De gados e homens

Trecho do romance de Ana Paula Maia
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/10/2013

Capítulo 1
Edgar Wilson está apoiado no batente da porta do escritório do seu patrão, o fazendeiro Milo, que conclui um telefonema aos berros, já que desde cedo aprendeu a berrar, quando solto no pasto, ainda bem menino, disputava com o bezerro a teta da vaca. O escritório não passa de um cômodo espremido ao lado do setor de bucharia do matadouro.

— O senhor queria falar comigo?

— Quero sim, Edgar.

— Pois não — diz Edgar Wilson, que tira o boné da cabeça e segura-o contra o peito respeitosamente ao entrar no escritório.

— Preciso que você vá até a fábrica de hambúrguer fazer uma cobrança.

— Seu Milo, quem vai abater o gado?

Milo coça a cabeça, enterrando os dedos nos fios crespos e embaraçados.

— Meu pessoal tá curto, Edgar. E na sua função só tem o Luiz, mas ele agora tá supervisionando a linha de abate. Deixa eu pensar…

Edgar Wilson permanece em silêncio enquanto aguarda a decisão do patrão. Em sua mente não passa nenhuma idéia, pois não é seu costume buscar soluções, a não ser que seja solicitado.

— Hoje não tem nenhuma carga grande pra abater — comenta Milo, pensativo.

Também não é costume de Edgar Wilson deixar de cumprir o que pedem. Milo é um homem trabalhador, que passa quatorze horas por dia envolvido nas atividades do matadouro. É um patrão justo aos olhos de Edgar.

— O Zeca já abateu algumas vezes, né? — pergunta Milo.

— É, abateu. Mas ele deixa o bicho acordado ainda. O boi sofre muito, Seu Milo. O Zeca não tem uma pegada boa não.

Milo olha a planilha de funcionários e suas respectivas funções. Pensa um pouco.

— O Zeca tá na triparia agora, mas só tenho ele mesmo — resmunga para si.

— Senhor, ele deixa o boi acordado.

— Você já disse isso, Edgar. O que eu posso fazer? Na degola ele vai morrer mesmo — responde Milo, alterado.

Edgar permanece imperturbável, com o olhar cinzento sobre o patrão. O telefone toca. Milo atende e pede um instante.

— Edgar, aqui está a ordem de cobrança. O endereço tá escrito aí. Pega as chaves da caminhonete com o Tonho e manda o Zeca vir até aqui falar comigo.

Edgar Wilson acena com a cabeça e apanha a ordem de cobrança. Milo volta ao telefone. Edgar hesita pouco antes de sair, mas atravessa a porta do escritório e fecha-a ao passar. Segue por um corredor fétido e mal iluminado e ao virar à direita entra no boxe de atordoamento, local em que trabalha muitas horas por dia. A fila de bois e vacas é sempre longa. Um funcionário abre a portinhola e o boi que já passou pela inspeção e pelo banho entra devagar, desconfiado, olhando ao redor. Edgar apanha a marreta. O boi caminha até bem perto dele. Edgar olha nos olhos do animal e acaricia a sua fronte. O boi bate uma das patas, abana o rabo e bufa. Edgar cicia e o animal abranda seus movimentos. Há algo nesse cicio que deixa o gado sonolento, intimamente ligado a Edgar Wilson, e dessa forma estabelecem confiança mútua. Com o polegar lambuzado de cal, faz o sinal da cruz entre os olhos do ruminante e se afasta dois passos para trás. É o seu ritual como atordoador. Suspende a marreta e acerta a fronte com precisão, provocando um desmaio causado por uma hemorragia cerebral. O boi caído no chão sofre de breves espasmos até se aquietar. Não haverá sofrimento, ele acredita. Agora o bicho descansa sereno, inconsciente, enquanto é levado para a etapa seguinte por outro funcionário, que o suspenderá de cabeça para baixo e o degolará.

Edgar sinaliza para que o funcionário não deixe o boi seguinte entrar no boxe. Vai até o setor de triparia e chama por Zeca, que imediatamente acata sua ordem. É com o coração pesaroso que Edgar vê, minutos depois, o rapaz, sorridente, seguir até o boxe de atordoamento ao sair da sala de Milo. Zeca é um garoto de dezoito anos, perturbado. Gosta de ver o animal sofrer. Gosta de matar. Se prepara para a tarefa quando Edgar entra no boxe e o adverte:

— Zeca, coloca o boi pra dormir, entendeu? Não deixa o bicho sofrer.

