Encontro no porão

Conto inédito de B. Kucinski
Ilustração: Fábio Abreu
10/05/2015

— Me disseram que aqui mataram meu pai.

— Quem foi que te disse?

— Minha mãe me disse. Por isso eu vim.

O delegado tinha olhos de sapo. Eu havia entrado na delegacia porque o casarão estava às escuras.

— Quero ver o lugar onde mataram meu pai.

— Quem foi teu pai? Ele perguntou ríspido. Aqui matamos mais de cinquenta.

— Um tal de Jonas.

— É assim que você fala do teu pai? Um tal de Jonas…

— É como minha mãe falava. Eu não cheguei a conhecer meu pai.

Minha mãe não gostava de falar do meu pai. De começo nem o nome Jonas ela falou. Dizia que era Vicente, depois que não, que era Rodriguez, depois que era Carlos, Luiz. Eu me sentia confuso. Como era possível meu pai ter tantos nomes? Será que meu pai era do mal? Então ela disse que não eram nomes, eram codinomes.

— Minha mãe deu um monte de nomes ao meu pai, eu disse ao delegado de olhos de sapo, mas não eram de verdade.

— E Jonas era?

— Sim, ela só falou Jonas quando eu completei dezoito anos.

— Por que você quer ver o lugar onde mataram teu pai?

— Preciso conversar umas coisas com ele. Acho que no lugar onde mataram eu consigo.

— A gente conversa com o pai no cemitério, eu falo como meu sentado na lápide dele.

— É que o meu ficou sem, sumiram com ele, não deu nem pra enterrar.

— É… Eu sei.

— Então, posso ver o lugar onde mataram meu pai?

-— A gente matava na sala do ponto. Jonas, Vicente, Rodrigues, não importa o nome, era sempre na sala do ponto.

— O senhor me mostra?

— É no piso quatro, mas você não pode ir lá.

— Por quê?

— O casarão está trancado.

— O senhor não tem as chaves?

— Eu tinha, perdi quando me afoguei.

O cara de sapo se pôs pensativo. Pensei que não ia mais falar comigo. Súbito ouvimos gente discutindo na outra sala. Então, ele disse, seco:

— À meia noite você entra. Eles destrancam por dentro, saem por aí e deixam aberto.

— Eles quem?

— Os defuntos, ora!

— E o que eles fazem?

— Vêm atazanar! Se arrastam pelo pátio, gritam, gemem. Só entram de volta quando está para amanhecer.

— O senhor conversa com eles?

— Não. Evito.

— O senhor tem medo?

— Eu lá tenho medo?! Nem deles nem de ninguém! Mas não gosto. Fazem careta na janela. Ele aparece ensanguentado e puxa minha perna.

— Ele quem?

— O Jonas. Teu pai.

Aquele era um tempo frio, em que as pessoas se recolhem cedo e as ruas ficam desertas assim que anoitece. Quando retornei, faltavam cinco minutos para a meia-noite. Havia luz na delegacia, mas não entrei. Passei direto pela lateral. Uma névoa branca envolvia o casarão, ainda às escuras. Do alto de um poste uma lâmpada fraca lançava luz mortiça sobre o pátio. Esperei junto ao muro.

Logo uma porta de ferro se abriu e surgiu um rapaz. Devia ter uns dezoito anos. Atrás dele surgiram outros, uns seis ou sete, um pouco mais velhos. Ao me virem, arrastaram-se em minha direção. Não gritavam, nem gemiam. Pareciam curiosos com a minha presença.

Me apresentei:

— Sou Lucas, filho do Jonas.

— Eu sou Alexandre, muito prazer, o rapaz disse, estendendo a mão.

Ao apertá-la notei os dedos em carne viva e sem unhas. Desculpei-me. O rapaz disse não tem importância, não dói mais. Tentava sorrir. Tinha rosto lívido e olhos opacos. Os demais, que se aproximavam, também estavam brancos como porcelana e de olheiras profundas. Alguns apoiavam — se em outros.

— Vim ver o lugar onde mataram meu pai.

— Teu pai foi morto no porão.

— O delegado com olhos de sapo disse que foi na sala do ponto.

— Mentira dele. Ele sempre mente. É pra nos confundir. Na sala do ponto ficava a cadeira do dragão. Eu também fui morto no porão; eu fui o primeiro, teu pai foi o segundo.

— Eu posso ver o porão?

— Claro que pode. Mas por que você quer ver o lugar onde mataram teu pai?

— Preciso falar com meu pai.

— Ele não está aqui, levaram embora.

— Você sabe pra onde?

