Adivinhe o que aconteceu conosco

Conto de Sergio Vilas-Boas
Ilustração: Marco Jacobsen
01/01/2011

1. partidas
Sei que liam trechos de livros em voz alta um para o outro e discutiam com entusiasmo os filmes; sei que desligavam os celulares e evitavam almejar qualquer coisa que o nosso próprio bairro não propiciasse. Naqueles finais de semana o contato deles com o resto do mundo se restringia ao download de músicas e seriados dos anos oitenta. Mas havia também “luxúrias imperiais”, como dizia Diogo: “Uma comunhão de ascendência universal cujas essências remontavam às cavernas”.

Nascido o sol, Diogo girava o corpo nu noventa graus para laçar a nudez de Emília; atravessava a coxa sobre as coxas dela; apoiava a cabeça no ombro dela sentindo o frescor de sua “pele aveludada (ah, aqueles hidratantes e xampus frutados da Victoria’s Secret)”; e envolvia o seio direito dela na palma de sua mão esquerda; “sussurrava ‘me ama?’ no ouvido dela quantas vezes fossem necessárias até aflorar aquele ‘sim’ impreciso”.

Numa manhã, porém, o script mudou. O corpo dele se chocou contra a desocupação. Restaram farelos de pão, dezenas de pratos e copos sujos na pia, garrafas de vinho vazias, objetos deslocados por zonas improváveis, bolas de papel higiênico ressecadas, uma televisão fora do ar, um laptop escuro e os dois gatos de Diogo — Cid e Cléo — dormindo ao pé da cama.

Agora o meu amigo tem o mesmo sonho toda noite: vê Emília se erguendo da cama dele, tomando um banho, aplicando um perfume caro, vestindo (talvez) a mesma roupa que usara naquela última noite e saindo sem cerimônias. Mas pelo menos nesse tal sonho-pesadelo ela se lembra de escrever um e-mail ao Diogo no qual expõe seus motivos e ainda fornece um endereço. “Mesmo assim, tudo termina de modo incompreensível, Isis”, ele me disse.

“A ‘mocinha’ não deixou pistas, é? Esperava o quê?”, o pai dele perguntou ironicamente. Ah, a família do meu amigo: “Vinte e dois confrades ao todo, de classe super-hiper-média, que atraem, absorvem e reciclam a mediocridade”. Fingem se importar com o futuro do planeta, mas são uns consumistas predatórios. Sanguíneos, vivem em função uns dos outros. Vedados, não cultivam amizades. “Bastam-se pelos quatro cantos com suas comidas típicas e suas preocupações com a vida dos outros.”

Diogo faz aniversário na véspera do Natal. As festas dele (quando há) se confundem com as de um sujeito falecido há dois mil anos. “Ó, não, desta vez os líderes do clã vão transformar meu aniversário de trinta anos numa deprimente terapia de grupo.” O case a ser discutido pelos gurus é o de um cara que abandonou a carreira de médico pelo meio, que perdeu o emprego de redator num portal de fofocas sobre famosos, que foi abandonado pela namorada.

Se “comunicação de dispensa sem consideração” (o portal de fofocas o demitiu por e-mail, em duas linhas) é desconcertante, imaginem uma “dispensa sem comunicação”, como fez Emília. Descobri o essencial: ela já tinha uma passagem internacional marcada; e as pessoas do círculo íntimo dela, às quais Diogo não havia sido apresentado (isso era parte do pacto de clandestinidade do relacionamento), conheciam os planos.

Um Aniversário-Natal em família naquele momento de abandono seria uma péssima idéia, não? Sr. Jonas, o “pai fascista”, repetiria pela enésima vez por que prefere um caucasiano comprovadamente corrupto a votar em uma mulher negra com um projeto reformista. “Não voto a favor de pessoas, nem de projetos, nem de idéias. Meu voto é sempre contra alguém ou alguma coisa.” A mãe apostólica continuaria esperando um milagre que revertesse sua realidade adiposa; e a irmã, ao contrário, insistiria em imitar a magreza pálida das tops. Sério? Sério.

