.
Hóstia, esse quer sair! Nem umha palavra, nem mirar o tio. Calma.
Tenho de ter cuidado. Vamos fora. Que se abra o semáforo. Abre-te!
Romero Donalho. Nom dá para encostar, nom é questom de dar nas vistas.
E o tipo esse continua colado a mim aí atrás. Calma, que passe. Bem.
Mas aí nas motos pode ser. Bem. Entrou. Assim. Vamos, como se nada.
Cuidado agora! Se alguém me bate hoje estou perdido.
Assim. Visto e nom visto. Cada um ao seu. Ninguém reparou.
Foder, o carro, nom fechei o carro, merda! Que hóstia!
Mas também nom é para tanto! Aqui era um segundo. E ninguém ao lado.
Norma é norma. Tenho de fechar o carro de cada vez. Sempre. Claro que…
Nom nom nom. Tenho de ser lógico. Agora nom era necessário.
O raro é pôr os piscas a gritar que fecho para afastar-me dous metros.
Cuidado com os circos. Nom vou andar abrindo e fechando ao momento.
Fecho de regra. Mas em casos assim nom fecho. Sentido comum.
Vamos aos lados do Corte Inglês. Esses palhaços vendêrom-me aquela vitrocerámica. Ardeu aos dous meses.
Palhaços. Como ia deixar eu ligado toda a noite!
Vou-lhes dar eu Semana Fantástica. Vou-lhes dar eu le devolvemos su dinero.
Estes contornos de casas novas nascêrom com eles. Palhaços!
Aí vai propaganda, quatro sacas. Até devia atirar-lhes no estacionamento.
Umha bolsa num canto e outra noutro, para que limpem eles!
Que loucura! Que bobagem! É bobagem, mas devia! Bobagem…
Estou ficando nervoso, tenho de controlar. Mijar fininho.
Ter precauçom é a divisa. E deixar-se de delírios. Sem mais voltas.
Estou ao que estou. Concentrado. Firme. O feito feito está.
Agora sair desta o melhor que puder. Resolver isto. É fácil.
Um grolo de genebra, creio que é o momento de atemperar os nervos.
Para algo preenchim a lata de Coca-Cola com ela. Que bem senta.
Nom estou nervoso. Realmente estou melhor do que esperava.
Pensei que me ia custar mais do que me está custando.
O certo é que o duro já passou. O único que podo fazer agora é concluir.
Acabar com isto. E esta parte é fácil. O difícil foi o outro…
Agora concentrar-me. Atender ao que estou a fazer…
Mas que estou a fazer? E se me param? E se cheiro a aguardente?
Basta, um grolo nunca senta mal, caramba. A ver se vou pôr-me paranoico.
A genebra é medicinal, mesmo. A vida é líquida como a genebra. Seguimos!
Castinheirinho. Aí é um cante. Polo Paz Nogueira dá melhor.
Assim, nesse beco um instante. Vamos dentro. Pronto. Ninguém me vê.
Fechar o carro. Assim, concentrado vou fazendo a direito.
Começo a respirar. Sem nervos. Calma. Assim. Todo vai bem.
Vou dar volta à rotonda e rumo à Rua do Hórreo. Essa também presta.
Mas no final. No princípio pode haver cámaras no Parlamento. Cuidadinho.
Vamos, como se nada. Na Galuresa sempre há algum zarolho que se mete.
Calma agora. Nem que se parem aí querendo ir para a esquerda. Aguardo.
Hoje nom se pode dar a nota. Nem de tartaruga nem de fittipáldi.
Nem com chulos como aquele que me rascou aquela vez.
Foi bem hostiado para casa, pois foi. Chorou baba e ranho.
Hoje aturar o que seja. Que armem barulho outros. Eu nom existo.
Assim. Subo sobre o passeio. Este carro sobe polas paredes!
Foi boa ideia vir com este, o outro seria um cante. As cidades estám cheias deles.
Cante seria andar de desportivo com as bolsinhas. Para além do espaço, claro.
Outra. Tenho de engraxar o portom trasseiro. Qualquer dia abre-me a cabeça.
A verdade é que resulta triste ver em que deu o gajo. Mandril. Aí…
Moveu-se! A bolsa moveu-se! Dou-lhe com a manivela do gato! Toma! Toma!
Mas como se ia mover…? Estou tolo? Que imbecil! Que estúpido!
Agora rompim a bolsa. Que putada. Está manchando o tapete de goma.
