“Vivo em sociedades das quais não faço parte”

Alexandre Vidal Porto comenta sua estréia e o seu projeto literário
Alexandre Vidal Porto: vigor narrativo sobre pequena tragédia burguesa.
01/02/2006

• Os novos escritores brasileiros normalmente optam por ambientar suas ficções com um pé na periferia das grandes cidades, deixando de lado a burguesia. Em sua estréia, o senhor faz o caminho inverso e invade o mundo dos ricos e bem-sucedidos. Por que essa escolha?
Não sei se se trata de uma escolha. Acho que é mais uma contingência dos meus personagens. Acho que uma questão de que quero tratar em Matias na cidade é mais evidente em pessoas sem grandes problemas materiais. O vazio nas vidas de Matias e Susana não é material. Materialmente, eles não têm preocupação. Têm a vida que pediram a Deus. No entanto, os dois são infelizes, cada um a sua maneira. Sua infelicidade não tem uma causa externa. De acordo com o sistema de valores em que vivem, eles têm tudo para ser felizes, mas não são. Por quê? É sobre isso que eu quero falar.

• Você já morou em diversos lugares fora do Brasil — como Nova York, Santiago e Cambridge — e atualmente vive em Washington. De que maneira esse distanciamento pesa sobre a sua ficção?
Influencia bastante, diria eu. Na minha experiência cotidiana, no meu dia-a-dia, sou sempre um estrangeiro. Durante anos, tenho sido sempre estrangeiro. Vivo em sociedades das quais não faço parte. Acho que, por isso, o meu olhar sobre as coisas e a minha observação das pessoas acabaram adquirindo um certo distanciamento quase automático. Profissionalmente, ocorre o mesmo. Sou diplomata e analiso fatos políticos aos quais não me vinculo. Sou apenas um “espectador engajado”, para usar as palavras de Raymond Aron. Relato eventos que não são meus, que não me pertencem, mas que eu observo em meu entorno. Na literatura, é a mesma coisa. Conto histórias que vejo ou imagino acontecer, mas que não necessariamente me incluem. Outro aspecto que o “viver longe” implica é uma certa promiscuidade lingüística. Uma grande parte de minha vida se passa em língua estrangeira. Expresso muito do meu universo íntimo em outras línguas. Alguns dos meus melhores amigos, por exemplo, não falam uma palavra de português. Mas acontece que a minha língua materna é o português. É a língua em que minhas possibilidades de expressão são maiores. Seria bom estar mais concentrado em um único idioma, mas a exposição a línguas estrangeiras me oferece soluções e imagens lingüísticas que acabam se integrando à minha expressão em português. Eu gosto disso.

• Matias na cidade encarna a impossibilidade da felicidade no casamento e o esboroamento do amor a longo prazo. A fidelidade e a monogamia não combinam com o homem e com o tempo em que vive?
Matias na cidade mostra um casamento em crise crônica, mas não é pessimista quanto à possibilidade de felicidade conjugal. Matias e Susana são infelizes no casamento porque se casaram pelas razões erradas. Mas poderiam ter sido felizes com outras pessoas, em outras situações de vida. O casamento deles, para eles, simboliza uma aposta na felicidade, que eles fizeram jovens e perderam. Nenhum dos dois quer reconhecer a falência, admitir o fracasso. Matias quer manter o casamento porque pensa que ele é o ponto máximo de sua felicidade possível. A infidelidade conjugal é a maneira que Matias encontrou para manter o casamento. Ele vive um paradoxo: trai Susana para poder continuar com ela. Considero, porém, o tema da infidelidade de Matias acessório. O foco, para mim, é o casamento infeliz e as possibilidades de felicidade romântica, sejam extra-conjugais ou não.

• Perpassa pelas páginas de Matias na cidade um grande ceticismo diante das relações humanas. O ceticismo é a melhor maneira para enfrentar os dias atuais?
Mais que ceticismo, diria que existe um certo desencantamento. O desencantamento de quem queria ser feliz, mas perdeu as oportunidades de felicidade real que teve na vida. Para mim, o desencantamento se origina no otimismo que se não se confirmou. Já o ceticismo seria uma espécie de desencatamento permanente, uma desesperança assumida. Matias é cético, mas Matias é um morto-vivo. O ceticismo foi a maneira que ele encontrou para lidar com as contradições de sua vida e com os dilemas entre seu mundo afetivo e seu mundo material. Tem muita gente na sociedade afluente que escolhe o ceticismo como estratégia de vida. O problema é que o recurso ao ceticismo, como anestesiante, impõe um preço muito alto ao espírito, que se alimenta das relações humanas espontâneas, definidas pela sensibilidade, não pelas lógicas do mercado.