Zeca apanha a marreta, faz sinal para que o funcionário deixe o boi entrar. Quando o animal fica frente a frente com ele, a marretada propositalmente não é certeira, e o boi, gemendo, caído no chão, se debate em espasmos agonizantes. Zeca suspende a marreta e arrebenta a cabeça do animal com duas pancadas seguidas, fazendo o sangue respingar em seu rosto.

— Assim, Edgar? Ele tá dormindo agora, não tá? — Zeca pisca diversas vezes os olhos com força e puxa a saliva entre os dentes, ruidosamente.

Edgar Wilson não responde à afronta de Zeca. Vira de costas e caminha até o banheiro, onde troca de roupa. Veste uma calça jeans e uma camisa quadriculada de botões. Após apanhar as chaves com Tonho, segue até a caminhonete e lamenta o rádio quebrado do carro.

Desde que abandonou o trabalho nas minas de carvão, tudo o que conseguiu foi trabalhar com gado, mas quer mesmo é lidar com porcos. Sempre apreciou os suínos. Espera em breve conseguir uma vaga num grande criadouro de porcos que fica a poucos quilômetros de onde trabalha.

Seu golpe preciso é um talento raro que carrega em si uma ciência oculta em lidar com os ruminantes. Se a pancada na fronte for muito forte, o animal morre e a carne endurece. Se o animal sentir medo, o nível de pH no sangue é elevado, o que deixa a carne com um gosto ruim. Alguns abatedores não se importam. O que Edgar Wilson faz é encomendar a alma de cada animal que abate e fazê-lo dormir antes de ser degolado. Não sente orgulho do trabalho que executa, mas se alguém deve fazê-lo que seja ele, que tem piedade dos irracionais.

Depois de esquartejados, são enviados para duas fábricas de hambúrguer e distribuídos para alguns frigoríficos, que mandam caminhões buscar os lotes de carne. Edgar Wilson nunca comeu um hambúrguer, mas sabe que a carne é moída, prensada e achatada em formato de disco. Depois de frita, é colocada entre duas fatias de pão redondo recheado com folhas de alface, tomate e molho.

O preço de um hambúrguer equivale a dez vacas abatidas por Edgar, já que recebe centavos por cada animal que derruba. Por dia precisa matar mais de cem vacas e bois e trabalha seis dias na semana, folgando apenas no domingo. A produção no matadouro está se intensificando e será necessário contratar mais um atordoador.

Edgar Wilson tem que dirigir por quase uma hora por uma estrada que margeia o rio. É nesse rio que todos os matadouros da região lançam as toneladas de litros de sangue e resíduos de vísceras de gado. O rio corre para o mar, assim como o sangue das bestas do campo.

À beira da estrada, Erasmo Wagner está apoiado numa bicicleta que tem o pneu dianteiro arriado. Vez ou outra faz sinal com o dedo polegar, mas ainda não conseguiu nenhuma carona. A maioria dos veículos que trafegam pela estrada é de caminhões pesados e algumas carroças puxadas por cavalo. Na maior parte do tempo é uma estrada deserta, de curvas sinuosas e asfalto irregular.

Edgar Wilson pára a caminhonete no acostamento. Erasmo Wagner coloca a bicicleta na caçamba do veículo, abre a porta do carona e senta-se ao lado de Edgar, visivelmente agradecido.

— Obrigado por parar. O pneu furou.

— Tá indo pra onde?

— Trabalho na construção da nova fábrica de hambúrguer.

Edgar Wilson estica a mão direita em cumprimento. O homem responde ao gesto:

— Erasmo Wagner. Às suas ordens.

— Eu trabalho lá no matadouro do seu Milo — diz Edgar Wilson.

— Sei onde é. Você faz o quê lá?

— Sou o atordoador.

Erasmo Wagner arria a outra metade da janela e apóia o braço para fora. Mais alguns metros, embalado pelo vento morno e ruidoso, ele se lamenta.

— Muita gente já morreu aqui.

A seqüência de pequenas cruzes à beira da estrada é interminável. A morte tange todo o perímetro percorrido, tanto na estrada quanto no rio contaminado que corta a região.

Edgar Wilson acende um cigarro e oferece outro a Erasmo Wagner. As nuvens ajuntam-se encobrindo o céu, e mesmo com a nebulosidade não há indício de chuva.

— Quando a fábrica fica pronta? — pergunta Edgar Wilson.

— Se a obra não atrasar mais, acho que em uns dois ou três meses.

— Essa vai ser bem maior que a outra. Você trabalhou na construção da outra?

— Não. Naquela época eu tava cumprindo pena. Fui solto faz um ano e pouco.

— Ficou muito tempo preso?

— Mais do que eu pretendia. Mas acertei minha dívida e estou livre pra morrer até mesmo nesta estrada. O que é bem melhor do que morrer na cadeia.

— Morrer em liberdade é morrer com sorte.

Na estrada há trechos em aclive e a caminhonete perde força, exigindo uma troca de marcha num dificultoso engate do câmbio. Do lado esquerdo da pista um pasto pequeno acomoda algumas cabeças de gado. Vacas ruminam e descansam entre montanhosos e exuberantes cupinzeiros edificados sobre a grama em meio ao pasto.

— É bem provável que a criação de gado por esta região aumente — comenta Erasmo Wagner.

— É, com mais uma fábrica de hambúrguer, vão precisar de mais carne. O trabalho lá no matadouro vai aumentar também.

— Quantas cabeças você abate por dia?

— Depende do lote. Às vezes sessenta, noventa. Já cheguei a abater cento e setenta cabeças num dia. No fim da noite eu não sentia mais o meu braço.

— É… a gente sente o cheiro da morte em todo lugar.

Edgar Wilson concorda com um aceno da cabeça.

— Gosta do seu trabalho lá no matadouro?

— Gosto. Às vezes não quero lidar tanto assim com sangue, com a morte, mas… é o que eu faço.

Erasmo Wagner traga longamente o cigarro e expele a fumaça pela janela. O vento morno e cortante a faz dissipar, desmanchando seus rastros.

— Alguém precisa fazer o trabalho sujo. O trabalho sujo dos outros. Ninguém quer fazer esse tipo de coisa. Pra isso Deus coloca no mundo tipos que nem eu e você.

Edgar Wilson permanece olhando para a frente o mais distante que seus olhos enxergam, para a linha fantasma que divide a estrada e o céu. Apenas uma linha, que jamais poderá ser alcançada.

— O pior na hora de abater o gado é olhar para os olhos dele.

— E o que tem neles?

— Não sei. Não dá pra ver nada no fundo do olho do boi — Edgar Wilson faz uma pausa inquietante. — Eu fico olhando, tentando enxergar alguma coisa, mas não dá pra ver nada.

Edgar balança a cabeça e dá de ombros. Joga a ponta do cigarro pela janela e expele o resto da fumaça que tem nos pulmões.

— Por que você foi preso?

— Matei um velho desgraçado. Foi um desgraçado a vida toda.

Edgar Wilson consterna-se por instantes. O silêncio recobre suas cabeças. São confissões de sangue e morte para os que já estão condenados. Há outros deles na beira da mesma estrada, sobre o solo e debaixo dele. O murmúrio das lamentações dos que jamais regressaram está ali, ecoando nas pedras, porque, quando não há quem rogue, as pedras clamam.

Pelo resto da viagem ficam em silêncio. Erasmo Wagner agradece pela segunda vez a carona e, empurrando a bicicleta com pneu furado, caminha em direção à fábrica.

Enquanto segue viagem, Edgar Wilson mantém seu pensamento fixo na escuridão dos olhos dos ruminantes, esforçando-se para desenhar um leve traço que o intente a desvendá-los. Nem todo o esforço da sua imaginação é capaz de lançar luz nas trevas; nem naquelas produzidas por olhos insondáveis, nem na própria treva que encobre a sua maldade.

Ana Paula Maia

Nasceu em 1977, em Nova Iguaçu (RJ). É autora dos romances O habitante das falhas subterrâneas (2003), A guerra dos bastardos (2007), Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009) e Carvão animal (2011). De gados e de homens será lançado em breve pela Record.

Rascunho