Sobre filmes e amores fraturados

Cristovão Tezza comenta seu novo romance, “A tensão superficial do tempo”, que mistura cinema, política e uma paixão inviável
Cristovão Tezza, autor de “A tensão superficial do tempo”
02/09/2020

O novo livro de Cristovão Tezza traz um universo que o escritor tem consagrado em sua última leva de romances: personagens intelectualizados, vindos geralmente da academia (ou de profissões correlatas), discussões acaloradas sobre o momento político brasileiro e protagonistas acossados por questões afetivas que viram verdadeiras bolas de neve quando revisitadas. Tudo embalado em um “jeitão” de narrar que Tezza já pegou pra si, com o “tempo-espaço” limitados a algumas horas ou menos que isso, como é o caso de A tensão superficial do tempo.

Desta vez a “torrente” narrativa empreendida pelo escritor sai da cabeça de Cândido (que não é tão otimista quanto aquele outro personagem literário famoso), um professor de química, prodígio das aulas de cursinho e da pirataria de filmes fora de catálogo. Sentado em frente à água verde do lago do Passeio Público, no centro de Curitiba, atordoado por uma paixão não correspondida, ele revê os últimos acontecimentos de sua conturbada vida de homem de meia-idade.

“Entram neste caldeirão mental lances da própria vida, casos amorosos, lembranças dos pais, conversas no trabalho, frases avulsas, projetos imediatos, fragmentos da memória, trechos de filmes, sentimentos, fraturas emocionais, risos, tudo”, diz Tezza. E pergunta: “Não é assim a nossa cabeça, o tempo todo?”.

Nesta entrevista concedida por e-mail, Tezza aborda, além de seu novo romance, as delicadas questões em torno do Brasil e a violenta crise humanitária causada pelo novo coronavírus.

• Começo com uma pergunta que parece inevitável no momento: como tem sido sua vida nesses últimos meses com o isolamento e como acha que isso tudo vai impactar na vida das pessoas?
Minha vida é bastante caseira, de modo que o choque da quarentena, de ficar preso em casa, não foi tão grande, mas é claro que muda tudo, até pela tensão da doença, até aqui sem cura, que você não consegue esquecer. O Felipe, meu filho, que é Down, adaptou-se bem, porque está tendo aulas virtuais do Ateliê Criação, onde estuda e trabalha, e se diverte com o computador. Bem, vale o sábio lugar-comum: “a gente se adapta a tudo na vida”, e não vai ser diferente agora. Mas com certeza as consequências econômicas serão enormes, ainda mais pela inacreditável inépcia federal, que não tem nada a ver com direita ou esquerda, mas com uma incompetência administrativa, para dizer o mínimo, que chega a ser criminosa. Os efeitos práticos e emocionais da completa estupidez do governo brasileiro diante do coronavírus terão consequências duradouras.

• Essa situação tem te ajudado ou atrapalhado na hora de escrever?
Terminei A tensão superficial do tempo agora em fevereiro, quando fiz a última revisão para a edição que acaba de sair — isto é, ainda antes da quarentena. Como sou escritor de empreitadas longas, sempre com um bom intervalo entre um livro e outro, vou ficar alguns meses sem escrever. Provavelmente só devo começar um novo romance no ano que vem, e como raramente escrevo contos ou poemas, quero passar essa quarentena em plena e saudável vagabundagem. Bem, quando começou o isolamento, senti até uma euforia perversa e secreta: agora vou colocar todas as minhas leituras em dia, sem aporrinhações! Esperança vã: nunca estive tão dispersivo como agora. Fico lendo aos pedaços, debaixo de um sentido confuso de urgência para tudo, um olho na internet, outro na vida. O bom é que aprendi a fazer pão, o que é muito bom para a cabeça, e para exercitar a paciência.

“Conseguimos escapar de tudo na vida, menos da própria linguagem, que se transforma, nos transforma e afinal nos define.”

