A estrada de lava (II)

Ommar Qutb não prossegue falando sobre seu novo filme, talvez não terminado ainda
Ilustrações: caderno de imagens de Fernando Monteiro
01/01/2007

Ommar Qutb não prossegue falando sobre seu novo filme, talvez não terminado ainda (eu não pergunto nada, estou com a moça na cabeça e olhando para ele como para uma porta envidraçada que me pergunta se eu quero beber alguma coisa). Se eu quero beber…? — ele está mesmo perguntando isso, com aquela gentileza meio blasé das raças antigas, sociáveis e cansadas.

“Chá de menta”, respondo, como se tivesse descido de ônibus de turismo (bem, há uma miniloja, sim, na padaria que vende pães, bolos, tortas e cigarros, postais, cópias de papiros e guias turísticos), e isso foi bem antes do cineasta me mostrar o poema quase furioso escrito por sua filha mais velha, casada com um grego de Tessalônica. Ela foi morar na Grécia, e, lá, ensina literatura no mundo banalizado do poema que eu copiei porque Qutb informa que ainda fará, um dia, um filme sobre o texto (ler na nota), tratando de uma turista daquelas (aponta) em visita ao país exausto — “sim, há uma exaustão no Egito, estamos cansados e esvaziados pela história” (isso é parte da resposta que o professor fundamentalista de Asyut dá à jornalista vagamente inspirada em Oriana Fallaci?), eu ainda não perguntei, porém olhei na direção do dedo grosso, e vi a moça do hotel, a do calcanhar rosado como as romãs de afrescos, lentamente se apagando nas tumbas.

Estou completamente distraído e ele o percebeu: volta a olhar para a moça e sorri para o seu entrevistador improvisado. E é ele quem pergunta:

“Você tem uma filha? Sabe, os homens que têm filhas…”

Não completa a frase sem qualquer ênfase sentenciosa. Volta a opinar — sobre qualquer coisa (eu permaneço distraído) — com pensamentos que não se interrompem por uma bola suja (ou uma mente não tanto), a mente atraída por responder com perguntas. “Por que as mulheres de Gizeh ainda se dirigem para os últimos bancos dos ônibus (ataviados de contas e miniaturas de gesso de faraós e ídolos do futebol, confundidos)?…

Que assunto. Ommar fala disso, e, em seguida, volta ao tema da filha distante, “uma egípcia livre e sem preconceitos: foi namorada de um homem mais velho, que só depois ele disse de quem se tratava: Richard Lester (“quem?”), vocês talvez não saibam quem foi Lester, eu mesmo demorei a perceber que se tratava do cineasta do free cinema que fez os filmes dos Beatles, etc., o tempo corre e Qutb muda de assunto como uma andorinha dos pátios desertos dos bazares — depois das cinco horas —, há retardatários chegando naquele bairro afastado (“mesmo aqui?”), e, principalmente, não responde quando não quer responder, detesta fotos, trouxe três retratos velhos, posados, feitos, talvez, quando mal havia deixado de ser um dos jovens assistentes de Abou Seif Salah.

Ninguém pode ser mais arbitrário, na conversação, do que este homem ainda jovem, de barba cerrada e sorriso de maus dentes como se estivesse sorrindo numa publicidade de pasta dental infalível. Ele fala longamente sobre A Estrada de Lava, título que eu nunca ouvi mencionado. “A Estrada de Lava? Seu?”

“Sim, meu”. Qutb não parece modesto nem preciso ao confirmar isso, com um sorriso. Tem maus dentes — que precisarão de cuidados com ele for assumir a presidência do Festival de Cannes, ma edição de 2007 (não sou eu que se meterá a lhe recomendar o tratamento estético específico) —, estou intrigado com o título, não lembro do filme na sua filmografia e estou disposto a pedir para ver o filme na cinemateca egípcia, quando ele, então, explica que A Estrada de Lava é o filme que “escolheu” para nunca realizar, por medo de ter nas mãos “um resultado desfigurado”.

“Ah, o filme ainda não existe.”

“Não. O filme nunca existirá, porém não é menos meu por causa disso.”

Talvez ele não perceba que vemos uma diferença entre os filmes sonhados e aqueles que a película — ou a imagem digitalizada — engesse como o pescoço modelado de Nefertiti. (“ela tinha o pescoço mais belo do mundo, as esculturas que existem — só duas — dão somente uma pálida idéia do prodigioso equilíbrio”)…

Peço que volte ao assunto do filme, A Estrada de Lava.