• Para Schopenhauer, “um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor. O valor desses pensamentos se encontra ou na matéria, portanto naquilo sobre o que ele pensou, ou na forma, isto é, na elaboração da matéria, portanto naquilo que ele pensou sobre aquela matéria”. De que maneira esse conceito pode ser empregado na construção de Matias na cidade?
Essa citação de Schopenhauer é genérica, e eu acho que se aplica a Matias, também. No meu caso específico, como autor, meus “pensamentos” se encontram na matéria e meu objeto é a história, em sua substância. A forma existe e se define em benefício da matéria. Os elementos formais singulares que utilizo — a escolha da linguagem, o ritmo das frases, etc — servem para me auxiliar no relato que quero fazer. Para mim, a forma desempenha uma função, tanto que o meu próximo romance vai ter frases um pouco mais longas, porque a história pede algo mais envolvente, outro tipo de ritmo.

• A sua escrita se caracteriza pela economia, por uma secura mesclada ao lirismo. Como o senhor chegou ao ritmo adequado para Matias? Quais autores compõem a sua biblioteca afetiva e com quais o seu livro mais se identifica, dialoga?
Queria que Matias pudesse ser lido de maneira relativamente rápida, e que o estilo não limitasse ou dificultasse sua leitura. Queria ser simples sem ser simplório; queria ser claro sem ser óbvio. Por isso recorri à ordem direta, às frases curtas, à adjetivação sóbria. Gosto da idéia de que Matias possa ser lido por pessoas diferentes, em diferentes níveis de sofisticação intelectual. O ritmo das frases vem, assim, para tornar o texto mais eficiente e a comunicação mais direta. Não queria que o acessório pudesse acabar desviando a atenção do leitor sobre o essencial. Sou muito eclético. Minha biblioteca afetiva é multimídia. Há livros, mas há música, cinema e artes plásticas, também. Em literatura, há os poemas do Eliot e do Cavafy, tem Machado de Assis, os contos de Maupassant, Proust. Em cinema, há filmes que me emocionam sempre, como o Império dos sentidos, do Nagisa Oshima, e Beleza americana, do Sam Mendes, que contam histórias de homens que arriscaram a vida pela felicidade, e tem De volta para o futuro, do George Zemeckis, um filme juvenil que trata da conexão entre o presente e o futuro, entre o que se semeia e o que se colhe, que é um tema importante para mim. Na música, minha história sentimental foi marcada por Caetano Veloso, Prince e Renato Russo, além de Billie Holiday, Marina Lima, Cole Porter e duas sonatas de Schubert. Nas artes plásticas, gosto dos retratos do Lucien Freud e tenho uma relação muito especial com umas esculturas gigantescas do Richard Serra, chamadas Torqued Elipses. Seria pretensioso identificar Matias a outras obras, mas livros como Quincas Borba, de Machado de Assis, O falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello, e Desonra, do J. M. Coetzee, me impressionaram muito quando os li. Ultimamente, tenho lido muita coisa da Amélie Nothomb.

• O senhor estréia na literatura com 40 anos — um pouco “tarde”, se levarmos em consideração o início da maioria dos autores da nova geração da literatura brasileira. O senhor tem um projeto literário definido? Quais serão os próximos passos?
Ao longo de minha vida, estive sempre ligado à expressão escrita. Matias na cidade é parte do projeto literário que eu sempre tive e que agora se tornou visível com a publicação e a promoção do livro. O desenvolvimento de um “projeto literário”, digamos, tem implicações existenciais importantes. Tenho necessidade de segurança e quis definir algumas questões pessoais e profissionais antes de me permitir lançar-me como autor. Temia a exposição que uma carreira literária poderia provocar. Escrevia, mas não estava preparado para o escrutínio público do meu trabalho. Comecei a escrever Matias no Chile, em 1998, mas, entre o livro, um mestrado que resolvi fazer e o exercício da diplomacia, só acabei de escrevê-lo por volta de 2002. Tomei a decisão de publicá-lo em Washington, depois de um amigo meu, crítico literário respeitado aqui nos Estados Unidos, insistir que o livro merecia publicação e que eu deveria procurar uma editora. À época, eu já me sentia suficientemente seguro. Ignorei o medo de que me achassem patético e apresentei o livro à Record, que me ofereceu um contrato três dias depois. Atualmente estou escrevendo uma segunda novela e pretendo seguir contando minhas histórias.

• O que mais lhe chama a atenção no atual cenário literário brasileiro?
Assisto ao cenário literário brasileiro de longe, mas me chama a atenção o fato de que o mercado nacional já é suficientemente robusto para comportar um fluxo constante de escritores novos. Esse fato permite a criação de uma massa crítica que renova e revigora o corpo da nossa literatura.

• Por que se aventurar pela ficção?
Porque, na ficção, tudo é possível.

LEIA RESENHA DE MATIAS NA CIDADE

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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