• A tensão superficial do tempo é escrito em um fluxo que mistura vozes, pensamentos, informações, conceitos, reflexões, diálogos, tudo em um bloco de texto contínuo, sem capítulos. É uma tentativa de fazer o leitor “entrar” na fértil cabeça do personagem principal, o professor Cândido?
A narrativa se articula inteiramente a partir da cabeça do Cândido, embora às vezes se alternem primeira e terceira pessoas gramaticais; o narrador está colado às percepções do personagem. Assim, nada se sabe no texto que não passe pela cabeça dele, que reverbera o que, normalmente, todas as nossas cabeças reverberam o tempo todo, no caos da realidade. Entram neste caldeirão mental lances da própria vida, casos amorosos, lembranças dos pais, conversas no trabalho, frases avulsas, projetos imediatos, fragmentos da memória, trechos de filmes, sentimentos, fraturas emocionais, risos, tudo. Não é assim a nossa cabeça, o tempo todo? Mas é claro que a representação literária é apenas uma representação, e não a coisa em si, ou ficaria ilegível. Cada pessoa carrega sua vida inteira a cada instante, e parece leve. A narração cria uma imagem compreensível deste caos da memória e leva o leitor pela mão, acompanhando os meandros da cabeça de Cândido. Eu diria que é uma voz narrativa tipicamente minha, da minha linguagem literária, um amadurecimento estilístico que vem de longe. Não se trata de um projeto prévio racionalizado. Costumo dizer que conseguimos escapar de tudo na vida, menos da própria linguagem, que se transforma, nos transforma e afinal nos define. Acho que, à medida que faço uma opção narrativa por uma história concentrada em pouco tempo (no caso deste romance, o tempo “físico” se reduz a uns 30 minutos), o mundo mental ocupa um espaço proporcionalmente maior: o romance inteiro está na cabeça dele. Um leitor definiu meu livro como “um rio de correnteza”, o que achei uma boa imagem: o leitor é levado de cambulhada na viagem de Cândido.

• Esse “jeitão” de narrar tem acompanhado seus últimos trabalhos, com as narrativas se passando em poucos minutos ou em algumas horas. Foi assim em O professor (2014) e é assim também em A tensão superficial do tempo. Acha que esse território narrativo já é caracteristicamente seu?
Não havia pensado nisso. Bem, olhando para trás, desde O terrorista lírico, dos anos 1970, quando comecei a me tornar prosador, o tempo narrativo foi de fato se encurtando. As histórias que eu contava se passavam tipicamente em alguns meses, mais ou menos (Juliano Pavollini é a exceção — são três anos, mas cada um deles ilustrado em momentos concentrados). Acho que minha literatura desde o começo sofreu uma influência forte do conceito de espaço e tempo do teatro, uma certa concentração dramática. Lembro de Trapo. A sala do professor Manuel é praticamente um palco para os personagens. Quando adaptei para o teatro, na bela montagem do Ariel Coelho, de 1992, o meu trabalho foi mínimo — praticamente transcrevi os diálogos do romance, cortando os excessos. Os capítulos do romance já eram cenas completas. Essa estrutura parece que se manteve nos livros seguintes. A suavidade do vento até mesmo se divide com as marcações do teatro —Primeiro Ato, Entreato, etc. Mas com Breve espaço entre cor e sombra (que na segunda edição virou apenas Breve espaço, do que me arrependo — se houver uma terceira edição, quero voltar ao título original, que é mais bonito e fiel ao livro), essa marcação do tempo e do espaço começa a mudar. É quase um livro de ação, uma história em movimento, e a influência, parece, já vem bem mais do cinema. A primeira cena, o enterro do amigo de Tato Simmone no cemitério do Barigui, parece uma cena de filme inglês — ninguém filma um enterro com a classe do cinema inglês. O diretor Beto Brant me disse que o livro daria um ótimo filme. A partir de O fotógrafo, de 2004, minha narrativa começa de fato a se concentrar no tempo e no espaço, ao mesmo tempo em que se torna cada vez mais reflexiva e intimista, mas esta concentração se expande internamente. Em Um erro emocional, no tempo de partilhar uma pizza, Beatriz e Donetti revivem a vida inteira. O café da manhã de O professor concentra 40 anos da história brasileira, segundo os olhos do personagem. A tirania do amor relata um dia e meio do economista Espinhosa. E, no novo romance, são 30 minutos em que cabe um caleidoscópio de memórias. Visto assim, parece até um escritor que produziu sua obra seguindo um projeto evolutivo rigoroso de representação do tempo e do espaço. As teorias a posteriori — como esta que acabo de fazer — dão sempre certo. Mas a verdade é que não tenho nenhuma ideia de como estas obras se fizeram assim. A frase que estou escrevendo é o que me conduz, e não uma arquitetura rígida prévia que determine a narração.