“É melhor do que La Strada — ele faz a piada no italiano que segue popular em certas camadas do Cairo — não é nada felliniano (odeia a adjetivação vinda de “uma qualidade sutil”, etc.), pelo contrário, o argumento está baseado na vida dos Rasul — a brutal família de ladrões de túmulos — que moravam perto. Faz um gesto vago, de distância e proximidade no espaço e tempo “que os filmes achatam”. Nada do que Qutb diz (com entusiasmo) parece indicar, entretanto, que o filme possa estar fadado a ser a “obra da sombra que não devia vir para a luz, o rascunho dos objetos sepultados cujas formas de perfeição eram para permanecer no silêncio do escuro”.

Ommar Qutb falando é mais ou menos assim: “Chamas, compreende? Chamas de ouro na completa ausência do sol e da lua… Quando eu era novo, tinha idéias geométricas, claras, um plano me parecia poder ser filmado só daquele modo… como se você entrasse no quarto de uma prostituta do Miszrah e se visse, au complet, no espelho partido do armário… Pensava no som dos barcos, nas buzinas indiferentes dos carros quando você está tentando se suicidar num banheiro apertado, e pensava nos filmes mudos, na pureza dos filmes mudos, feitos do silêncio mental que acolhe todas as imagens que guardamos, desetiquetadas, e que depois afluem na desordem do sonho, perfeitamente silenciosas… Meus sonhos não fazem barulho, gosto de ouvir o silêncio no cinema e na vida, acho que não deveríamos encher os filmes de ruído, mas furar os tímpanos do cérebro com um silêncio tão espetacular num pátio que fizesse as pessoas rezarem no meio da sala, porque, você repare, todo mundo descansa musicalmente quando assiste a um filme sem banda sonora —, com a beleza da falta de foco, das imagens incertas, do tremor no meio da vida muda que concentra expressão no gesto humano, o gesto de quem sobrevive porque cortou só um dos pulsos na solidão do banheiro atravessada pelos gritos de crianças brincando no tal pátio que deixou de ser silencioso… Ninguém mais é místico, o último místico do cinema foi Robert Bresson, que é uma espécie de cineasta mudo”, etc.

“Você gosta dos filmes de Chahine?”

Minha pergunta intempestiva é respondida com outra (“onde você viu Daimon?”), enquanto eu acabo de perceber a turista do calcanhar vermelho — “é ela?” — fotografando as crianças lá fora. Eu falei da finlandesa, da sueca para Ommar Qutb. O cineasta anotou sobre os “calcanhares vermelhos”, ou da cor róseo-avermelhada de Petra, quando o peso do corpo se apóia sobre a carne premida do pé empoeirado na sandália assim como estão os nossos sapatos (o meu, a bola sujou), “o mundo é colorido, Qutb”.

“É o que você pensa. Nós imaginamos as cores, veja os sonhos, ali está a verdadeira cor, embora não se possa pensar talvez em The Searchers sem aquele tom pastel da Pahandle, avivado por um ou outro arbusto da cor da camisa menos discreta de Wayne” (ele prestou atenção até na cor das camisas que o ator — não à toa — usa na obra-prima do perfeccionista John Ford). “Você gosta dos filmes de Ford?”

“Não há ninguém que não goste de Ford, eu nunca encontrei, você nunca encontrará, quando colonizarmos os planetas menos distantes, o primeiro filme a ser projetado num paredão de rocha, debaixo da sombra azulada da terra, será uma obra de John Ford, e eu sugiro The Searchers, que se passa na lua do coração humano”…

“Você gosta de ficção científica?”

“Não.”

O pequeno milagre (que ele respondesse uma pergunta diretamente, ao menos uma vez) não se repetiu, mesmo com outro monossílabo. E eu tenho aqui gravado o conto que ele então passou a ler (“Uma história de Alexandria”), sei lá por quê, sem informar se era dele, da filha, ou de quem era. 

Nota

O Caribe da Europa: Cessou todo o ruído grego,/ empoeirado das plantas de pés/ na maratona ou do pó levantado/ pela queda de guerreiros/ feridos das lâminas carcomidas/ do museu das guerras do Peloponeso./ Um silêncio falso de oliveiras/ só é rompido por sinos autênticos/ das pequenas capelas brancas/ de ilhas esquecidas do turismo/ e referidas por escritores e artistas/ descalços nos anos cinqüenta/ delicados e tristes./ Tudo resistiu até submergir/ debaixo da onda de vulgaridade/ das escolhas de donas de casa/ atraídas para voar/ até Mykonos, Santorini e outros/ destinos longínquos de barco,/ senhoras entediadas de assar/ tortas nas cozinhas do desespero/ que não tem mais refúgio/ depois dos aviões levando/ todo tipo de imbecil/ para os lugares mais remotos da terra.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho