A ficcionista

Trecho da novela inédita de Godofredo de Oliveira Neto
Ilustração: Bruno Schier
01/07/2012

Gravação 6

Anteontem você falou um pouco da família, dos teus pais, da mudança de Joinville, do gosto paterno pela marcenaria, pode falar mais sobre essa época?

Não tenho muita coisa a dizer. Família super normal, um irmão enfermeiro que vive nos Estados Unidos desde adolescente, fez lá inclusive o Ensino Médio, trabalhando como cozinheiro para pagar os estudos. Pai torneiro-mecânico, mas marceneiro de paixão, como já disse outro dia, mãe motorista de táxi em São Paulo. Ela compunha o contingente de 180 mulheres exercendo essa profissão em Sampa. Doença dos dois. A dele bem grave, a dela foi primeiro nas pernas, reumatismo logo transformado em osteoporose, aposentadoria pequeninha, a dele menor ainda, câncer de intestino, pensão do INSS uma coisiquinha, os dois em casa impotentes, só eu, ainda estudante do Ensino Médio, para segurar a barra, vestibular para o CEFET, aprovada. E um segredinho: aprovada em primeiro lugar, mas não bota isso no livro, hoje não tem sentido para mim qualquer tipo de vaidade. E mais um: eleita pelos calouros a mais bonita do CEFET (mas também não bota não… rsrsrsrsrsrs).

Algum problema de ordem familiar que te levou para caminhos assim diferentes da média e para o messianismo?

Messianismo voltado para o social?

O messianismo não é sempre assim, Nikki? E por que você volta sempre ao mesmo social, como se estivesse se defendendo de alguma coisa?

Você é que está vidrado nesse tema. Os fiéis podem até imaginar leite nos rios e as montanhas virando chocolate! No fundo nem eu mesma acredito.

Está bem, Nikki, falávamos dos eventuais problemas familiares.

Nada que me lembre. Meu pai morreu quando eu cursava o primeiro ano do CEFET, minha mãe também se foi logo depois. Estava dormindo na cama com ela, uma noite chuvosa, com trovões. De manhã a mãe não acordou. Ficou ali estirada, ainda chovia e trovoava, tal fogos de artifício engasgados e roucos, trombetas de cemitério. Essa cena me marcou muito. Não que isso possa ter influenciado a minha vida recente. É bem verdade que a mãe tinha aspirações como qualquer um, gostava de dividir comigo esses sonhos. Coisas triviais. Morar numa casa grande com jardim, outras mais bizarras, como ser motorista de táxi em Nova York e por aí afora. Morreu frustrada.

Vocês viviam em condições precárias?

O nosso apartamento de Moema, em São Paulo, era minúsculo e escuro, não batia sol nunca, a gente deixava a luz acesa em permanência. Minha mãe andou flertando com algumas religiões, se interessou pelo culto de Isis, do Egito, falava de um mundo de deusas. Mas sempre afirmou que o humanismo transmitido pelo cristianismo e pelo islamismo devia ser mostrado pelas esquinas da cidade.

Você saía com ela pregando pelas ruas de São Paulo?

Às vezes aos domingos ia com ela ao Parque da Consolação pregar, sim. Mamãe levava a Bíblia e o Alcorão. Lia fragmentos dos dois textos em voz alta, aquilo me constrangia um pouco. As pessoas riam, só uns perdidões ouviam as frases rebuscadas, os excertos me pareciam difíceis de entender. Mamãe insistia em dizer minha filha, parágrafos atrasados dos dois livros foram acrescentados artificialmente por loucos através dos séculos e acabaram por fazer um estrago danado na história da humanidade! Ela só recitava os trechos com evidente mensagem humanista e apagava com pilot preto as passagens consideradas eticamente abomináveis.

Mas não pode significar que ela preferia as partes fundamentais do texto?

Minha mãe fundamentalista! Rsrsrsrsrsrs… nem pensar! Ao contrário, tirava as partes bobas da narrativa e deixava as que difundiam maior fraternidade e maior humanismo entre homens e mulheres.

E o teu pai?

Meu pai trabalhava das cinco da manhã às dez da noite, inclusive sábados e domingos. Esculpia santos e figuras do folclore gaúcho. Era de Alegrete, no Rio Grande do Sul. Tinha muitos fregueses. Uma vez esculpiu um São Jorge matando o dragão num pedaço enorme de madeira trazido por nós três de uma praça de São Paulo. A estátua ficou exposta na entrada do pequeno apartamento, sobre a cômoda onde também reinava a televisão. Quando a gente via o noticiário ou filmes de madrugada, o São Jorge nos acompanhava. Mamãe sempre reclamava por papai não haver esculpido personagens negros. Um dia ele trouxe um Preto Veio com um enorme cachimbo na boca. Essa peça esteve dois anos com uma parenta da mamãe em Bertioga, mamãe vinha de uma família daquela região. Consegui reaver e hoje os dois estão aqui comigo, ali em cima da pedra, como você já viu no primeiro dia.

Como você sabe que eu vi?

Você nem se deu conta que permaneceu quase uma hora hipnotizado pelos olhos do São Jorge e do Preto Veio?