• Em A tensão superficial do tempo, o cinema é outro tema que ajuda a conduzir a narrativa. A maioria dos filmes faz parte daquele cinema mais “cabeça”, europeu, “de autor”. Esse é também o seu gosto? Aliás, o cinema o ajuda em seu trabalho de escrita ficcional?
O cinema exerce uma influência brutal na vida das pessoas, mesmo quando não nos damos conta disso. No meu caso, foi sempre uma influência relevante. Discutir Godard e Bergmann era parte integrante da formação de qualquer intelectual que se prezasse. Lembro particularmente do final dos anos 1960, quando, candidato a escritor, frequentava os cafés da Boca Maldita. Havia pelo menos uns dez cinemas nas ruas próximas, a cinco minutos de caminhada. Depois dos filmes, lá estava eu ouvindo atentamente as rodas de discussão na calçada, com Jamil Snege ao centro. Lembro até de Dalton Trevisan participando das rodas. Descrevi uma dessas cenas em A suavidade do vento. Mas nunca me especializei em cinema. Ver filmes, para mim, sempre foi um prazer natural, espontâneo, simples. Gosto de tudo; ver imagens em movimento é sempre inspirador. Detalhe: sou um fotógrafo frustrado, vivo fazendo cursos de fotografia, testando flashes e rebatedores, investigando técnicas digitais no Lightroom. Submeto meus amigos e visitas a sessões excruciantes de retratos com fundo preto, na esperança de uma boa foto. Queria ser um bom retratista, mas, como alguém já disse, acho que o Bob Wolfenson, um bom retrato é um milagre. Nunca acertei plenamente, mas continuo tentando. Assim, gosto de prestar atenção na fotografia dos filmes. É um prazer. Neste livro, o cinema — particularmente a pirataria de Cândido, que é um gênio da química e um nerd informático — funciona como um elo emocional do personagem com a mãe e com os amigos. Os filmes aparecem ali como entretenimento povoado de ilustrações morais e existenciais (que é mais ou menos como a esmagadora maioria das pessoas vê cinema), não como expressão intelectual especializada. Assim, evitei citar filmes famosos; são todos filmes obscuros, filmes B, desconhecidos, mais antigos, títulos que, à falta de espaço no circuito tradicional, acabam circulando no mundo unicamente graças à pirataria caseira. O sistema de streaming tem tudo para preencher esse vazio, mas ainda há pouquíssima raridade à disposição do interessado. Bem, finalmente respondendo à pergunta: sim, o cinema me influencia, mas de uma forma genérica, inconsciente. Costumo dizer que só escrevo o que eu vejo. Todo livro meu começa por uma imagem.

• O livro narra um passado bastante recente, o ano de 2019, o primeiro do presidente Jair Bolsonaro. Os comentários políticos permeiam o livro todo, naquele Fla-Flu que já é regra entre os eleitores brasileiros. A narrativa, no entanto, apresenta livremente os argumentos dos dois lados (direita x esquerda?), sem “pender” para nenhuma “tese”. Como se a narrativa em si fizesse uma espécie de mediação dos argumentos. Mais do que políticos, está faltando no Brasil eleitores menos “radicais”?
Explicar o Brasil ou o horror que está acontecendo, no calor da hora, é muito difícil. E certamente, como na queda dos aviões, nunca há uma única causa ou uma explicação universal. Para isso, há especialistas em diferentes áreas — econômica, social, moral, política, etc. — com repertório para lidar com nossa realidade concreta. Não sei se, hoje, o problema é o eleitor — o que está faltando realmente é algum governo que faça algum sentido. A ficção não tem, nem deve ter, esse papel explicativo, exceto como panfleto. Não é o caso da minha literatura. A ficção cria hipóteses de existência, representações ambíguas, vozes pessoais, sobre o pano de fundo contemporâneo, hipóteses que são partilhadas pela linguagem com o leitor. Obviamente, há um eixo narrativo que dirige o texto, que se determina pela cabeça do personagem. Cândido é o que se considera um “alienado político”, mais preocupado com o seu fracasso amoroso do que com o governo, mas a vida política brasileira de 2019 transborda com violência por todos os lados — impossível ignorá-la. Assim, sua cabeça reverbera opiniões o tempo todo. A narração absorve esse impacto.

