Romance da República de Curitiba

“A tensão superficial do tempo”, de Cristovão Tezza, recria a experiência de viver um presente imediato que não sai do lugar
Ilustração: Cristovão Tezza por Fabio Abreu
02/09/2020

A distância entre os telejornais e a literatura praticamente desapareceu. A pressão do presente sobre os textos de ficção obriga o escritor a falar de um agora ainda em processo, em uma politização imposta pelo momento histórico. A literatura, assim, vai sendo engolida pela não-ficção. Enquanto as editoras suspendem lançamentos de ficção, há uma busca por reportagens e ensaios que se querem filosóficos, com chaves de interpretação deste estranho país tipificado pelo folhetim de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias (1853), em que a trajetória para a polícia, ou seja, para a suposta ordem, é feita a partir da malandragem e das conexões com o crime. O marginal e o oficial se confundem num país obcecado pela tradição repressora dos aparelhos de Estado.

Com o romance A tensão superficial do tempo, Cristovão Tezza se vale da República de Curitiba — o aparato jurídico nascido na capital paranaense e que mudou o cenário político nacional, levando-nos ao que passamos hoje — para espelhar discursos em oposição no contexto atual. Lemos a história do professor de química Cândido como quem ouve o noticiário, acompanha as declarações insensatas do presidente da República ou se constrange com conversas de colegas fascistas. Há uma sobreposição do nosso cotidiano indignado e da experiência de nossas relações com as redes sociais e da leitura deste livro.

Desde seus primeiros romances, Cristovão Tezza criou uma recusa à oficialização em nosso país. O Estado, nesta ótica, seria o abrigo de covardes e carreiristas, funcionando como inimigo maior do artista e do cidadão independente. Já em O terrorista lírico (1981), a luta se dava contra o sistema, e isso permanece em seus livros de forma mais ou menos velada. Agora, o sistema está representado por um grupo retrógrado, catapultado ao poder pelas ações da Lava Jato. Ou seja, Curitiba, pelo judiciário, projeta o pior grupo ao centro do poder. É nesta perspectiva que devemos ler o novo romance de Tezza.

Órfão adotado por um militar às vésperas da morte para garantir a aposentadoria da jovem esposa, Cândido é fruto desta imoralidade previdenciária, símbolo de um privilégio próprio da carreira militar. Depois do relacionamento errado com uma poeta, ele se torna sócio de uma escola para preparar vestibulandos, usando o dinheiro materno oriundo dos cofres públicos. Nesta escola (que cifra outra tensão: iniciativa privada versus o funcionalismo público), ele conhece uma aluna cujo pai é um dos cavaleiros do apocalipse do judiciário paranaense e que está prestes a assumir um cargo no governo Bolsonaro.

Cândido, nome irônico que remete ao brasileiro como homem cordial, tem por hobby piratear filmes para a mãe que, desde que recebeu por artimanha a aposentadoria pública, não precisou mais trabalhar e pôde viver ociosamente. O hacker caseiro abastece a viúva do militar, que revela uma preferência generalizada entre nós: “Eu gosto só de filmes que, mesmo inventados, sejam reais. Eu gosto de re-a-li-da-de. Pão, pão, queijo, queijo”. Esta fala aparentemente simplória nos coloca diante de um consumo apenas da arte que se ajoelha reverencialmente ao real.

Além de denunciar as forças atuantes neste momento de polarizações, sem simplificar as tensões, Tezza faz, paralelamente, uma defesa da arte, ao contrapor ao mundo tacanho da política o cinema como um espaço de descobertas.

De sua devoção à mãe, Cândido passa à devoção a uma mulher mais velha, a segunda esposa do procurador federal Dario, a quem leva filmes baixados clandestinamente, conspurcando a casa de um dos “fanáticos pela lei”. Ao entrar em contato com este poderoso integrante do judiciário, descobre os seus vícios, desfazendo assim a aura de santidade que se colou a este grupo.

O romance acontece em três núcleos: a escola, a casa de Cândido e a casa de Antônia, mulher do procurador. E a técnica usada por Tezza é a da polifonia. Várias conversas ou memórias que se emendam sem uma ordem, em um livro que é um contínuo narrativo de fragmentos que vão e voltam. Aos poucos, conhecemos os personagens, que comentam a política brasileira com posições em confronto. Esta estrutura tumultuada de discursos sobrepostos nos coloca em contato com falas marcadas pelas platitudes do momento político, seja na defesa do presidente, seja na sua recusa. Os lugares-comuns do grande murmúrio da internet fundamentam as opiniões, de tal forma que nos vemos na realidade e não no romance.

Além de denunciar as forças atuantes neste momento de polarizações, sem simplificar as tensões, Tezza faz, paralelamente, uma defesa da arte, ao contrapor ao mundo tacanho da política o cinema como um espaço de descobertas. E aqui não há como não lembrar de Homem no escuro, romance de Paul Auster, em que o narrador em primeira pessoa revive na velhice, pela memória e pelas conversas com a neta, os filmes vistos.

Se, para a mãe de Cândido, o cinema pode ser passatempo, algo necessário a quem nunca precisou ganhar a vida, para Antônia é uma forma de contato com a arte em seu mundo frio, próprio da esfera do judiciário em torno da qual ela orbita. Este espaço da imaginação cativa Cândido, que depois será descartado por Antônia, pois esta prefere o casamento oficial (extensão da condição de funcionária pública bem remunerada) em vez do amor clandestino, e o leva a experimentar-se como mendigo. Ele então conhece o outro polo, o da população excluída (de onde ele veio, pois foi adotado), mesmo que apenas momentaneamente.

Esta Curitiba da Lava Jato é um lugar inóspito: “não há nada a se fazer em Curitiba, exceto ver filmes e pedir pizza por telefone”, desabafa Antônia, que era de São Paulo — esta frase ecoa Dalton Trevisan. A monotonia está representada no romance, que gira em torno de repetições, de falas chochas, de comentários rasos, de explicações técnicas sobre como baixar filmes. A carência de enredo é mais um sinal desta falta de imaginação que tomou conta de tudo, o que leva a narrativa a patinar sem que os fatos avancem. Romance mais de comentários, de vozes soltas, justaposições de tempos e personagens, A tensão superficial do tempo precisa ser lido a partir das intenções de sua forma. Ele recria esta experiência de viver um presente imediato que não sai do lugar.

A inflação de comentários, responsável pelo efeito polifônico, causa uma deflação de enredo, que trava a leitura e nos coloca neste agora interminável vivido como pesadelo em um romance mais falado do que narrado. Ao focar os debates rasos sobre o Brasil bolsonarista, Tezza fotografa de maneira perversa, mas nem por isso indevida, uma Curitiba como resumo da mediocridade nacional, da qual ela se fez um epicentro desastroso.

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A tensão superficial do tempo
Cristovão Tezza
Todavia
272 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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