Viajar e escrever podem ser descritas como as grandes paixões de Flávia Lins e Silva. Nascida no Rio de Janeiro, em 1971, a carioca é formada em jornalismo e já trabalhou como roteirista e documentarista. As peripécias de Pilar na Grécia, publicado em 2001, é seu primeiro livro e inicia a série de aventuras da menina Pilar, que, assim como sua criadora, adora viajar e escrever diários das suas viagens. Com Mururu no Amazonas, Flávia venceu o Prêmio de Melhor Livro Juvenil de 2010 da FNLIJ. Nesta entrevista por e-mail, a autora fala de seus primeiros passos como leitora, a experiência de escrever uma história a quatro mãos com uma chinesa e a importância da ilustração para sua literatura.
• Como foi sua entrada no mundo da literatura?
Meus pais sempre foram grandes leitores e grandes contadores de histórias. Quando garota, eu adorava ouvir tanto as histórias lidas quanto as inventadas por eles. Minha mãe criou um personagem chamado Bento, que era médico de bonecas e eu adorava ouvir as aventuras dele, num tempo em que ainda se consertavam as coisas. Meu pai trabalhava em cima da loja da Ediouro. Toda sexta-feira voltava para casa com um livrinho novo para mim. Eu me lembro de uma série chamada “Lila e Sibila”, que ele me trazia quando eu devia ter uns cinco anos. Minha escola também foi muito especial e incentivava tanto a ler quanto a escrever. Começávamos a semana escrevendo num diário. Veja que minha personagem Pilar pegou esse hábito. E até hoje eu gosto de escrever diários.
• Em que medida seu trabalho como babá de crianças na Europa influenciou sua literatura?
Na minha adolescência, eu só pensava em viajar, dar a volta ao mundo, essas coisas. Então, saí estudando idiomas: francês, inglês, alemão, tudo ao mesmo tempo. Cada idioma tem uma lógica, um sistema de pensamento próprio, acho isso muito interessante. Quando fiz 18 anos, eu tinha uma sede enorme de liberdade, de independência, e viajei para a Europa e fui ser babá, morando em casa de família, para poder me manter. Era uma época mais difícil. Não tinha celular nem internet. Eu só podia ligar para casa aos domingos, a cobrar. Aprendi a cozinhar, lavar, passar, foi uma experiência enorme, muito enriquecedora. No início, fiquei impressionada como as crianças sabiam os livros de cor. Achei que eram gênias! Aprendi muito com as crianças. Na Alemanha, fazíamos muitas tortas juntos e íamos nadar em piscinas comunitárias, passear nos parques. A Alemanha tem uma tradição enorme de literatura infanto-juvenil. Desde Grimm a Michael Ende e Cornelia Funke. E na Itália aprendi o poder da imagem. A criança aprende a ler com desenhos, ilustrações. E na Itália o visual é tudo. As crianças das quais cuidei em Milão me ensinaram até a me arrumar mais. Não queriam sair comigo vestida de macacão jeans de jeito nenhum! Era mesmo um macacão surrado, com o qual eu viajava há muitos meses. Eles admiram “o belo”. E têm toda a razão. Hoje exijo sempre livros bonitos, belos, com capas admiráveis, ilustrações atraentes. Se você visita a feira de Bolonha descobre que já há livros demais no mundo. Não precisamos apenas de mais livros. Precisamos é fazer livros incríveis, surpreendentes, encantadores.
• Como você lida com as diferenças no tratamento de crianças e jovens, tendo escrito obras para os dois públicos?
Parafraseando a nossa querida Adélia Prado, eu diria: “O escritor é desdobrável. Eu sou”. Gosto imensamente de escrever para pequenos, jovens e até para adultos. Um dia coloco os textos adultos para fora da gaveta.
• Você idealizou a Coleção Quatro Mãos, em que dois autores, um brasileiro e um estrangeiro, escrevem um livro infantil. O primeiro título já foi lançado, Nas folhas do chá, em que você divide a autoria com a chinesa Liu Hong. Como foi essa experiência?
Fiz um curso na Fundação Getúlio Vargas, pensando em ser editora. Foi ótimo ter feito o curso porque logo desisti de ficar do outro lado do balcão. Gosto mesmo é de escrever e acho que não teria talento para administrar contas, autores, lançamentos. Mas o curso foi interessantíssimo, conheci muita gente bacana. No final tínhamos que inventar um projeto de editora. Como eu não queria inventar editora, fiz um projeto para a editora Zahar, que já publicava meus livros. Eles se animaram e comecei a procurar uma escritora chinesa. Uma amiga havia conhecido uma chinesa na Bienal, escrevi para ela, mas estava ocupada. Então essa chinesa me indicou a Liu Hong. Acho que a princípio ela me achou meio maluca. Escrever com uma brasileira? Desconhecida? Por e-mail? Mas contei o projeto, insisti, e ela acabou topando. Escrevemos umas 40 páginas e então ela disse: “Agora a sua agente tem que falar com o meu agente”. Ela queria ter certeza de que aquilo não era uma perda de tempo, uma maluquice completa. Nossos agentes se falaram e seguimos trabalhando. Fomos inventando a história enquanto escrevíamos, então foi muito interessante. Tem gente que precisa saber aonde vai chegar antes de escrever. Eu não. Gosto de ir descobrindo aos poucos, sendo levada pelos personagens. E Liu Hong foi uma parceira incrível. Ela cria uns silêncios, uns climas muito interessantes. Aprendi muito com ela. Quando o livro ficou pronto, nós nos encontramos na Inglaterra e tivemos uma tarde adorável. Passeamos por Avebury, tomamos chá de crisântemo juntas, foi mesmo inesquecível.
• Como é sua relação com a ilustração?
O visual, o belo é fundamental. No meio de tantos livros, como fazer um livro se destacar? E a criança tem um grande prazer com a imagem. Por isso é fundamental buscar uma ilustração bonita, atraente. Amo livro de capa dura. Acho que está na hora de fazermos livros com uma qualidade excepcional, livros atraentes como um todo. Na forma, no objeto livro. Ainda mais em tempos de internet. Vivo em busca de ilustradores novos. Fui atrás da Joana Penna em Nova York porque vi uns desenhos que ela fez para uma capa. E chamei o espanhol Pitu Alvarez para meu último livro infantil, Manoel, Lugo e o invasor. Acho também que o Brasil devia se abrir mais a parcerias internacionais. No mundo pós-internet, as fronteiras vão caindo. Com um clique, um livro sai do Brasil para a China. Acho isso sensacional. Temos que pensar mais em termos mundiais. O Brasil ainda é muito fechado em si mesmo. E um jeito de se abrir é pensando em parcerias internacionais, seja escrevendo a quatro mãos, seja com ilustradores internacionais. Temos que nos abrir um pouco mais. Tantos vizinhos lendo em espanhol. Por que não pensamos em livros bilíngües?