Chegada ao local dos destroços

Conto inédito de Marco Severo
Ilustração: Kleverson Mariano
02/05/2017

Abro a caixa onde guardo os cartões-postais que recebo de você, mãe, e deposito nela mais um, que chegou ontem. Vejo pelo carimbo junto ao selo, a data: 1979. Àquela altura, tendo nascido sob o signo de sagitário, eu estava no mundo há quase nove anos, idade pouca para entender o momento em que você saiu de casa e abandonou a mim e ao meu pai, um ano antes.

Há alguns meses recebi outro cartão, nele você dizia estar em alguma catarata por Santa Catarina, e o selo dizia que era 1995. Estranho como você consegue ir e voltar no tempo sem dificuldade alguma, como uma espécie de divindade imortal. Na mensagem, direcionada a mim — você nunca dedicou uma só linha ao meu pai — você dizia que eu já estaria me preparando para entrar numa faculdade, e que, tal como mergulhar em águas ágil-claras e senti-la passar por todo o corpo, de cima a baixo, eu estava prestes a passar por um período de grande transformação. Em seguida, assinava: “Sua inesquecível mãe”. De fato eu adentrava, naquele instante mencionado pela carta, na universidade, embora aquela lembrança já estivesse perdida no tempo. Mas sim, mãe, você se tornou inesquecível para mim, pela simples razão de que você não me deixa esquecê-la; o que aliás parece ser esse também um sintoma inerente ao meu pai, que nunca quis buscar os meios possíveis de se divorciar legalmente de uma mulher que sumiu de qualquer mapa. Seria injusto com você, minha filha. Ela pode voltar.

Eu guardava comigo no travesseiro essas três palavras todas as noites, na hora de me deitar. Ela pode voltar, meu pai dizia, e eu repetia para Deus, como numa prece, dando ênfase na palavra pode não como uma possibilidade, mas como uma permissão: sim, mamãe, você pode voltar. Nenhum de nós dois jamais quis você longe. Venha. A gente conserta o que deu errado. Entre pela porta que tirou você de nós, o caminho de ida pode sim ser o caminho de volta. Retorne, mamãe.

Mas você nunca veio.

Chegou um cartão-postal da minha mãe, eu anuncio para dentro de casa. De onde ele está, meu marido solta um grunhido. Pelo menos você fica sabendo que ela ainda está viva.

Pois é.

Na foto impressa no cartão, que dessa vez data de 2008, vejo uma grande praça rodeada por muita natureza resplandecente. É tanto verde junto que ele parece abraçar a praça. Por um instante imagino que você está lá também, que se eu for àquela praça em Porto Alegre, conseguirei encontrá-la, enfim. Sempre brinquei desse joguinho de achar que, de alguma maneira, você se esconde nas fotos dos cartões que me envia. Na mensagem desse cartão, levemente borrada nas laterais porque você usou uma caneta cuja tinta não secava rápido e sua mão passava por ela, manchando os espaços ao redor, a mensagem diz, É tempo de ir para os espaços públicos, respirar ar puro, cuidar de si. A vida é bela, filha. E em seguida, a indefectível assinatura: “Sua inesquecível mãe”.

Que besteirada ela escreveu dessa vez?, meu marido pergunta, falando da sala. Eu não respondo.

Ao invés disso, leio e releio suas poucas palavras, medindo a extensão da mensagem, comparando com a de outros cartões que recebi. Ano passado, por ocasião do meu aniversário, recebi um postal dizendo que havia um presente para mim na caixa postal de uma agência dos Correios cujo endereço você indicava, onde eu também deveria retirar a chave. Fui correndo para lá, sem pensar nem por um instante que me atrasaria para o trabalho e que Helena dependia de mim para ir à escola e, se não fosse, não tinha com quem ficar. Olhei para o Luiz e disse a ele, Fique com a menina, e saí de casa sem esperar resposta. Quando cheguei lá, fui informada de que aquela agência não trabalhava com caixa-postal. Não seria a outra, a duas ruas dali? Não, moço, o endereço que recebi é dessa aqui mesmo. Depois de agradecer e ir embora, fiquei na calçada um tempo, olhando ao redor. Na minha imaginação, mãe, pensei que o presente poderia ser justamente esse: chegar lá e descobrir que o presente não estava na agência, mas fora dela, me esperando na rua, quase quarenta anos depois. Olhei no meu entorno, acenei com a mão para o caso de você também estar me procurando e mesmo correndo o risco de parecer uma louca, mas ninguém se aproximou de mim. Ninguém sequer olhou para mim.

Não me dei por derrotada e fui à outra agência, de qualquer maneira. O número da caixa-postal indicado pelo cartão que você me enviou, porém, não existe lá. Tentei compreender aquilo como um recado: eu também não existo, a não ser quando quero; desista de me procurar e aceite o que eu tenho para dar exatamente dessa maneira. Com esse pensamento, entrei no carro, que tinha deixado estacionado na rua lateral, liguei o ar-condicionado e chorei até o vento gelado secar o que eu tinha no estoque de lágrimas. Passei a primeira marcha no carro e fui para casa. Aquele não era mais dia de trabalhar.