Que porcaria. Isto tem um aspecto horrível. Hóstia, que nojo!
Calma agora. Foi um pronto. Alucinei. Talvez até havia aí algo quente…
Admitamos que se moveu algumha cousa, que nom.
Admitamos que umha bolsa moveu a outra, talvez isso.
Que importa! Agora retomar o controlo. Isso é o único que importa!
E evitar chamar a atençom. Menos mal que deste lado nom passa ninguém.
Do outro lado a gente que mire. Nom vê. E os carros passam sem tempo de ver.
Merda! Manchei as luvas! Que nojo! Com essa nom contava!
Isto está-se descontrolando! A continuar assim estou perdido!
Vou ter de deitar as luvas também ao lixo! Mas isso nunca!
Calma. Limpo-as um bocado. Tenho de recuperar o controlo.
Agora que todo ia bem. É preciso ter calma. Respirar. Assim.
Menos mal que tenho reservas. Rápido, bolsas, todas estas.
Já está. Ninguém vê. Ninguém vê. Nom passou nada!
Calma, rapaz. Respirar profundamente. Assim. Tudo bem, zen.
Vou fumar o charro que guardava para o final. Necessito agora.
Calma. Nom devia ter bebido. Mas fumar sim, vai-me relaxar.
Tudo melhora fumando. A maria dá saúde. Até os americanos sabem.
Devia ser legal. Cona de políticos! Seguro que nom é por algo.
Polo menos pode-se ir arranjando sem problemas. Enfim.
O pior passou. Como relaxa. Que susto levei. Uff.
Foi um arrebato como este o que me meteu no lio. Tenho de serenar-me.
Fazer o que tenho de fazer e pronto. Nom vou arruinar a vida por este merda.
Pola merda que fica deste merda. Prato de merda.
Emporcando o tapete de goma. Como me cabrea!
Dá vontade de dar-lhe outra vez com a manivela. Calma.
Menos mal que ocupa pouco. O tísico. Sempre foi um verme.
Pequeno. Magro. Estou a ver o seu dente a querer rir.
Que nojo. Foi isso… Agora que caio na conta, foi isso!
O seu sorriso, o filho de puta deitou aquele sorriso que foi a chispa. Foi isso.
O chouriço vermelho ardeu-me nos olhos. E a faca na mao.
Se até o ia convidar a merendar de bom grau. Se a cousa podia ter passado.
Mas nom. Foi aquele sorriso que o filho de puta me atirou à cara.
E o chouriço ardeu-me vermelho nos olhos. E na mao a faca.
Estou a ver-lhe o último giro dos olhos desorbitados ao ver-me a mao.
A faca manchada de couriço Revilla na mao. Os olhos dele um segundo na faca.
A seu último giro de cabeça em direcçom à mao.
O seu último sorriso de dente podre.
Foi todo como num filme.
Caindo em cámara lenta num ploff. Ploff…
Rápido. Limpo. Foi todo assim fluído como este fumo azul.
No ar. Subindo. Caindo…
Fumar dentro do carro parado é um alucine. E um nojo.
E agora pom-se a chover outra vez. Que chova.
Que mal se vê polos vidros. Cheira… Tou ficando torto.
Entre a maria e o calor das bolsas vê-se fatal. Mas tenho que bulir.
Ainda deve estar quente, o baboso. Ainda causando problemas.
Mira que lhe advertim que se metia, que assim nom íamos a nengum lado.
Mira que lho advertim. Maltratador ele! E as pastilhas! Calma…
Nom vou alterar-me outra vez. Agora nom. Calma…
Acabou o charro. Que bem agora. O mundo é mais redondo.
Vamos seguir. Melhor pola praça da Galiza e desço por Doutor Teijeiro.
Na General Pardinhas é que metêrom essa história de camuflar o lixo.
Menos mal que nesta ainda fica o de sempre. Tanta modernice.
Nom dá para estacionar. Um instante na raia amarela. Bulindo.
Esse tipo creio que já o vim antes… Que mira, o ranhoso? Que mira?
Tenho o pulso acelerado. Transpiro. E se me viu noutro contentor?
E se lhe chama a atençom que ande deitando bolsas?
Se me viu várias vezes… Fazendo o mesmo… Entom…?
Era o que temia. Alguém que reparou antes e me reconhece agora!
Será o mesmo tipo!? Já estou delirando outra vez! Calma, caralho, calma!
Nom pode ser. Nom pode ser. Foi casualidade.