“Os efeitos práticos e emocionais da completa estupidez do governo brasileiro diante do coronavírus terão consequências duradouras.”

• Seu livro não é propriamente sobre política, mas sobre um homem de meia-idade em crise por conta de uma paixão não correspondida. O amor e a paixão são bons gatilhos para fazer reflexões sobre diversos aspectos da vida, inclusive a política?
Acho que sim: é como se toda história, qualquer que seja o tema, fosse sempre uma história de amor, desde Adão e Eva — que, aliás, pagaram caro pela coragem da paixão.

• A literatura brasileira dá conta do que acontece na vida política do país? Ou há lacunas em nossa produção literária em relação e esse aspecto do nosso cotidiano?
Bem, a literatura não é uma espécie de Setor Oficial da Linguagem encarregado de dar conta da vida política ou de qualquer aspecto da realidade. O que aqui se chama de literatura — romances, contos, novelas, poemas, narrativas, etc. — é o produto caótico, assistemático, singular, não regular nem regulado, da ação de alguns indivíduos que, por absoluta conta própria, e sabe-se lá por quê, resolvem escrever o que, por princípio, ninguém solicitou a eles. Felizmente ainda não há Ministério nenhum determinando o que “deve” ser produzido, nem política de metas a se atingir, nem nada remotamente semelhante a isso. O que há é um amontoado de escritores, sem nenhuma relação entre si, muitas vezes detestando-se uns aos outros, escrevendo o que bem entendem. Isso posto, o conjunto desta produção heterogênea — e não cabe aos estudiosos da literatura senão esperar que ela aconteça e seja consistente — costuma ser um termômetro sensível e interessante de um tempo, de uma cultura, de uma linguagem, de uma nação. Frequentemente, este conjunto é muito mais revelador do que o ensaísmo ou a historiografia, que costumam envelhecer mais rapidamente. É mesmo uma reserva preciosa de sensibilidade, uma área peculiar da linguagem cujo objeto sempre são os outros (mesmo quando falamos de nós mesmos). A literatura sofre o efeito da sua própria história, é claro. Houve momentos em que ela foi central na cultura, uma arena de quase todas as linguagens, como no século 19; hoje ela não tem mais essa predominância. No Brasil, pode-se dizer que ela teve um papel crucial na criação de um imaginário da nação brasileira, desde José de Alencar, com um peso talvez sem paralelo em outros países. É como se ela tentasse criar um país. Em outros momentos, funcionou como uma bandeira de revelação de um Brasil profundo, como no regionalismo de meados do século 20. Em outros instantes, refugiou-se nos prazeres da própria forma, refletindo ondas teóricas francesas. Às vezes, o espírito do entretenimento toma conta; em outro momento, a discussão política assume a dianteira. Pelo que eu tenho acompanhado da produção brasileira, falando como não especialista, diria que hoje temos um pouco de tudo, do intimismo mais fechado às questões identitárias mais estridentes. Enfim, um leque amplo e literariamente saudável.

