Longe do ponto final

Leia entrevista com Myriam Fraga
Myriam Fraga, autora de “Marinhas”
01/09/2013

“Diário de bordo perdido num naufrágio, mapa do tesouro de uma ilha sem tesouro.” Outra definição de poesia para Myriam Fraga é “resíduo de experiências vividas por remotas ancestralidades, forma de recordação que é também conhecimento, salvação e purificação e, ainda, memória. Um navegar nos rios do próprio sangue à procura de uma decifração, de um rastro, do olho torto da Esfinge”.

No cinqüentenário da publicação de seu primeiro poema, Myriam Fraga é hoje celebrada com uma obra de valor incontestável: do início de carreira — publicando em revistas e suplementos literários e estreando em livro em 1964, com os poemas de Marinhas — aos prêmios pelos mais de dez títulos publicados em poesia, além de infanto-juvenis e antologias. Baiana de Salvador, nascida em 1937, Myriam soube conciliar sua estrada de poeta e seu trabalho como diretora-executiva da Fundação Casa de Jorge Amado, cargo que assumiu em 1986, logo após ingressar na Academia de Letras da Bahia — tendo o reconhecimento da sua terra, incluindo o aplauso de Jorge Amado.

Nesta entrevista, Myriam Fraga relembra o início de sua carreira, fala sobre a escrita de poesia e o poema como seu objetivo final.

• Como aconteceu sua descoberta da poesia?
A poesia sempre foi importante em minha formação. Cresci em contato permanente com livros, ouvindo meu pai ler poesias. Na escola primária era comum as crianças recitarem poemas nas cerimônias e em datas especiais. Assim, desde muito cedo, me acostumei a declamar Castro Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac. A princípio eram os poetas românticos, alguns parnasianos… Depois veio o choque dos Modernistas, a paixão por Drummond, Bandeira, Jorge de Lima, Cecília… Uma das recordações de minha infância que guardo com muito carinho é a de meu pai lendo o poema Canto de amor a Stalingrado, de Pablo Neruda, com a voz embargada. Seus olhos verdes brilhavam. Eu não compreendia bem o que era Stalingrado, mas sentia que alguma coisa muito especial estava ocorrendo. Havia também Pequenino morto, de Vicente de Carvalho, que me dava sempre um grande aperto no coração. Antes mesmo de ser alfabetizada eu desejava, embora ainda muito confusamente, poder realizar algo semelhante, exprimir através das palavras algo que não sabia bem explicar. Algumas pessoas nascem com esse dom, quase estigma, mas o fato de conviver num ambiente propício sem dúvida facilita o desenvolvimento do que do contrário poderia ficar somente no impulso.

• Sua primeira publicação de poema está fazendo cinqüenta anos. Como a senhora vê este fato?
Escrevi sempre desde muito jovem, publiquei em alguns suplementos e revistas até que, em 1964, lancei Marinhas, pela legendária editora Macunaíma, e foi esse pequeno livro que me abriu as portas do mundo literário, desde então não mais como espectadora, mas como protagonista. Foi a partir dele também que iniciei minha entrada na cena cultural, que fiz amizades importantes e duradouras, que passei a interagir com outros escritores daquela época e firmei também um conceito de expressão que venho seguindo até hoje. Marinhas foi o passo inicial, o ponto de partida para o que seria sempre a realização de um desejo — ou de um destino, quem sabe? A definição de um itinerário, minha afirmação como pessoa, como poeta — que é o que sou, basicamente, embora tenha transitado em outros caminhos, vários atalhos, mas visando sempre o mesmo objetivo.

• Sua atuação frente à Fundação Casa de Jorge Amado há tanto tempo prejudica o exercício de fazer poesia?
Ao me convidar para dirigir a FCJA, Jorge [Amado] me disse palavras que me assustaram um pouco: “Temo que essa tarefa te afaste de tua criação, que não voltes a produzir mais poesia”. Aceitei o desafio e não me arrependi: embora enfrentando várias dificuldades, venho cumprindo a tarefa que me foi confiada. Este ano a Fundação completou 27 anos no dia 2 de julho e, apesar de ter me dedicado integralmente à sua administração, não deixei de fazer poesia. Talvez um pouco menos do que desejava, mas, por outro lado, tenho tido muitas compensações, em termos de reconhecimento, de realizações no plano cultural e principalmente no ganho que significou, para minha vida profissional e pessoal, a amizade e a convivência com Zélia e Jorge Amado.