Tás a ver? O tipo passa de mim. Foi um alucine.
Necessito ter calma. Necessito outro grolo de genebra. Calma.
Assim. Que bem senta. Já estou melhor. Já estou melhor.
O álcool e as drogas baixam os níveis de testosterona… Bobagem!
Os meus clientes som os que mais se metem e andam sempre saídos.
Escorre testosterona a rodos por onde passam. Bobagem.
Cousas do tísico. E…, mecagoemtododeus, assim começou tudo!
Nem pastilhas nem hóstias! Nem conselhinhos nem hóstias!
Toda esta loucura começou por tanta teoria, conversinhas, bobagens!
Toda esta loucura por corregir o que estava bem!
Foi ela que se empenhou! Ela!
A mim nom me passava nada!
Era ela, era Eva! E o tísico…
Olha que sou um tipo tranquilo. Dou-me com todos. Escuito.
Já quando falou no anel constritor lho devia ter posto a ele nos colhons.
Em hipótese! Porque falava em hipótese!
Mas em hipótese e de facto! Devia mesmo!
Devia-lhe ter dito sim senhor, mostre a ver, e pôr-lho a ele nos colhons!
Tanta conversinha, tanto repaso de infância, tanto conte-me conte-me.
E considerar hipóteses. E suplemento hormonal. E…
Para a puta que o pariu! Em hipótese e de facto!
Via-se em palpos de aranha e lançava aquelas histórias foleiras.
Hipóteses. Conversinhas. Tarefinhas para casa!
Correcçom cirúrgica a que lhe figem eu! Toma soluçom final!
O piolho era capaz de acabar comigo. E já acabou, de facto!
Cabrom! Estafador! Filho da grande puta!
Mas também eu acabei! Claro que acabei! Soluçom final!
Calma…
Estou-me alterando outra vez… Nom pode ser!
Vai ser melhor mudar de zona. Estou ficando nervoso de verdade.
Nom podo estragá-lo agora. Vamo-nos fora de aqui. Calma…
Hóstia, será esse o tipo de antes? Parece que está a mirar o carro!
Estará a seguir-me? Veria-me antes…? Fora, cagando chispas!
Outra vez o pulso, tum-tum, tum-tum. Estou a suar dentro da roupa.
Nom se vê um caralho, esta chuva. E esse merdento de antes!
Mas nom pode ser o mesmo tipo.
Estou delirando outra vez.
Calma!
E se é nom passa nada!
Ele dirá o mesmo. Dirá, que curioso.
Dirá que curioso e ao caralho. Que curioso e ao caralho! Andando!
É dos nervos. Só isso. Ninguém suspeita nada. Ninguém me vê.
Isto vai acabar bem. Vai acabar sem ninguém saber. Tou fazendo bem.
Calma. Assim. Conduzir sempre relaxa. O carro sempre relaxa.
Respirar.
Uff. Assim. Calma. Tou melhor. Tou melhor.
O carro sempre relaxa…
Ainda me acordo do Fiat… E do seu banco trasseiro. Como relaxava…
Estava em quinto ano e fugia ao monte com aquela assistenta do Departamento.
Sara, chamava-se Sara, quanto tempo sem lembrar-me de Sara…
Despelotava-se toda e ficava só de saltos altos. E o rabo redondinho e duro!
Dava-me as costas de corpo banhado pela lua e fazia que mirava as luzes.
Ela fazia que mirava as luzes da cidade abaixo e eu mirava para ela.
E o Pedroso era como umha catedral para o altar das suas tetas grandes.
Enormes. Penduravam por trás do respaldo do Fiat.
Bamboleavam sobre a roda de recâmbio.
Mirávamos juntos as luzes e agarrava-lhe as tetas e esmagava-lhas todas.
Metia-lhe a moca por trás até que lhe doia de gosto. Doia. Mas que gosto!
Dizia-me para parar e começar mantendo-me à beira do orgasmo.
Até que eu nom conseguia aguentar mais. E estourava dentro.
E era bom. Relaxava.
Como relaxava conduzir até ali. Ir lá encima…
Aquela vez dormimo-nos e acordou-nos umha cambada de velhos.
Era o princípio da manhá e ela riu-se alto das suas caras de figo.
As suas caras de figo nos vidros embaçados.
Ela nom podia parar de rir. E correu atrás deles descalça e em pêlo.
Polo meio do monte um trecho, sem parar de rir, a louca.