É, se você viu deve ser… rsrsrs.

Essa foi a minha vida em casa, nada de particularmente marcante. Um dia-a-dia medíocre. O CEFET me retirou do apartamento feio e escuro e me jogou no mundo. Ali também descobri pela primeira vez a paixão. Tive um caso com um rapaz polaco de Curitiba, desses caras desejados por todas as mulheres. Levei a sério, fiz planos de casar, ter filhos, morar numa casa com jardim como sonhava minha mãe. Saíamos juntos da Faculdade, freqüentávamos cinema e teatro, ele era fã de música clássica, íamos a concertos. Foi com ele que aprendi a gostar de ópera e música clássica. A cada saco de pipoca dividido correspondia um longo beijo salgado e molhado, podia ser em qualquer lugar, a gente pouco se importava com as pessoas. Paixão pra valer dos dois lados. Mas o André, fui saber depois, era bipolar. Acabei por descobrir que batia nas namoradas, às vezes era possuído por um ódio inexplicável.

Você chegou a testemunhar cenas de violência da parte dele?

Eu tinha presenciado realmente uma cena estranha que me encucou. Foi a partir dela que tentei descobrir alguma coisa sobre o meu rapaz loiro de rosto angelical. Aquela cena foi dantesca, mas nunca podia imaginar que a personalidade dele contivesse tal agressividade.

Foi em lugar público?

Foi num encontro no Ibirapuera, em São Paulo. Um menino de uns quinze anos ou dezesseis ficou olhando insistentemente para mim, uma insistência fora do normal. Notei mas não disse nada. O André numa hora pulou no cara, agarrou o seu pescoço e enfiou a porrada na cara do pobre guri. Bateu ainda com força no estômago, na cabeça, nas costas, não parava mais, parecia outra pessoa, como possuído pelo demônio. Umas dez pessoas vieram tentar apartar a briga. Nem briga era, o menino não reagiu uma vez sequer. Foi horrível, o rapaz ficou caído, todo ensangüentado.

Deu polícia?

Deu. Os guardas levaram o André para a delegacia, uma ambulância veio logo e acudiu o menino. Fui atrás do carro da polícia de táxi. Na delegacia André continuava um desconhecido para mim, vinha de outro mundo, respondia as perguntas sem olhar para ninguém, as respostas não tinham nexo. Acho que o delegado pensou esse cara não bate bem, é pirado. Ali não era o lugar para ele. Não havia nada a fazer. Além do mais o rádio da polícia alertava com insistência sobre um tumulto de grandes proporções na Avenida Paulista. Acabaram mandando o André embora com empurrões nas costas. O caso ficou por isso mesmo. O menino, soubemos depois, era um conhecido batedor de carteiras da região dos Jardins e motoboy de um conhecido traficante de uma favela perto do aeroporto de Guarulhos.

Por que não teria reagido então?

Sabia que se reagisse morria. O André tinha virado um bicho, o menino deve ter percebido. Aquela tarde no Ibirapuera foi o meu último dia com o anjo louro. Ele nunca mais voltou ao CEFET. A Filó soube por um conhecido da sua internação numa instituição psiquiátrica. Sou perseguida por esse tipo de gente. Tive ainda uma amiga de colégio, encontrava com ela de vez em quando, a Sandrinha. Um dia a gente passou horas fumando maconha e tomando vodka na represa Billings, em São Paulo.

Quantos anos você tinha?

Uns quinze anos, ela um pouco mais. Sabia que ela tomava drogas mais pesadas. E naquela tarde ela já tinha vindo chapada. De tardezinha, quando quase todas as pessoas tinham ido embora, Sandrinha teve um ataque e morreu do coração na minha frente. Comecei a gritar, chegaram uns policiais, ela foi levada para o hospital de São Bernardo do Campo. Fui junto. Os médicos diagnosticaram overdose de heroína. Uma coisa dramática.

Foi a primeira vez que você a viu nesse estado?

Já tinha acontecido coisa parecida na casa dela uma vez. De madrugada Sandrinha foi com um amigo comum, o Jorge, para o banheiro. Ela se dizia virgem, tinha problemas com parte do seu corpo, doía quando começava a penetração, etc. Só sei que o Jorge saiu do banheiro correndo, aos gritos. Sandrinha apareceu na porta do banheiro com os traços crispados, não andava direito, sentou no sofá da sala olhando fixamente para a parede, falei, oi, Sandrinha, o que você tem? Nada, ela respondeu, só estou vendo coisas maravilhosas na minha frente, ali, ó, tá vendo a borboleta voando e me sorrindo?

Ela apresentava outros sintomas?

Sandrinha também babava pelos cantos dos lábios, é melhor chamar uma ambulância, eu disse. Ela retorcia a boca toda para um lado, botava a língua para fora, emitia uns roncos estranhos, as mãos transformadas por um reumatismo súbito, os dedos pareciam garras de gavião. Pus-me a rezar, a pedir por Deus, já tinha visto pessoas possuídas pelo diabo, achava que Sandrinha estava com o demônio no corpo. Era um processo neurológico provocado pelas drogas? Um pronunciamento do cão-tinhoso? Exu tomava conta do corpo da minha amiga? Ainda hoje relembro dos traços da Sandrinha quando uma força súbita toma conta de mim.