• O “momento político” do Brasil esteve presente em outros de seus livros mais recentes (A tradutora) e em alguns mais antigos também (O fotógrafo). Como você define esse “traço” de sua literatura?
É uma pergunta que também me faço. A partir de O fotógrafo, que é de 2004, pouco a pouco o contexto político brasileiro foi entrando na minha literatura de um modo mais forte e presente, embora sempre como pano de fundo, como tema paralelo. Em romances anteriores essa presença era mais tênue, como em Uma noite em Curitiba (o personagem relembrando 1964) ou O fantasma da infância (que ecoa alguma coisa dos anos Collor). Acho que são dois motivos. Primeiro, sair do casulo protetor da universidade, que é um espaço fundamental para o pesquisador e o professor, mas eventualmente ruim para o escritor, me deu algum choque de realidade, enfrentando a vida bruta aqui fora. Segundo, passar a escrever crônicas em jornal, ainda no tempo em que a Gazeta do Povo era jornal, e mais tarde na Folha de S. Paulo. Escrever em jornal foi uma experiência forte para mim; mesmo assinando somente uma coluna semanal ou quinzenal você vive sob tensão permanente. Acrescente-se aí a brutalidade onipresente da internet, e minha cabeça passou a ser puxada o tempo todo para a informação imediata, o cotidiano, a política, no meio da barulheira infernal, violenta, agressiva, o espancamento generalizado dos tuítes, zápis, facebooks, etc., que no momento pautam o mundo. Sou uma pessoa influenciável — essa algaravia começou a entrar no meu texto. Além disso, o Brasil foi descambando ano a ano ladeira abaixo, índices cada vez piores em tudo, até chegar às portas da barbárie bolsonarista. É um pano de fundo inescapável. Mas não tenho medo dele. Continuo criando minhas hipóteses de sobrevivência emocional no meio da pandemia digital.

• Cândido reflete sobre a bagunça da vida em um banco do Passeio Público, que foi o primeiro parque de Curitiba. Para o leitor que não é da cidade, esse detalhe talvez passe despercebido. Trata-se um lugar importante da capital, mas que mantém um insistente ar degradante (com sua água verde), por mais reformas que ele receba de tempos em tempos. A escolha do local teve a ver com o estado mental do professor Cândido?
Na minha cabeça o Passeio Público é um espaço mítico da cidade. Sou do tempo em que ali havia jaulas com leões. O kitsch saboroso das toras de madeira modeladas com cimento. A água sempre verde. E tem povo: é um dos poucos lugares em que ricos e pobres ainda podem se cruzar numa caminhada. Mas não sei por que coloquei aquele espaço como eixo espacial da narrativa — a figura sentada num banco do Passeio Público foi a primeira imagem que me surgiu do livro e não saiu mais da minha cabeça.

• Você é conhecido por ser um ótimo e atento leitor. Hoje, mais experiente, sente algum tipo de enfado com relação à ficção? Como administra outras leituras, como a de não ficção, por exemplo?
A ficção é a linguagem mais duradoura da história. Alguém já disse que a Ilíada permanece fresquinha todas a manhãs, enquanto a primeira página dos jornais já está velha duas horas depois. É uma frase de efeito, mas tem seu fundo de verdade. Leio permanentemente ficção, desde sempre, e tenho surtos de leitura de poesia (que funcionam com um outro ritmo). Mas também gosto muito, cada vez mais, de ler não ficção, principalmente ensaísmo, filosofia e história. Tem um toque diletante nessas leituras, que eu acho uma delícia. Às vezes enfrento leituras dirigidas, como quando escrevi A tirania do amor. Mergulhei na história do dinheiro e em questões econômicas, para dar consistência ao personagem do romance. Com A tradutora, li bastante sobre futebol, e contei com a assessoria indispensável do meu vizinho athleticano, Christian Schwartz. O difícil é administrar o tempo, que cada vez mais me parece cruel e injustamente curto.

“A frase que estou escrevendo é o que me conduz, e não uma arquitetura rígida prévia que determine a narração.”

• Há uma cena meio hitchcockiana no livro, em que um certo Cristovão aparece rapidamente em uma passagem, esperando um Uber próximo de Cândido. Isso foi uma homenagem ao cineasta inglês?
Foi uma brincadeira — dei boas risadas sozinho ao colocar meu nome naquela figura esbaforida atrás de um Uber. Mas tem um pequeno gancho temático amarrando a imagem: pouco antes, há uma cena tensa em que Cândido, Hélia e um colega cinéfilo discutem alguma coisa de Hitchcock, de modo que este pequeno fio une os dois momentos. Nossa cabeça funciona com esses pequenos elos de memória.

