Coleção de línguas caladas

Conto inédito em que "as vozes do meu sono sopravam no silêncio tudo o que eu precisava dizer"
Ilustração: Mariana Tavares
22/09/2020

Começou quando eu tinha uns oito anos. Analisava um lagarto no quintal da minha avó, e seu rabo se soltou do corpo. Autônomo, chicoteava o chão. Impressionou-me o balé mal-assombrado, e quis saber se suas outras partes também bailariam independentes. Pisei de leve sobre o corpo-sem-cauda e cortei a língua fora com a faca de picar cebolas. Separada do corpo, ela não se moveu.

Guardei a língua na caixa de música que herdei com a morte da minha mãe. Pousada sob a bailarina que rodopiava indiferente, a língua ficou escondida como um bem precioso.

Na escola, era exímia aluna das aulas de biologia. Dedicava os recreios ao laboratório ou à biblioteca. Comia o lanche sobre entranhas de sapos. Buscava entender a anatomia e suas correlações com a língua. A professora antecipava, com assustadora precisão, meu futuro de êxito no campo científico.

O interesse por línguas aumentava, conforme me desenvolvia. Estendia o laboratório ao quintal da minha avó. Analisava com detalhes o gato vizinho: observava-o beber água; oferecia a mão para ele lamber; fechava os olhos para sentir melhor a língua que me arranhava; cheguei a ensaiar segurá-la, mas o bichano reagiu.

À noite, acalmava-me pensar nas melhores maneiras de arrancar língua de gato. Bicho difícil o gato, com aquelas unhas afiadas. Mirabolei uma estratégia.

Na sua próxima visita (mal sabia o que o esperava), prendi o corpinho frágil entre as minhas pernas e ajoelhei em sua cabeça, sem colocar todo o meu peso para não esmagar o crânio. O bicho se debatia derrotado. Com um alicate, estiquei a língua ao limite. Peguei a tesoura de jardim e cortei, arrancando do gato um grunhido estridente.

Fui me aperfeiçoando no domínio das línguas, no controle dos corpos a serem amputados, na higiene do procedimento. Preocupei-me em expandir meu perímetro de ação, para não gerar suspeitas. Afeiçoei-me ao sangue, à riqueza de texturas e formas, às surpreendentes similaridades com alguns tipos de embutidos.

Todos os dias, sentava-me diante da caixa de música e admirava minha coleção de línguas caladas. Embalada pela Für Elise e pelo cheiro de podre, acompanhava, como mãe zelosa, a lenta decomposição de cada uma delas.

Sonhava com murmúrios sincronizados e sombrios, que me acordavam em sobressalto. Diziam coisas tão graves e profundas, que eu não podia recordar ao amanhecer.

As vozes também me despertavam para a urgência de manter a minha coleção. O ímpeto de preservar as línguas ameaçadas pelo apodrecimento fez-me aproximar da taxidermia. Estudava técnicas e procedimentos de preservação da pele animal. Quando já não restavam livros que não tivesse de cor, minha avó comprava-me mais. Encher-me de livros era o seu jeito de me dirigir a palavra. Com os grandes nomes da ciência, supria-me de pai e mãe.

Foi já adulta que tive chance de tornar a coleção realmente valiosa, quando da morte de minha avó. Tarefa simples cortar língua de defunto, enquanto preparava o corpo para o velório — quanta experiência acumulada até ali. Gente era o bicho que me faltava.

O defunto, ora minha avó, cheirava à morte fresca. Com todo o meu aparato, mãos em luva cirúrgica, afastei os parcos lábios. Senti meus dedos afundarem de leve na língua ainda macia. Pensei nas palavras duras, no tom cortante de sua voz. Com o bisturi, fui penetrando aos poucos, em movimentos delicados, quase como último afago. Livrava-a do peso de ter como dizer.

Passei o enterro com a língua no bolso, depois de estancar o resto de sangue em folhas de papel toalha. Ao longo do velório, recorria a ela nos auges da tristeza — sua textura me acalmava. No salão quase vazio, busquei na carne consolo humano.

Apertei-a com mais força quando fui abordada por um homem que se dizia meu pai. Em um reconhecimento remoto, atualizei com marcas e rugas as fotos espalhadas pela casa da minha avó.

O homem falava comigo, e minha mão ia ficando cada vez mais aflita no bolso. Procurei me acalmar, passando os dedos de leve pelas rachaduras cavadas na língua. Minha avó, tão silenciada, morreu com a boca seca.

Vi nos olhos daquele homem, espelhados de emoção, todas as vidas que eu podia ter tido e não tive; passados que não foram meus. Afinal, ele disse:

— Lembra de mim?

Senti o vazio descer a garganta. Preservava línguas, mas não aquela, plácida na minha boca. As vozes do meu sono sopravam no silêncio tudo o que eu precisava dizer. Mas não conseguia dar som às palavras: calada, juntei-me aos bichos.

Vanessa Brulon

Nasceu em Niterói (RJ), em 1985. Mestre e doutora em administração pública, é professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Rascunho