O tigre
Tiger, tiger, burning bright…
William Blake
O tigre é um animal inconstante e encantado,
A deslizar na sombra entre os móveis do quarto,
Aspirando o perfume que o faz de repente
Sonhar com o caminho invisível da mata.
O tigre é um animal de múltiplos disfarces,
Labareda sutil que ilumina os portais
Onde a noite se esconde ciumenta e maligna
E o caçador noturno apronta suas facas.
Parece tão manso deitado aos pés da cama,
Calmamente a afagar, nos limites do sono,
O pêlo macio com reflexos dourados,
Quando de repente, na doçura dos gatos,
Predador inocente enterra suas garras
No corpo que estremece, em êxtase, a seu lado.
(Salvador, 2013)
…
Adônis contra o tempo
Do azul da piscina,
As águas cálidas,
Ergue-se Adônis.
Pernas perfeitas,
Cintura de grifo,
Braços como asas
A nascer das espáduas.
Os pés deslizam
Sobre o chão molhado.
Como um barco navega
Em plena luz dourada,
A penugem do peito a arfar,
Suavemente,
Na cadência de dunas
Sopradas pelo vento.
A tocha da beleza
Ilumina-lhe a face,
Enquanto Cronos, sorrateiro,
Aproxima-se com suas artes.
Ai! Adônis!
Rendido serás,
Como eu, um dia,
Pelas artimanhas do tempo
Fui vencida.
Sorte é que os olhos
Já não possam
Com nitidez decifrar
O que dizem os espelhos.
(Janeiro, 2010)
…
Azul
Ninguém esgota o azul e seus mistérios
Murilo Mendes
Volto ao azul.
Regresso ao não buscado,
Ao nunca visto,
Sequer jamais sonhado.
Volto ao azul,
Ao derradeiro anseio
Do esperado,
Navegante a navegar
No rumo dos contrários.
As ilhas, sempre as ilhas…
E o ignorado porto,
Desfeito, arremessado,
Pelas marés do tempo
Ao enigma do outro lado.
Volto ao azul.
No abismo da memória
Invento os passos
Da criança que fui,
Outrora, em alguma parte.
Perto era o mar e em volta
O escuro… E meu cansaço.
Por que não me tomavam
Ao colo e me afagavam?
Por que não escutavam
Aquela voz que se perdia
Num choro que implorava?
Perto era o mar…
E o mar sempre será
Minha rota
E meu naufrágio,
Meu destino de pássaro,
Gaivota a mergulhar
Em busca do improvável
Porto onde nasci
E onde plantei a infância
E algumas mágoas,
Quando perto era o mar
E ao marulho das ondas
A noite se fechava
Como ostra na concha.
Volto ao azul…
À linha de arrecifes,
Que separa o perau
Das águas calmas.
Na transparência
Sem fim avisto o peixe
Que rápido se afasta,
Um delfim encantado,
Sereno a desenhar
Na opulência das vagas
A linha que o define,
Do vermelho encarnado
Às escamas prateadas,
O peixe,
Apenas um detalhe.
(Abril, 2013)
…
Entrando na água
Para Virginia Woolf
O peso de viver era maior
Que o frágil arcabouço
Que a sustinha.
Porque tudo era tão difícil
E até o amor era incapaz
De sustentar-lhe o flexível
Tronco da árvore do sonho
Onde a poesia,
Como um pássaro molhado,
Vinha abrigar-se dos ventos
E das chuvas,
A cantar seus delírios
Impossíveis.
Até que um dia,
Quando a pena de viver
Fez-se tamanha,
Enchendo os bolsos
Com as pedras do caminho,
Buscou a calma mortífera do lago
E docemente, serenamente,
Mergulhou para sempre
No abismo das águas
Que a chamavam.
(Junho, 2013)
…
O companheiro noturno
Cérbero, o cachorrinho, o tri-fauce,
Condutor das almas desgarradas,
Vela meu sono. Longe, as águas
Do grande rio escorrem,
Lentamente, inexoravelmente,
Rumo ao país das sombras,
Ao abismo fatal dos condenados.