— Não. Nenhum de nós sabe.

— Minha mãe também não sabia — eu disse.

Quando minha mãe estava à morte, falou pela primeira vez do meu pai. E me implorou que o procurasse assim que ela morresse. Apertei suas mãos em sinal de que faria isso porque ela estava à morte e eu disposto a tudo prometer. Foi então que ela revelou o nome verdadeiro dele. Não deixe de visitá-lo, ela disse. Ele vai gostar de ver você, tão certo como se chamar Jonas.

— Como se chega ao porão? — perguntei ao Alexandre.

— A escada fica do lado esquerdo da entrada.

— E como vou achar o lugar certo onde mataram meu pai?

— Lá embaixo você pergunta ao Pedro. O velho não sai porque quebraram as pernas dele, só depois mataram.

Os primeiros degraus recebiam claridade. Desci o resto tateando. Senti paredes úmidas e descascadas. Dei num corredor estreito e frio, com uma sucessão de portinholas escancaradas. Senti gotas batendo na testa. Espiei pela primeira abertura e vislumbrei um velho enrodilhado de rosto clareado por uma luz suave que parecia vir de dentro dele.

— Procuro o lugar onde mataram meu pai, sou Lucas, filho do Jonas.

— Eu sou Pedro, muito prazer. Teu pai foi morto no fundão. É última cela. Mas ele não está. Levaram embora.

— Eu sei.

A cela que chamavam fundão fedia a creolina. Uma luz fraca e de origem incerta permitia enxergar o piso e as paredes tomadas por sulcos e manchas escuras. Sentei-me numa parte exígua do piso que parecia limpa e abracei os joelhos com as mãos.

Logo senti silêncio profundo.

Meu pai não tardou a aparecer. Vi que era alto e espadaúdo, como sempre o imaginei. Mas estava magro e parecia fora de prumo. Suas roupas tinham nódoas como as das paredes. Não quis mostrar o rosto. Disse que estava muito feio, não era para um filho ver. Eles me mataram a pauladas, explicou.

Conversamos por duas horas. Meu pai contou o que lhe aconteceu. Perguntou da minha vida e me desejou muitas felicidades. Já sabia da morte de minha mãe. Ao me despedir, perguntei onde estava enterrado. Respondeu que não sabia. Não conseguiu ver porque foi levado num saco fechado. Se eu precisasse conversar de novo, era para vir ali. Venha de vez em quando, falou, mesmo sem precisão.

Ao deixar o casarão, não vi Alexandre nem os outros. Entrei na delegacia para perguntar ao olho de sapo o motivo de ter mentido sobre o lugar em que mataram meu pai, mas ele não estava. Estava um outro.

— Aquele delegado com olho de sapo foi embora?

O outro riu. E disse.

— Ele sempre larga antes da meia-noite.

— Por quê?

— Os defuntos mexem com ele.

— Preciso dizer a ele que meu pai não foi morto na sala do ponto, foi morto no porão.

— Que porão rapaz?! O casarão não tem porão!

— Como não tem se eu desci até lá! O Alexandre me indicou a escada E o senhor Pedro confirmou que meu pai foi morto no fundão.

— Eles todos falam nesse porão, mas não tem porão nenhum, nem escada.

— Pode ser que antes tinha.

— Não sei. Não sou daquele tempo.

— Eu conversei com meu pai no porão!!

— É porque você é filho. Os parentes podem. Fico contente de você ter conseguido entrar e conversar com teu pai. Depois que o prédio foi tombado ninguém entra. Vai virar museu.

Era noite alta quando deixei a delegacia. Não havia ônibus. Caminhei pelas ruas desertas repassando tudo que havia acontecido, a mentira do delegado olho de sapo, o rapaz Alexandre de mãos dilaceradas, o velho Pedro de pernas quebradas, o fundão fedendo a creolina, e a explicação do meu pai sobre o motivo de ele nos ter deixado. Senti-me bem por ter finalmente conhecido meu pai e saber que se a minha não gostava de falar de meu pai, não era de vergonha. Me deu uma enorme vontade de saber mais. Da próxima vez vou fazer muitas perguntar e vou pedir para ver seu rosto.

B. Kucinski

Bernardo Kucinski nasceu em São Paulo, em 1937. É jornalista e cientista político. Estreou na ficção com o romance K., finalista dos prêmios Portugal Telecom, São Paulo de Literatura e Machado de Assis. Em seguida, publicou Você vai voltar pra mim e outros contos e o romance policial Alice. É autor também de livros de não ficção como Jornalismo econômico, vencedor do Prêmio Jabuti (1997)

Rascunho