Diogo por fim reconheceu que, além da fase difícil e dos constrangimentos que a família lhe impunha, havia duas fortes razões para ir ao encontro “do novo e do verdadeiro”: 1) Tinha uma idéia racional de onde Emília estava; 2) Sua desmemoriada mãe esquecera o cartão de banco em cima do aparador, juntamente com as novas senhas anotadas num papel à parte.

Na volta do banco (havia sacado uma boa grana, “que minha mãe nem vai dar falta”), ele passou no meu prédio. Queria conversar. Mencionou uma dezena de coisas que poderia dizer a Emília se a encontrasse mesmo em Londres. Por fim, faltavam os gatos. Cléo estava obesa. Só podia comer ração light. Cid, por sua vez, recuperava-se de uma anemia. A veterinária havia sido categórica: Cid não pode comer daquela ração especial light de jeito nenhum!

Alguém teria de ir ao ap do Diogo duas vezes por dia, de manhã e à noite, para reabastecer as tigelas e observar os bichanos comerem. Gatos, eles são adoráveis, mas estão se lixando para idéias humanas. Quem faria isso? “Isis, a essa altura do campeonato você é a única pessoa que admiro sem ressalvas.” Fiquei lisonjeada, claro, apesar do pessimismo de fundo. Dei-lhe um abraço com aquele meu afeto exagerado e desejei-lhe sorte nos mistérios da aventura.

2. chegadas
Isis e sua irmã, Alma, moram em cidades diferentes. Falam-se pelo Skype (com câmera) freqüentemente. Sr. Abel, o pai delas, apareceu na casa de Alma com uma falta de ar implacável. “Desta vez não é chantagem”, disse Alma. Apesar do rush de dezembro, Alma conseguiu uma passagem promocional para as seis da manhã. Preparou a mala como se estivesse indo para longe.

Na cama, tarde da noite, recebeu a visita de antigos fantasmas: a “meia-idade”, os frágeis relacionamentos com homens comprometidos, as carências e angústias da irmã, a situação agora crônica do pai, os embates estressantes entre a associação do bairro (que ela presidia) e os donos daqueles malditos e barulhentos bares, o medo que sentia de sentir culpa por culpar-se tanto.

Na véspera da minha viagem para Londres, Isis me contou que meses antes ela havia ido à fazenda de recuperação de dependentes onde o pai dela estava internado. A fazenda, filantrópica, era bem distante. “Ele se aproximou calmamente. Estava barbeado e magro. A gente se abraçou meio que fora de prumo. A tosse seca e constante dele me afligiu, e a primeira coisa que fez foi implorar que eu o levasse pra casa. Não, pai, não. Mas vou te levar num posto de saúde, então, ok? Ok.”

Pegaram uma estrada horrível, meia hora de muita poeira e calor, até um distrito próximo, onde turistas aproveitavam o feriado prolongado nas montanhas. A médica estagiária tinha ido almoçar. Isis se irritou, deu um jeito de localizar a moça e intimidou-a. A estagiária teve de sair de onde estava para ir auscultar o sr. Abel, medir sua pressão arterial, examinar suas amídalas.

“Bronquite tabágica”, cravou. “Nada de mais.”

“É o caso de pedir uma radiografia pelo menos, não, doutora?”

Indignada com a ironia de Isis, a moça abriu um riso cínico. Radiografia nesta cidadezinha fantasma e ainda por cima no meio de um feriadão… Vai sonhando, ela pensou. Mas a estagiária preferiu não revidar: “Ah, não precisa. Não mesmo”.