Eles dando com os calcanhares no ar.
Ela machucando os pés, rindo. Os saltos altos…
Nunca parou de rir com as suas tetas grandes bamboleando como louca.
A Sara estava pirada! Mas boa. Estava boa.
Relaxava. Como relaxava.
Quem ia imaginar que acabaria liando-se com um tipo que podia ser o seu pai.
O seu pai duas vezes. Até podia ter sido algum daqueles cara de figo.
Zorra…
Hóstia! Esse quase me bate. Nom vejo um caralho!
Olha que a gente está pirada. Quanto louco solto.
Devo estar mais atento. Tenho de concentrar-me nisto.
Que estou fazendo. Merda!
A magicar tempos de colegial estúpido. Isto é sério, caralho!
A ver quantas bolsas faltam. Já deve faltar pouco. Calma.
Pola Avenida de Lugo nom presta. Se entro pola lateral ainda dá.
Passa, filho de puta, passa, que sobra espaço!
Bom, controlando. Menos mal.
Fechar o carro, caralho! Fechar o carro, quedamos nisso!
Assim. Aí vai um pedaço. Adeus. Seu canalha.
Quanto trabalho me dá, o animal.
Agora está calado.
Vamos à Área Central.
Nessas ruas todas também há camiom automático.
Assim, controlando. Estava a ir-me de parafuso frouxo.
Agora volto estar centrado. Ninguém me vê. Calma.
Quanta gente, quanto carro. A gente nom tem que fazer. Comprar.
Compre, compre. Compre novos problemas. Para solucionar o problema.
Gente. Melhor. Quanta mais mire menos vê. Bolsa.
Quanta palavra vai dentro. Apagada, finalmente.
Nom devia ter-se metido. Caladinho agora.
Já nom pergunta nem anota. Tarefas sexuais para casa.
Já lhe darei eu. Vou-lhe humilhar eu. Tarefas sugeridas eu.
Aqui vou meter três ou quatro bolsas. Tenho de acabar com isto, hóstia!
Estou-me angustiando.
Quando me angustio acabo por fazer barbaridades.
A culpa foi toda do tísico desde o princípio. E da Eva!
Eu sou um tipo tranquilo. Dou-me com todos. Sei escuitar.
Mas nom havia necessidade deste merda. A barbaridade foi essa.
Outras duas sacas. Esta é mais grande. Esta merda…
Que é o que irá aí? Nom sei…
Pola forma… Nom sei.
Que imundície. Como deixaram isto à volta. Porcos.
Nom seja o demo que ao recolhê-lo abram o contentor e adivinhem.
E que vam adivinhar? Nom me sejas outra vez paranoico!
Umha saca de lixo. Ninguém se mete no lixo.
Umha bolsa mais limpinha que isso aí.
Anda, anda, isso sim que é nojo!
A gente é bem porca!
Tanto tem. Rua. Lixo. O lixo com o lixo.
As minhas bolsas é que mereciam ficar expostas aí.
Abertas. Todo espalhado.
Lindo e lavado, com ficha curricular do animal de origem.
O animal que se tinha por grande cousa. Por bonitom até se tinha.
E o caso é que o tio ia de frique. O que mais me fode.
Ia de frique cobrando. Há que foder-se com o cabrom!
Já lhe disse que era melhor deixá-lo. Empenhou-se em vir a casa.
Nom devia ter-se metido. Pastilhas. Conselhos.
Nom devia ter-se metido. Segue comigo. Segue comigo.
Nom devia ter-se metido. Como amigo. De colega.
Na calada da noite. Após o trabalho. Metendo-se. Seringando.
Outras duas bolsas. Vai seringar os bichinhos dos lixinhos!
Sem cobrar, dizia. Mas cobrava. Como amigo, dizia.
Trinta euros visita, dizia. Isso é o que acabava por dizer.
Ladrom. Ladrom!
Quem o chamou? Estava-me a sacar o coraçom.
O seu é que eu tenho nas maos agora. Escorrendo.
Mamom. Grandíssimo merdento!
Dá-me vontade de ir pola manivela de novo. Hummm.
Cuidado. Estou-me alterando outra vez. Calma.
Aqui anda menos gente agora. Que mirem. Nom vam ver.
Tinha que soltá-lo ou rebentava. Era isso.
Desabafar está bem. Agora estou melhor.
Quando me vem à cabeça aquilo, acontece.
Nom é para menos, já o sei, já o sei.
Mas jogo-me muito agora. Paciência. Já passou.