Ficou guardado no pouco que eu entendo como compreensão que sim, você consegue me encontrar. Afinal, você sempre me achou. Quando eu era uma criança, os cartões chegavam a casa onde eu morava com o pai, claro. Depois, quando me mudei para a república universitária, começaram a chegar para mim também lá. Quando fui estudar por dois anos em Cuba, os postais também encontraram o caminho do meu apartamento e hoje, com marido e uma filha, eles não cessam. Compreendi o seu recado e hoje não te busco mais: a busca foi, todo tempo, sua, e é assim que deve permanecer sendo. Nos lugares mais longínquos, lá você estava também. E eu sempre lhe recebi. Acho que, do seu próprio jeito, você sempre se manteve por perto.

De muitas maneiras se pode medir uma perda. Pela importância de quem se foi, na sua vida. Pelas referências que deixou. Os impactos que causava quando dialogavam. Pelo que se compartilhou juntos. Pelo quanto se provocavam em nome da consolidação dos laços afetivos. Pelo tempo e a intensidade do que se viveu. É por isso que perder um colega de escola, um primo ou um irmão geralmente abrem vazios completamente diferentes dentro da gente.

Quando papai morreu, há quatro anos, há pelo menos dois eu já sentia o espaço de sua ausência. Ele me chamava na casa dele, à noite, e ia me contar do tempo em que vocês namoravam, dos bailes para os quais iam, de como era voltar para casa à noite, de mãos dadas, num tempo em que se caminhava juntos, sonhando. Eu não fazia outra coisa senão ouvir. Entendi que aquele chamado era mais do que a necessidade de rememorar: era a forma de me deixar a sua herança. Os quase vinte anos que vocês viveram juntos. Ouvi-lo era a maneira que ele encontrou para que aqueles relatos não se perdessem. Eu os guardava comigo, como ainda guardo, consciente de que não sairão de mim. Carrego por dentro o sentimento do meu pai por você, mãe, como quem leva consigo um segredo. Foi através das palavras dele que eu pude compreender não sua atitude, nunca ela — mas a mulher que se retirou de nós. Como quem abre clareiras em busca de um avião caído no meio da mata, vou perscrutando meus próprios afluentes, na direção em que penso que você está.

Em muitas noites eu acordo de um sonho ruim, sento ereta na cama, arfando. E meu marido perguntando, O que foi, o que foi?, e tudo o que eu sei ou consigo dizer é que sonhei que eu ia aos lugares que você menciona nos seus cartões, a lhe procurar, quando então me chega a notícia de que na verdade você está morta há muitos anos. Ele acaricia os meus cabelos e pede para que eu volte a dormir, mas eu nunca consigo. Dormir se torna uma inutilidade da qual só me dou conta da importância quando estou lívida no escritório na manhã seguinte, sem ânimo para desempenhar qualquer função a não ser a de buscar café.

Há momentos em que eu tomo a firme decisão de que sim, você está morta. Peço a Deus que você de fato esteja, mas é só chegar outro cartão-postal que tudo volta de onde havíamos parado. Eu toco o cartão, cheiro, leio diversas vezes suas palavras, mesmo quando meu marido me pede para jogar fora sem ler, mesmo quando elas me levam às lágrimas ou a um sentimento de ódio, repulsa e orfandade; quando em nada me importa que você esteja viva e bem, ou enterrada a milhares de quilômetros de mim. Eu sempre lhe procurei no mapa do país, me perguntando como seria o lugar de onde você me enviava aqueles postais, se você estava feliz, se lá era quente ou frio, se você tinha boas companhias e se sentia acolhida o suficiente. Perceba, mamãe, eu também encontrei minha própria maneira de me manter por perto. Antes de depositar na caixa que eu carrego desde criança, a caixa em que vieram embaladas as sapatilhas que você me deu quando entrei no balé, é precisamente o que eu faço. Leio e releio aquilo que você dedicou a mim até aqui: 87 cartões-postais, seiscentas e tantas linhas: eis a nossa vida juntas.

É a partir desse conhecimento que eu me deparo, finalmente, com o que restou. Como se depois de uma incansável busca eu encontrasse o que sobrou de um naufrágio, dos escombros de um prédio que desabou, ou daquele avião caído na mata. O choque da descoberta e a incompreensão da real proporção daquilo com que me deparo será para sempre maior do que eu. Nunca teremos respostas suficientes. Eu nunca saberei de fato quem é a mulher por dentro da minha mãe, como também sei que nunca dormirei completamente em paz por causa disso. Mais do que demônios, há também fantasmas que habitam em mim, mãe. E não os refuto mais. Aprendi a viver com eles.

Por que você está com essa cara, mamãe?, minha filha sempre me pergunta, ao me ver como que inexistente no tempo. Eu devia estar aérea, com o pensamento longe, respondo. Mas eu estou de volta, minha filha. Eu estou aqui, sem distância alguma a nos separar. Eu estou de volta.

Sim, mãe. Eu sempre estou de volta.

Marco Severo

É professor formado em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Tem contos publicados no Brasil e no exterior. Colabora mensalmente com diversos sites voltados para literatura. Publicou, em 2015, Os escritores que eu matei (crônicas) e, em 2016, Todo naufrágio é também um lugar de chegada (contos).

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