Voltaram para a Fazenda Futura. Minha amiga estava tensa e dividida. Precisava tirar o pai dali, mas não devia (o índice de credibilidade dele no quesito disciplina era zero). Tinha então de mantê-lo ali, mas não devia, por causa do estado de saúde dele. O nó da situação: como levá-lo e ao mesmo tempo mantê-lo ali? Ele não podia escapar do tratamento outra vez, não podia voltar a beber outra vez, não, porque ninguém agüentava mais!

Sr. Abel se encaminhou cabisbaixo na direção do portal de entrada, que ficava a uns quinhentos passos da sede da fazenda comunitária. Apenas funcionários e internos podiam atravessar o portal. Em seguida, parou. Virou-se para a filha rapidamente, como se houvesse recordado algo inadiável. “Isis, tá vendo aquele roseiral ali?” Sim. “Fui eu que plantei.” Legal. “Fiz tudo sozinho.” Que bom. “As freiras adoraram.” Isis travou.

Sr. Abel tinha mãos mágicas para plantas, mas era um homem difícil e desacreditado. Arrancar-lhe aceitações era tão complexo quanto sacar-lhe frases. Ele nem aprofundava nem abandonava as discussões. Alma tentava cercá-lo pelos flancos. Em vão. Isis, ao contrário, ignorou-o o quanto pôde. Até que não pôde mais.

Num domingo chuvoso sr. Abel escapou da Futura e foi ao encontro da filha geograficamente mais próxima. Alma levou um choque ao ver o pai fatigado, asfixiado, mais diminuído que o habitual, mal conseguindo manter-se de pé. Acolheu-o. Como não?

Alma e Isis cultivavam uma amizade terna e respeitosa, embora construída sem estímulos paternos, pois o pai era desse jeito e a mãe, embora socialmente maravilhosa e esplêndida à maneira dela, atrapalhava-se toda quando o assunto era “família”. Não desenvolveu seu talento potencial para o matrimônio e era definitivamente deficitária em maternidade.

No avião, Isis não conseguia definir para si mesma o que a atormentava de fato. Havia um emaranhado de sentimentos difíceis de nomear. Estava envolvida com um problema que nem fazia idéia de como enfrentar. Tentava invocar toda a sua coragem, mas acabou se culpando: “Deixar o pai à própria sorte, sem diagnóstico, naquela cidadezinha fantasma. Francamente, Isis”.

Enquanto isso, Alma ouvia a interpretação da bateria de exames: metade de um pulmão de sr. Abel estava debilitada e o outro pulmão, tomado pela coisa, parara de funcionar para sempre. Impossível saber ao certo desde quando. Imediatamente, baixaram sr. Abel em cima de um fraldão aberto sobre a maca e puseram nele uma veste de duas bandas amarrada lateralmente. O secreto par de dentaduras virou coisa pública; as solas cascudas de seus pés e os enormes joanetes se expuseram a zombarias. Meteram-lhe um tubo garganta adentro.

Os procedimentos para drenar os derrames infecciosos nos pulmões começaram mais ou menos pela hora em que Isis tomou o táxi em frente ao saguão de desembarque. Nessa emergência perturbadora residiam fatos inapreensíveis: tudo, absolutamente tudo, se desenrolara antes da chegada de Isis — da internação ao último ranger da porta da UTI —, tudo muito, muito rápido; e o sr. Abel entrou em coma induzido sem o conhecimento do principal.

Agora, querida Isis, resta aceitar que a única pessoa com quem você não se reconciliou na vida estará ainda mais longe no momento em que você se identificar na portaria; aceitar que a única pessoa que podia te ajudar a perdoar-se não estará disponível quando a voz do elevador do hospital disser… “Sétimo!”

Aos prantos, minha amiga imobilizou Alma num abraço que bem podia ter durado para sempre; e um conjunto de sentimentos difusos varreu completamente de sua memória — como que por uma rajada de vento —, o compromisso assumido de cuidar de meus gatos enquanto eu estivesse em Londres.

Sergio Vilas-Boas

É escritor e jornalista. Autor de Perfis, entre outros.

Rascunho