No escuro, seis pares de olhos,
Cintilantes, vigiam meu espanto,
Enquanto a cauda sinuosa,
Erguendo-se em penacho,
Varre os umbrais do sonho
Que conduz ao outro lado,
À margem esquerda
Do Aqueronte.
Pela manhã, ao despertar,
Escuto o ressonar suave
E vejo a marca da coleira,
Como um tríplice diadema,
Refletida no espelho.
Três cabeças no regaço,
Apaziguadas, adormecem.
(Julho, 2010)
…
O retorno
Hoje volto à minha casa,
À minha ilha destruída,
Reino das sete colinas,
Das sete portas fechadas.
Hoje volto tão estranha,
Tão soberba e abandonada
De mim mesma, dos meus sonhos,
De minha vida passada.
Como voltar sem ter ido,
Sem nunca ter navegado?
Como abrir aquela porta
Que nunca esteve fechada?
Hoje retorno ao começo,
Expedição malograda,
Por terras que não conheço,
E onde fiz teto e morada.
Hoje voltei e o cachorro
Lambeu-me a mão na chegada.
(Outubro, 2012)
…
Poemas do acaso
I
Para além de sofrimentos e de alarmes
Permanecem os ossos sob a terra
Testemunhas da fúria inexorável
Com que o tempo dissolve seus achados,
Enquanto o mundo gira e o pó da tarde
Se dispersa rumo ao lar, à antiga casa
Onde goteja o inútil pesadelo
De reinventar o silêncio no alarido
De pássaros sangrando nas paredes.
II
Na solidão do mar este suplício
De decifrar portulanos no infinito
Azul que a luz encerra na incerteza
De encontrar caminhos do outro lado
Onde um país estranho se reinventa
E pedra sobre pedra constrói seus alicerces,
Suas muralhas, seus castelos, suas pontes,
De solidão e sombra e desespero
De antigos caminhantes de outras terras.
III
Depois de tantos anos passados,
De tantas batalhas ganhas e perdidas,
O esqueleto continua nos armários
E a vida me dói como espinhos no peito
Quando ao redor é sempre a mesma névoa
E tudo, tudo se espalha, como as pétalas
Dos narcisos que flutuam sobre as margens
Do lago em que habitam os celacantos
E onde as garças alongam suas pernas.
IV
Tanto tempo perdido, tanto esperdício
Do tempo que passou e nunca foi vivido.
O último farol na praia ilumina o caminho
Dos náufragos do sonho na última viagem.
Agora já é tarde e nada mais tem sentido
A vida não tem sentido, isto um dia foi dito,
Porque os homens morrem e não são felizes.
E nada justifica o medo de encontrar-se
A receita da morte entre papéis esquecida.
V
Como a luz do sol refletida em poças d’água,
Com muito brilho e nenhuma profundidade,
Meus pensamentos giram sobre a mente
À medida que o dia aos poucos se consome
No esfiapado horizonte se apagando.
E os ruídos da noite se avizinham
Invadindo-me os sonhos com o zumbir
Das abelhas a fabricarem no escuro?
Das colméias o mel do esquecimento.
VI
Diante do mar, na infinitude azul,
A celebrar o tempo dos contrários,
Volto ao perdido, aos dias que se foram,
Ao esquecido país de minha infância
E tropeçando e caindo e inventando
A cada passo um novo precipício,
Talvez não imaginasse, ou talvez não quisesse,
Que outras perdas viriam e muitas vezes
É preciso perder para encontrar-se inteiro.
VII
Na memória de um tempo imaginado
Amarro os alicerces de meu canto.
Cachorra de olhos mansos, a marca
Dos dentes em minha mão, lembrança
Mais antiga. Sensação que perdura
No escuro poço sem fundo das origens,
Ao separar das águas, tormento da passagem,
Paraíso de serpentes ocultas sob as folhas
Tão reais como o terror dos pesadelos.
VIII
Nada recorda o silêncio dos primeiros dias.
Dizem que os peitos de minha mãe
Sangraram em minha boca
E que o peso ancestral dessa fome sem data
Para sempre me acompanha.
E desde então devoro versos sobre a página.
(Abril, 2013)