• Com a dispersão da arte, o poeta assistiu a seu espaço ser diminuído e, assim, se deslocou do diálogo público. O poeta está sem lugar diante do pragmatismo dos tempos atuais?
Todo poeta, ao escrever e publicar seus poemas, passa a exercer uma função pública através de suas palavras e de seu silêncio. Porque, como dizia Sartre, “Calar não é ser mudo, é recusar-se a falar”. Daí porque acho que todo poeta exerce uma função pública, até política. Não necessariamente uma função de convencimento, de proselitismo, mas despertando no outro uma espécie de solidariedade, de compreensão, de irmandade de sentimentos — e aí, mais uma vez, recorro à imagem de uma garrafa lançada ao mar com a mensagem de um náufrago. Porque afinal somos todos náufragos, isolados em uma ilha, esperando que a nossa mensagem possa vencer oceanos de indiferença e seja encontrada um dia, em alguma praia, por alguém que leia e compartilhe sua mensagem. Mesmo que seja o famoso leitor hipócrita de que nos fala Baudelaire. O poeta em nosso tempo sente-se às vezes deslocado por acontecimentos que o ultrapassam. Num mundo comandado pelo materialismo e pelo lucro a qualquer preço, os poetas, como as pessoas mais sensíveis, parecem estar sempre a submergir num mar de indiferença. Porém, se prestarmos atenção ao que se passa ao redor, veremos que são mudanças que ocorrem, transformações que às vezes confundem dando-nos a sensação de que não haveria mais lugar para a poesia numa civilização tão pragmática. O vírus da poesia, porém, é resistente e vem sobrevivendo há milênios, numa mutação permanente em busca de outras formas de expressão. “Não existem editoras para poesia”, dizem os mais pessimistas, “a poesia está em decadência”, “os poetas são seres em extinção”. Mas então, o que vemos? Os poetas publicam cada vez mais em blogs, sites, tantas mídias quanto existam, numa ânsia de afirmar-se, num desejo incontido de dizer, de fazer explodir a palavra, invadindo o universo virtual, eternizando-se nas nuvens, inaugurando um novo processo que ainda não sabemos onde vai desaguar.

• Quando escreve um poema, a senhora procura prever o efeito que os versos podem causar nos leitores ou apenas em si mesma?
No momento em que escrevo não penso no efeito que isto possa causar aos outros, nem mesmo a mim. Apenas obedeço a um desejo imperioso de revelar-me, de tornar real um sentimento que muitas vezes ainda nem se encontra definido. Um impulso tão poderoso que, mesmo se soubesse que jamais seria lido por outra pessoa, faria do mesmo jeito, com a mesma força e com o mesmo esforço de realização que acompanha toda forma de construção de uma forma de arte. O poema é uma construção, produzida com a mesma energia que acompanha as realizações do espírito humano, mas não existem fórmulas ou definições que possam explicar o nascimento de um poema: às vezes vem numa explosão, outras vem de um continuado e exaustivo processo de criação. O que importa é o resultado final, porque um poema não se faz com sentimentos, mas com palavras, como já dizia Mallarmé. É a mesma forma de entusiasmo que fez com que Michelangelo, ao terminar de esculpir a estátua do seu David, tenha ordenado: “Fala!”. Até Deus, ao criar o mundo, admirou-se de sua criação. Evidentemente, nem sempre o esforço resulta em obras-primas, mas o sentimento de realização, de plenitude, é o mesmo.

• Sendo assim, a senhora aguarda que os pensamentos possam ir para o poema ou acredita em um “estado de graça”?
Não existe um padrão, não existem fórmulas. Às vezes levo anos para escrever um poema e às vezes ele vem de súbito, quase de forma inesperada. Alguns são premeditados — pelo tema, pelo assunto que se projeta —, mas há também os que surgem de súbito, como um clarão, do fundo do inconsciente. Como disse, não há fórmulas ou modelos; para mim são momentos que se constroem para além das circunstâncias.

Escritora Miriam Fraga. Foto: Wilson Besnosik

• Joseph Brodsky, no livro Menos que um, escreve: “As verdadeiras biografias dos poetas são como as dos pássaros, quase idênticas — os dados verdadeiros estão na sonoridade peculiar de seu canto. A biografia dos poetas está em suas vogais e sibilantes, em sua métrica, em suas rimas e metáforas. (…) Com os poetas, a escolha das palavras é invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas contam”. Quando o poeta tende a ser personagem de si mesmo arrisca-se a não diferenciar o que é neurose e o que é literatura?
Concordo com a afirmação de que a verdadeira biografia dos poetas é como a dos pássaros, quanto à sonoridade peculiar a cada canto: sonoridade, rimas, métricas e metáforas. Mas quem pode dizer realmente o que se passa em suas trajetórias entre o ninho e o vôo final? A biografia dos poetas é revelada pelas palavras, pelos poemas que escrevem. Afinal, o que é mesmo que significa bio-grafia senão a história de uma vida marcada pelas palavras? Tudo mais são circunstâncias que às vezes se repetem e que podem, ou não, transformar-se em poesia. De certo modo, no fim das contas, todos somos personagens que elegemos para nosso castigo ou nosso deleite. De minha parte, confesso que assumo a neurose muitas vezes quando escrevo, porque somos e não somos, e isto faz parte da esquizofrenia geral. 

• Em se tratando de literatura, não importa o gênero, há sempre uma busca, como se tudo que é escrito fosse uma narrativa policial, segundo Ricardo Piglia. A senhora busca sentir a totalidade, pois algo pode ser revelado, na recordação durante a feitura de cada poema, ou busca apenas um reencontro?
Talvez devêssemos admitir que não só na literatura, mas em toda atividade humana há sempre uma procura, como uma tentativa de explicação de algo indeterminado, de alguma coisa que justificasse ou permitisse a continuidade de um projeto que transcende a nossa compreensão. De minha parte, o que busco ao escrever é fornecer as pistas para que o futuro leitor possa decifrar o enigma que eu, talvez até inconscientemente, como uma forma de auto-preservação, não pude explicar.

• Qual o instante de maior prazer durante o processo de escrita?
Sem dúvida é a culminância, a realização final, que é a mais difícil de alcançar porque a ânsia de perfeição deixa sempre muitas dúvidas sobre a própria criação.

• Há alguma leitura imprescindível por ser capaz de complementar sua vida como escritora?
Toda leitura é imprescindível no sentido de ampliar horizontes, de gerar conhecimentos e principalmente de despertar no leitor o sentimento de que não está sozinho, de que para além das divergências de pensamento, das contradições do discurso, existe um território mágico onde é possível transitar, existe uma fórmula secreta que define o ser humano e de certo modo o compensa em sua solidão.

• Há circunstâncias ideais para a escrita? É necessário “um teto todo seu”, aquele cantinho silencioso que Virginia Woolf tanto apregoou?
Parece contraditório que ao buscar-se a correspondência se deseje a solidão. Mas para construir essa correspondência, a mensagem, a significância, é preciso estar atento aos rumores que é necessário captar para a construção do discurso, do texto significante que vai fazer a diferença, a relação entre o escritor e o mundo. E esta realização criativa exige recolhimento, atenção, às vezes até mesmo certo estado de graça, para alcançar seus objetivos. Mas como está cada vez mais difícil encontrar um cantinho todo seu, o jeito é ir construindo suas ilhas de silêncio para sobreviver.

• Existe uma certeza ou dúvida que guia seu trabalho?
A certeza é que não saberia viver de outra forma: a poesia sempre foi uma constante em minha vida. Mesmo em funções aparentemente dissociadas do fazer poético — e aí está incluído dirigir uma instituição cultural, como a Fundação Casa de Jorge Amado, ou outras atribuições relativas a diversas realizações na área cultural. Mesmo quando escrevo prosa, no fundo, é a poesia que eu procuro, porque é ela que me encanta.

• Em 2008 foram publicados seus poemas no volume Poesia reunida. Desde então, como tem sido sua relação com a poesia? Considera esgotada sua produção poética ou existem planos de publicações futuras?
Veja bem, o título diz “Poesia reunida”, e não “Poesia completa”, porque em nenhum momento desejei colocar o ponto final. Mesmo porque já estava com outros projetos em gestação. Tenho atualmente livros finalizados: Rainha Vashti, que é um poema dramático, e Peregrinos e torta de maçã, que reúne impressões de uma viagem que fiz há muitos anos aos Estados Unidos e só agora resolveram se manifestar. Uma curiosidade: de repente comecei a escrever sonetos, forma que admiro e que tem resistido bravamente às investidas da modernidade, mas que nunca fizeram parte, a não ser muito raramente, das minhas intenções. Sem falar dos poemas que vão surgindo aos poucos, até formarem um corpus digno de revelar-se. Confesso que sou um pouco lenta quando se trata de publicar, primeiro pelas dificuldades inerentes ao gênero, segundo porque sou obsessiva quanto ao resultado final.

LEIA POEMAS DE MYRIAM FRAGA.

Gerana Damulakis

É escritora e crítica literária. Autora do livro de poesia Guardador de mitos e organizadora da Antologia panorâmica do conto baiano —século 20.

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