Um piano macabro, bem se poderia dizer.
Naquela prisão estavam apenas homens e mulheres condenados à morte. Cada um esperava pelo seu dia, não com os olhos bem abertos, mas, sim, com o ouvido atento; pois seria em som (e bem harmonioso) que viria a sentença de morte.
Bem antes de o seu nome ser pronunciado pelo carrasco à porta da cela, seguido de um pedido delicado para que o condenado acompanhasse aquele que o mataria, uma certa música seria escutada.
Um pianista, amante exclusivo da sua arte, tinha um extraordinário piano onde ensaiar — o piano da referida prisão.
Objecto lindíssimo, bem afinado. Uma máquina em condições perfeitas.
Entretanto, os directores da prisão haviam feito uma correspondência entre algumas músicas do livro de pautas e certos condenados à morte.
Se o pianista tocasse a música que correspondia a um dos presos, esse preso, no dia seguinte, seria morto.
A parte perversa deste sistema é que cada preso sabia bem qual era a sua música; qual a música, em suma, que o levava de imediato à forca. Bastavam os primeiros acordes.
Já o pianista, esse, por seu turno, sabia que certas músicas condenavam à morte certos presos, mas não conhecia a correspondência entre cada música e cada condenado à morte. Sabia ainda, o músico, que algumas músicas que tocava no seu piano não tinham consequências; não correspondiam a nenhum preso. No entanto, o pianista também não sabia quais eram essas músicas inofensivas.
Deste modo, cada vez que escolhia uma música para tocar, o pianista sentia uma enorme pressão: da sua escolha dependiam vidas.
Nas primeiras vezes, os seus dedos tremiam, pois sabia que o seu prazer táctil e sonoro teria, provavelmente, uma outra consequência, bem mais terrível. Pensou até em abandonar aquele piano, e passar a tocar noutro. Tinham-lhe dito que se ele deixasse de tocar as suas melodias naquele piano mais nenhum condenado à morte seria executado. Sem melodia não há mortes, sentenciava o director da prisão.
Tal situação fez o pianista reflectir sobre todas as questões éticas envolvidas.
Porém, na verdade, aquele piano, era de longe o melhor da cidade. Em nenhum outro a sua técnica conseguiria progredir tanto.
A pouco e pouco, então, o pianista, amante louco da sua arte, lá se foi habituando à situação; e não sabendo se as melodias anteriores haviam condenado ou não alguém à morte, pois nunca o informavam das consequências práticas, ele entusiasmava-se cada vez mais e progredia, progredia.
Ao longo de dois anos foi, é certo que de uma forma indirecta, responsável pela condenação à morte de mais de quatrocentas pessoas, mas sempre se defendeu dizendo que era um artista, que apenas tocava piano.
Nota
Neste conto, manteve-se a ortografia vigente em Portugal.