Louvadinhos

Conto de Valdir Moreira da Silva
01/09/2007

O distritozinho de Louvadinhos era pertencente a Riachão — lugar do ermo e do sem-fim. Ficava num vale formado no meio das serras, a caminho do Vão das Almas. Dizem que, no tempo que não se havia gentes na Terra, o mundo lá ardia e flamava e o chão se derretia em correntezas de brasa. Muito depois, quando o mundo esfriara, surgiu lá uma vilazinha isolada e escondida. Era povoado de gentes que viviam no costume de todo dia, na somesmice de sempre, no se conhecer dos jeitos e malfeitos de cada um, bem aceitos entre si, em nome da boa convivência.

O que eu soube, por uns contares outros, ancestrais de antigos, e que aqui reconto, foi que apareceu por lá, certa feita, um cego maltrapilho, vagamundo andarilho, um esmoleiro tocador de violino, que se pranchou no meio do povoado. Zanzava pelas ruelas, pedindo aqui e acolá, tocando sempre, mesmo que ninguém lhe fizesse ouvido. Não se soube donde veio nem pra aonde ia, tampouco se percebeu quando chegou e, somenos, se partiria um dia. O fato é que se tratava de figura que repugnava o povo de Louvadinhos, acostumados só com suas caras de todo dia, desconsertados com gente estranha. E a figura do cego tocador de violino era mesmo de fazer ranço. “Cresciam-lhe na cara gomos de carne dura, insensível e vermelha”; as roupas eram molambos e a música que ressoava não era de acalmar almas não. Antes, causava uma descompostura, um incômodo no espírito das gentes. Vai se saber de onde vinha tal presença…

A figura do cego desse causo me faz lembrar duma outra de um contar do Adolfo Correia, de saudosa lembrança, que era doutor médico, mas de uma simpleza singela, e grande contador de histórias. Era o causo de um leproso por nome Julião[1], em uma vilazinha também, e que por lá sofreu por demais nas mãos de gente desalmada. Como ao Julião, também a esse cego tocador de violino “batiam-lhe com a porta na cara, sem piedade, cruel e friamente”. Mas era história que seguia por outros tecidos de palavras e costurava outros caminhos. Foi somesmo por parecença das figuras que me veio à relembrança.

Em Louvadinhos, o Cabo Bartolo era o representante da autoridade oficial. Sujeito de distinção no conceito de todos. Juntado no certo e reto com uma mulher novinha, ex-mulher-dama que ele retirara da vida, da casa de profissão de D. Izaurinha, em Riachão, e com ela levava vida de marido e mulher, longe dos julgadores da cidade, resguardados na vilazinha. Bem aceitos por todos no distritozinho, fosse por caridade ou fosse por conveniência com autoridade. Ela já tinha uma criazinha pequena, menina, no quando do ajuntamento dos dois. No então, a menina já estava nas primeiras mocices. Pros olhos de todos, viviam no aconchego e na respeitosidade. Da porta pra fora.

Houve, certa feita, que o cego tocava uma música triste e lamuriosa na porta do Cabo Bartolo, enquanto lá dentro, em sua brabeza de autoridade, o tal descia o lenho no pedovido da menina. A mãe, ao acudir a cria, levava um três-quatro e chorava sentida da humilhação. Não lhes tirei da vida pra me fazerem malfazença, ora!, dizia o Cabo espezinhando. Era coisa de costume isso. A vila é que fingia não ouvir e, cegando-se, vivia-se cada qual com sua paz. Da porta pra fora, ninguém tem nada com isso, ñ’é o que se diz?. Mas o cego pedinte cessou a música e bateu à porta: um adjutório, pelo amor do Santíssimo! A autoridade atendeu com um pass’fora e um cai no mundo, cego dos infernos! O cego guardou o instrumento e seguiu seu caminho. Ao menos a surra rotineira naquele dia fora mais curta que de costume. Foi naquela casa que primeiro surgiram as rachaduras que se espalharam pela vila. E ninguém fez conta disso.

Houve um dia em que o cego tocava seu violino a esmo, enfrente à casa de Seu Durvalino. Esse era homem dos mais respeitados em Louvadinhos. Dono de posses. Fazia caridade à paróquia de Pe. Euzébio, em Riachão. Vivia de emprestar dinheiro a juros pros necessitados de Louvadinhos. Mas não admitia não a alcunha de agiota; comunitarista, nominava-se. Foram muitos os que perderam colheita, e outros mais até seus pedaços de chão pro tal. Lá dentro, a Mariquinha, enviuvada nova e mãe de três pequenos, clamava perdão pra uma dívida que os juros punham na engorda. Enquanto lá fora o cego tocador de violino ressoava uma cantilena castelhana, lá dentro Seu Durvalino proclamava, altivo de sua cadeira: pois se casca d’árvore já não há, que o faminto roa o tronco, é o que digo, ué! Sou homem de negócios. Se me servir na cama, dou de comer pros seus pequenos. É no dá cá, toma lá. Se não, quero o que me é devido com juros, ou lhe tomo a casa, que a lei me protege. O cego pedinte cessou a cantilena quando a viúva saiu chorosa e despetalada porta afora. Um adjutório a um honesto cego músico, pelo amor de Nos’Senhor, meu padinho! Seu Durvalino, que pairava na porta, contrariado com a fuga da viuvinha, bradou: vá pro diabo que te carregue, velhaco! Tá pensando que meu dinheiro é bregue pra passar na mão de uns e uns! Pass’daqui que me arrelia os negócios.

E havia em Louvadinhos um certo doutor que atuava como médico. Como se fosse, por nunca ter sido de fato, mas que assim se dizia e cobrava boa paga dos enfermos. Menos que doutor estudado e menos que curandeiro de plantas. E o cego tocador de violino esteve em sua porta a consultar-se sobre as bolotas vermelhosas da cara e uma ferida gorda de infecção que lhe resplandecia na perna. Por caridade, doutor! Dê uma consulta de esmola a esse pobre cego músico que sofre de doença dolorosa e não-sabida. Se quiser consulta, me dê essas moedas aí, que não sou médico do governo, que se obriga a atender de graça, ora. O cego tocador de violino estendeu as três ou quatro moedas que tinha, mas antes que pudesse explicar sintomas e se queixar das dores, o doutor médico já lhe foi repelindo: nem me entre, que examino daqui mesmo! E, de pronto, determinou: isso é lepra! Ainda, o cego quis saber: E é assim, é? Isso sempre é lepra? E re-ouviu o diagnóstico, agora detalhado: quando não se pode pagar o justo pela consulta, sempre é lepra. E vá caminhando que tenho mais o que fazer! E o músico enfermo foi se indo, manquitolando e de embornal vazio.

Em Louvadinhos, o Deodato era ministro do Senhor, enviado por Pe. Euzébio pra modo de tanger aquele rebanho e, de importância, receber ali as doações à causa de Deus. Havia a promessa de se levantar uma capelinha na vila, mas o dinheiro das doações nunca que chegava pra tanto. Vivia sozinho, numa casa feita de simpleza, sem luxo, como convém aos homens de Deus. As beatas é que lhe serviam: na casa, nas vestimentas, na refeição e também na cama. Naquele dia, bem na hora do almoço, quando a fome aperta até a carne fraca dos homens de Deus, o cego tocador de violino, depois de ressoar em seu instrumento uma Av’Maria bem remendada de floreios, sentindo o cheiro de mesa posta, bateu à porta do ministro. A tigela de comida boa, de mão de mulher, recendia de longe o perfume fumegante. Um naco de rango pra esse seu irmão filho de Deus que a fome aflige, ô bom cristão! O Deodato lançou os olhos sobre a cara em vermelhidão, sentiu o cheiro de ferida aberta e teve nojo do seu semelhante. Aqui não há comida não, cego, que sou homem só e também vivo da bondade alheia. Vá passando! Peça adiante que a hora é boa e alguém haverá de lhe fazer caridade. O pedinte arremeteu aqueles olhos brancos da cegueira ao Deodato, como se revistasse o de dentro da alma. Depois, seguiu tateando seu caminho.

Dias depois, numa tarde fumarenta, repleta de calor, mansidão e caldo, quando o sol já se escorria pra detrás da serra, o cego tocador de violino foi s’mbora. Como quando da chegada, não deram conta de sua partida. À noitinha, podia-se ouvir uma cantilena triste e doída ressoando pelas reentrâncias do caminho de chão batido, onde a torga teimosa abraçava as raízes nas pedras. Punha-se rumoragens nos corações frios de Louvadinhos. Naquela noite sem lua, na escuridão do mundo, quando as almas descansavam e os corpos recontavam seus pecados em sonho, a terra tremeu e as serras rangeram. O chão farinhento rachou e as casas todas, a vila toda, cedeu à força do Misterioso que sempre se manifesta. E tudo se afundou numa areia de enxofre. E não houve quem se salvasse. Enquanto se esfarelavam as casas rachadas, uma música enorme, agora alegre e festiva, se misturava com os estrondos e gritos nos ouvidos de todos. Do que fora Louvadinhos, restou só a garganta de uma terra engolidora. Do povo de lá, não se soube mais.

O que ficou ressonando pelo mundo foi esse causo que ouvi de um certo aleijadinho tocador de gaita de boca, de passagem em Soledade, muito bom de prosa e muito sabedor das coisas do meio do mundo. E lhes reconto só mesmo por gosto e ofício que tenho de contar.

Nota

[1] Do conto O leproso, de Miguel Torga, do qual foram extraídas as citações destacadas.

Valdir Moreira da Silva

Formado em Letras pela PUCPR, onde também fez especialização em literatura. Foi premiado em vários concursos de contos brasileiros e um em Portugal. No Concurso de Contos Miguel Torga obteve o primeiro lugar por Louvadinhos e uma menção honrosa por Uma lírica sacra.

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