É escrever para crer

O que nos impulsiona na sempre arriscada aventura da criação literária
01/04/2009

Inspiração. De onde vem isso, que tentamos nomear sem saber ao certo o que é?

Nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, dizia que, a despeito de alguns, ele acreditava em sua existência. O que para ele se comprovava através da súbita elevação de sua temperatura corporal. Apoiada na fala de Drummond, penso que nosso corpo é revelador e guardião de muitos e insondáveis sentimentos. Inspirada nisso, pergunto-me, então, o que é que provoca em nós certos efeitos que, ao nos assustarem, nos encorajam a criar. Numa tentativa de resposta, arrisco dizer que é aceitar um convite a protagonizar uma história. Mas a qual história me refiro? Bobagem, a minha ou a sua, é claro! Surpreendo-me com minhas próprias palavras. É preciso, às vezes, achar a vida trivial para que seja possível ver aí o inusitado. Pois é, não é nada fácil conceber a partir de uma inspiração. Espanto-me refletindo sobre o encantamento que nos produzem os artistas, em seu ato criador. Corto a palavra e leio cria e dor. Assustada, pela segunda vez, deixo-me aprender com aquilo que sai do papel. Duplamente. Dito de outra maneira: a palavra reinventada e ela mesma por isso adquirindo um novo sentido. Percebo que a magia reside onde nos deixamos falhar. Ou será a criação algo tão precioso que insistimos em atribuir-lhe o caráter de magia? A fenda é a magia!

Penso, agora, no filme que, em minha infância, deixou-me por um considerável tempo deslumbrada pelo acontecimento que trazia. Chamava-se Os Dez Mandamentos e a cena era Moisés ordenando que o Mar Vermelho se abrisse, para passar com o povo judeu, por ele liderado, e com isso escapar da perseguição dos egípcios. A fenda no mar, efetivada pelas palavras, torna-se objeto do maior milagre bíblico. A mim, chama atenção à suposta grandeza originada a partir daquilo que inesperadamente há. E é dessa desrazão que me nutro para tentar transmitir meu esforço em entender o que faz aqueles que escrevem ceder à inspiração. O que contém um gesto de acolhimento torna-se uma demarcação de desejos cujos sentidos nos sopram descobertas que de tão pessoais nos ensinam que a direção de nossas vidas só pode ser conduzida por nós mesmos. Como resultado inicial desse aprendizado, percebo que o imenso esforço de escrever advém de uma crença em colocar a pergunta como alvo das ações que decidimos realizar e nas quais nos empenhamos em dar substância. Por outro lado, se permitir perguntar e tatear os caminhos. Tais expressões servem para falar de uma ação. Um fazer com isso, pois a questão aqui é referida a um fazer. Parece tão simples, não é mesmo? Não é. E, nesse ponto, o que me salva são as palavras do escritor José Castello: “Escrever é cavar a si mesmo”.

Aliás, a frase me fornece instrumentos que me ajudam a localizar os sítios arqueológicos onde devo concentrar meu trabalho de escavação de forma a torná-lo produtivo. Não é no outro que devo vasculhar, mas em mim mesmo. Essa é a formulação da frase bússola. E minha munição é um nada, e com ele emoldurarei um espaço para, aí sim, cavar e, quem sabe, dos restos de tal suporte arranjar coragem que me sirva de revestimento para aceitar a jornada. Esse nada se constitui matéria de nossos mais intrigantes sonhos e é com ele que inventamos nossa história, e nela inserimos relações e personagens dos mais diversos e espantosos confins e com isso gerar no outro apostas a nosso respeito. Ou seja: dependendo de como vestiremos as fantasias que desfilam em nossos sonhos, assim se esboçará a teia que desarma nossas mais duras certezas.

Acredito que para que o circuito se crie e gire é preciso deixar pousar a inspiração. E, afinal, ela nada mais é do que uma insistência em deixar de lado a tendência em darmos respostas prontas aos que nos indagam, a posarmos de geniais, a fazermos bonito, se pudermos ir direto ao ponto. Deixar de lado tantos atributos indiscutivelmente humanos na melhor das hipóteses é uma direção, não uma conclusão. Digo com isso que se atingirmos em pequena parte a diminuição dos referidos sentimentos, já poderemos ter esbarrado na decantada felicidade e com isso consentido em ceder a abrir a porta e ao receber a inspiração com ela fazer alguma coisa. Senão uma obra reconhecida pelo menos terá rompido com a quase humilhante inércia que nos rodeia e exige de nós a escravidão. Não será reconfortante sermos senhores do nosso verbo? Afinal, como diz, de novo, Castello, em sua coluna semanal no jornal O Globo: “O difícil mesmo é escrever”. É escrever para crer.

Maria Hena Lemgruber

É psicanalista e criadora do projeto Extremos/Círculo de Leitura de ficções radicais, iniciado em 2007, no Rio de Janeiro.

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