• Sua obra é composta por livros que foram importantes em sua carreira por diferentes motivos: Trapo o apresentou para os grandes centros editoriais, Breve espaço foi sucesso de crítica e O filho eterno é seu best-seller. Mas qual é o seu top 3? Por quê?
Como eu me considero uma pessoa escrita pelos livros que escrevi, não sou ingrato com eles — gosto de todos, a partir de Ensaio da paixão. Que, aliás, foi especial porque com ele pela primeira vez recebi um prêmio — na verdade, uma terceira ou quarta menção honrosa do Prêmio Cruz e Souza, que me deixou feliz como se fosse um Nobel. O filho eterno foi um impacto para mim, em todos os sentidos, inclusive por me permitir largar a universidade, quando meu projeto acadêmico já estava esgotado. Um erro emocional me abriu um novo caminho na linguagem, de que eu nem suspeitava. E considero A tensão superficial do tempo o meu romance mais completo.

• Alguns escritores que já estavam estabelecidos quando você estava iniciando a carreira estão morrendo. Sua geração está de certa forma substituindo esses autores. Consegue ver características claras nesses grupos de escritores?
É sempre difícil classificar a produção literária ao longo do tempo; o crítico tem de buscar amarrações temáticas, culturais, mesmo políticas e econômicas para chegar mais ou menos a um painel representativo homogêneo. Quem não é especialista, não trabalha direta ou profissionalmente com o tema (que exige um repertório sistemático de leituras, o que não é meu caso), acaba fazendo classificações intuitivas para uso próprio. Bem, também tenho a minha. Eu divido o panorama literário brasileiro que acompanhou minha vida em três partes. A primeira é a produção brasileira clássica do século 20, a da minha formação de leitor, que vai até meados dos anos 1970: digamos, ao acaso da memória, Graciliano, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Clarice, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego; na poesia, Drummond, Bandeira, Cabral, Cecília Meirelles. Pode-se dizer que este é o período clássico da produção literária brasileira do século 20, e nesta faixa incluo autores como Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, porque a literatura deles está ainda vinculada a esta herança. O leitor certamente vai acrescentar dezenas de nomes a esta lista ligeira — o que me parece comum a todos é a imagem de um Brasil ainda mais rural que urbano, mas que começa a inverter o cenário. O segundo momento, dos anos 1970 à virada do século 21, representa uma fratura temática e cultural profunda, a partir de dois fatos que mudam o perfil do país: a urbanização selvagem e, em seguida, o advento da internet. E, culturalmente, o peso crescente da universidade na criação de uma pauta literária brasileira. Durante a ditadura, a universidade vai se tornar o refúgio do escritor (o que não acontecia antes), e isso terá consequências importantes. E, num terceiro momento, já dos anos 2000, começa a surgir uma nova geração não mais vinculada à memória da ditadura e à pauta literária e cultural daquele tempo. As questões identitárias passam a ser dominantes. As mulheres, a cultura negra e a diversidade racial, por exemplo, ganham uma presença muito mais forte e ativa do que nas décadas anteriores. Ao mesmo tempo, a própria geografia da literatura brasileira se globaliza (escritores brasileiros começam a escrever com frequência sobre cenários estrangeiros, o que é uma novidade) e se urbaniza profundamente: a cidade passa a ser quase que o espaço universal da ficção. Como sou uma pessoa antiga, atravessei esses três momentos. Mas, como eu disse, é uma divisão para uso próprio, talvez mais útil para uma boa conversa com cerveja do que para fechar questão. Que, aliás, não se fecha nunca.

• Dalton Trevisan, seu vizinho, está com 95 anos. Como imagina que será sua velhice (e sua escrita quando chegar lá)?
Bem, antes de mais nada, espero chegar lá com boa saúde. Até aqui, tudo bem, mas o ruim deste filme é que a gente já conhece o final. Aprendi a não fazer previsões de nada: vou me cuidando e tocando o barco, como todo mundo. Espero sempre ler, escrever, ver filmes, fotografar e receber amigos.

• Que escritor vivo você mais admira? Por quê?
Pois acho que meu vizinho Dalton Trevisan, um vulto sempre próximo, a quem li a vida inteira e que só encontrei pessoalmente três ou quatro vezes, à maneira curitibana. Sobre ele, relembro a frase com um toque quase bíblico que, faz quarenta anos, ouvi de Jamil Snege: “Dalton Trevisan é incontornável”.

>>> Leia texto de Miguel Sanches Neto sobre A tensão superficial do tempo

A tensão superficial do tempo
Cristovão Tezza
Todavia
272 págs.
Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

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