Acabo de umha vez e ainda chamo a Rosário. É boa ideia.
Faz-me um trabalho limpo antes de dormir e tudo isto fica esquecido.
Amanhá tenho de levantar-me às sete para ir ao escritório de Vigo.
A Rosarito é boa tia. Com ela podo estar tranquilo.
Eu tenho de fazer o meu trabalho e ela o seu.
Se a Rosarito nom fosse assim, algo tatebitati, ainda me valia de secretária.
A outra cabra deixou-me colgado.
Queixas de que! Era boba, a tia…
Sabia de leis, mas da vida nada. E os meus clientes som especiais.
Ainda podia ter pensado em ajuda deles para este assunto.
O Estif, por exemplo.
Mas melhor nom complicar. Quem a caga que a coma.
Adiante. Vamos, machinho! Ninguém me vê.
Todas estas ruas resultam iguais, tontas.
Atenas. Berlim. Viena. Eu que sei…
A Eva está em Genebra. Creio.
Vou tomar outro grolo… Ela está em Genebra.
Ela deveu ir pondo-se cachonda com aquelas conversinhas.
Ela ficava cachonda com aquelas conversinhas. Certeza.
Ia ficando cachonda com as conversinhas do terapeuta, mas eu nom podia.
Conversinhas do verme. Baba do verme. Baba do bobo do verme.
Ela cachonda mas nom comigo. Eu nom podia nesse momento. Eis o problema.
Antes ia-lhe a marcha. Caralho se lhe ia. Ia-lhe a marcha como a mim.
Teríamos solucionado o problema nós. Estou seguro. Os dous.
A mim nom me passa nada. Está claro. Só fôrom os podres do momento.
Fomos arranjar verdadeiro problema para solucionar o problema.
Ela antes era cachonda comigo. Claro que era. Por que deixou de sê-lo?
Ela antes pedia-me que a atasse à cama e todo. Pedia-mo ela!
E eu atava-a e fazia-lhe de todo. E ela gostava de ser rebaixada, que caralho!
Umha vez pediu-me que lhe apagasse o cigaro nas tetas. Pediu-mo ela!
E que lhe metesse cousas. Quando estava assim pedia barbaridades!
E que bem a chupava a zorra, com os olhos em branco!
As barbaridades punha-na cachonda. E a mim…
Depois nom sei que passou. Sucedeu aquilo todo, um mês difícil.
Ela era a mesma zorra mas eu nesse momento era incapaz.
Foi daquela fase frenética. O juízo aquele que perdim. Dinheiro.
Também bebia mais. Bloqueio. O tempo a passar.
E a ideia absurda de buscar ajuda. A ideia do baboso.
E nunca mais.
Nunca mais ma chupou.
Parecia repugnar-lhe a casa, o quarto, todo.
E sobretodo eu. Dizia-mo. Que lhe repugnava eu. Todo.
A minha roupa nas cadeiras. O meu modo de escovar os dentes.
E eu às vezes ouvia-a fechada no banho às duas da manhá respirando ofegante.
Isso nom se podia consentir, caralho. Era como umha patada nos colhons.
Descobrim-lhe livros eróticos e todo. Bolas vaginais. Cristo bendito.
Antes essas cousas pareciam-lhe imundas. Depois nom, a tia.
Acabou pirando-se porque lhe petou. E sem tocar-lhe um cabelo.
Só aquela vez das escadas. E a vez do pátio-de-luzes. Mais nada.
Pouca cousa. Arrebatos. Mas eu antes nom tinha assim tam forte.
Toda a culpa deste bolsinha de merda. Deste bolsinhas frescas.
As últimas.
Presa de merda. Saco de vermes. Vómito em bolsa.
Se nom fosse o peido este polo meio ainda estávamos juntos.
Creio que quando chegue a casa vou tentar falar com ela.
Chamo-a a Genebra. Por que nom? Falo-lhe bem.
Desde tam longe que vai temer? Falar só. Prometo que nom lhe toco.
Falar, era o que queria ela. Falar com ela. Nom foder, foder só nom.
Até podia contar isto. Como um segredo.
As barbaridades ponhem-na cachonda.
Digo-lhe que ainda levo aquela foto sua na carteira, a que está em pelotas.
Tenho aí na carteira. Deve estar aí, caeria no piso…
Mas nom! Nom vou retomar a conversa com umha cousa dessas.
Nom ao telefone. Tem que ser doutro modo.