Mas você se droga?

Não, claro que não, já te disse, isso são tempos idos para sempre, que fique bem claro. São outras visões que me dominam e me ajudam a guiar as pessoas.

Você nunca mais viu essa gente?

A Sandrinha morreu, como te falei. Me comunico com alguns amigos daquela época por internet quando vou a uma lanhouse em Herval d’Oeste ou em Joaçaba. A irmã da Sandrinha seguiu o mesmo caminho. Conheci ela também, Janaína. O seu psiquiatra fala em histeria. Ela acrescenta sempre rsrrsrs depois da palavra histeria quando me escreve. Mas anda internada.

Foram experiências traumáticas, não, Nikki?

Foram um pouco, mas, junto com cólicas menstruais, depressões, as briguinhas de colégio e no CEFET, acho que aconteceram coisas típicas a qualquer menina da minha idade.

No fundo a gente acha que acontecem só com a gente e acaba ficando com inveja de pessoas fortes e bem-sucedidas, bonitas por fora e por dentro. Mal sabe que essas pessoas sofrem do mesmo jeito, só manifestam de outra maneira. É tudo fake. Também têm as veinhas que pulsam na cabeça e no coração, sofrem enfarto e AVCs como todo mundo, talvez tenham até vida mais curta do que os outros, tudo isso deve ser levado em consideração.

Você já teve algum animal de estimação?

Tive um gato durante dois anos, logo depois do episódio do André. Era preto malhado de marrom, olhos verdes imensos e pêlo macio como seda. Gostava do Mimi. Costumava passear pelas ruas de São Paulo com ele no ombro. A gente se completava em todos os sentidos. Como tenho um ombro mais baixo que o outro, botava o gato no ombro mais baixo e encontrava uma espécie de equilíbrio para o esqueleto. Até os meus sapatos, que se desgastavam mais no pé esquerdo, deixaram de me machucar. Comprava para o Mimi a ração mais cara, caminhas de pelúcia, brinquedinhos, etc. Parte da bolsa de estudos do CEFET sumia no pet shop. Era o meu único gasto supérfluo.

Que fim levou ele?

Mimi acabou estraçalhado numa das suas incursões na vizinhança. Um pastor alemão topou a briga. De costume o Mimi afugentava os cães com uma demonstração belicosa com as garras, além de um rosnar atemorizante. O manta preta daquela vez levou a melhor, foi logo na primeira bocada, segundo algumas testemunhas. Chorei muito, mas nada a ver com o choro quando aconteceu o caso com o André. Mimi era um pêlo macio que só me queria bem. A vizinha de porta quis me dar um periquito australiano como consolo, mas não quis. Outros vizinhos vinham apresentar condolências, alguns até aproveitavam a situação para outras intenções.

Então você era uma pessoa querida pelos condôminos, não tinha problemas de relacionamento com as pessoas.

Era bastante. Foi assim que acabei transando com o marido da vizinha do andar de baixo! O cara se apaixonou, mas depois do terceiro encontro eu não quis mais. Pensei na Filó e nos seus conselhos: melhor dar umazinha de vez em quando para garantir e para não esquecer como a coisa funciona, sem falar que na hora, ao ver aquela coisa dura, tu te sente desejada, é bom pra auto-estima… rsrsrsrs! Ela ainda assegurava que homem casado é até melhor, porque pega menos no pé da gente.

Você pauta bastante as tuas histórias falando de sexo.

Eu não! Você é que ressalta e sublinha esse ponto, o recalcado é você, e que tenta exorcizar as suas pulsões mais primárias na fabulação.

Não é isso, foi só com o intuito de tentar entender a tua personagem, e uma coisa é o narrador, outra o autor.

Não sou personagem de ficção! Sou de carne e osso, pô!!! Mas, de fato, homens na minha vida apareceram muitos, se é que te interessa.

Não particularmente, é só para ir construindo cenas e personagens, já te disse.

Mas não esquece que construir um personagem é também destruir um conceito, trabalha isso com os teus babacas de leitores.

De qualquer maneira, Nikki, escrever é um ato de resistência à linguagem comum, não vou repetir bobamente o que você narra.

Então vai te foder!!!

Sinceramente, Nikki, vou ver se relevo no texto essa grosseria que você acaba de dizer.

Grosseria?

É. Indelicadeza e descortesia.

Então interpreta como você e os seus leitores acharem melhor. Vai plantar batatas, talvez seja menos inconveniente… rsrsrsrs.

Vamos voltar à entrevista.

Tudo bem.

Você já teve algum problema pessoal com a polícia?

Problema como?

Algum relacionamento, alguma briga, algo que tenha te aborrecido.

Tive um, que me lembre agora.

Godofredo de Oliveira Neto

É professor da UFRJ. É autor dos romances Amores exilados e Menino oculto, entre outros. A novela A ficcionista será lançada em agosto pela Imã Editorial.

Rascunho