A sua irmá deve ter o número de Genebra.
Pedir de boas maneiras e talvez mo dá.
E por que nom mo ia dar, mecagoemtodocristo!
Telefonar a Genebra…
Vou tomar outro grolo… Está a acabar-se.
Direi-lhe que estou curado! Já nom bebo. Quase.
Pode ser como antes. Falamos.
Nom vou contar-lhe nada disto!
Como ia contar!
Que estupidez. Nom vou assustá-la.
Ela vai-me dizer que nom volta…
Nom… Ela nom vai dizer nada.
Ela nem vai atender o telefone.
Ela se atende desliga. Certeza.
Nem a irmá vai dar o número.
Talvez mais adiante.
Quando isto acalme…
Ainda nom sai realmente desta.
Quem sabe o que será amanhá. Se alguém souber.
Umhas férias. Necessito umhas férias com urgência.
Amanhá vou arrumar aquilo e desvio a agenda toda para o Valente.
Ele tem pouco choio. Já mo tem dito. Passa-me algum quando queiras.
Está fazendo umha casa como um castelo.
Tem que manter a família, a amante.
Fica encantado com os meus clientes. Com alguns nem tanto.
O violador tem piada. Esse fará-lhe graça. Seguro…
O caso é pirar-me eu. Um tempo. Ventilar.
Podia ir a Genebra. Genebra…
Mas é loucura.
Faria outra loucura em Genebra. As vacas suiças…
Necessito outro grolo. Como se fosse leite…
Que bem senta nas veias. Que calorzinho.
Como o leite nas tetas de Eva…
Melhor nom!
Como vou apresentar-me ali, buscar como um cam ali!
Uns dias longe mas para outro lado.
Sol. Umha ilha, mulheres.
Genebra nom. Tenho que deixar de beber. Esquecer.
Terei de procurar outro terapeuta. Nom sei se estou curado.
Terei de procurar outro terapeuta… Estarei curado…?
Agora sinto-me realmente bem…
Até se me pom dura ao pensar na Rosarito.
Mas pode-me passar outra vez. E se me passa outra vez?
E se cometo outro disparate? Outro aproveitado destes…?
Seguro! Nom sei se estou realmente curado.
Estou mal. Nom sei…
E pode-me passar outra vez. E se me passa…? Calma.
Nom vale a pena adiantar-se. O que há-de ser será…
Agora voltar a casa e limpar bem todo. O carro. Todo.
A sujidade pom-me nervoso. Limpar é o mais importante.
E tomar duche até cair a pele… Sim, ou melhor um banho…
Atirar estas luvas nalgum contentor. Outro contentor.
E voltar a casa. Estou cansado. Tremendamente cansado.
Estou realmente mal. E ainda faltam detalhes.
Aqui nom há polícias como esses americanos das séries, forenses.
Los Angeles, a hóstia. Felizmente…
Felizmente ninguém vai saber.
Mas toda cautela é pouca. Nunca se sabe. Os imprevistos.
Seria a bomba que se soubesse. Já estou vendo as notícias.
Mas nom. Nunca. Até agora sempre tenho sido listo. Creio.
É questom de limpeza apenas. E cautela. Apenas isso.
Pom-me nervoso a sujidade. Só.
Nom sei se esquecim algum detalhe.
Voltar a casa e acabar com isto. Limpar é o mais importante.
Nom deixar pegada. Nada.
Cuidar os detalhes. Todos. Por se acaso.
Limpar a ferramenta. Recolher tudo. Apanhar a carteira…
Deveu cair aí. Depois procuro. Agora sair daqui.
Sair, abrir-se, que todos começam a mirar-me!
Sair, hóstia! Agora ir!
E descansar um pouco. Descansar…

Carlos Quiroga

Nasceu em Vilasante (Galícia), em 1961. Formou-se em Filologia Galego-Portuguesa e Filologia Hispânica na Universidade de Santiago de Compostela, onde é atualmente professor de Literaturas Lusófonas. Fundou e dirigiu várias revistas. Publicou sete livros individuais, como A espera crepuscular (2002) e Venezianas (2007). Recebeu duas vezes o prémio Carvalho Calero de narrativa, por Periferias (1999) e Inxalá (2006), o primeiro editado também no Brasil, e o segundo em Portugal. Seus textos foram publicados em antologias como a alemã Hotel ver mar, a portuguesa A poesia é tudo e a espanhola Traslatio literaria.

Rascunho