Sob o sol dos trópicos

Para o jornalista e ensaísta Sérgio Augusto, os espíritos críticos perderam de vez o seu espaço nas redações brasileiras
Sérgio Augusto, autor de “As penas do ofício”
01/05/2007

Para levantar uma questão cara ao próprio Sérgio Augusto, não é exagero dizer que seu trabalho e seus ensaios sobre jornalismo cultural poderiam servir como provas de que o calor dos trópicos não constitui desculpa cabível para a baixa atividade intelectual percebida no Brasil. Assim, nesta entrevista — concedida via e-mail —, o jornalista carioca se reafirma num papel que já vem desempenhando há quase cinco décadas: o de observador crítico de sua época e de tudo que lhe pareça nocivo ou equivocado. Cético confesso — mas dificilmente um pessimista patológico, já que costuma propor soluções aos problemas que discute —, Sérgio Augusto, ao responder a uma pergunta, também não foge de uma de suas características mais pessoais: sugerir novas questões, novas maneiras de analisar os temas sugeridos, novos ângulos de onde estudar e atacar cada tema. Portanto, cada uma de suas respostas abre outras possibilidades de debate. Concorde-se com ele ou não. Confira abaixo o que S.A. pensa acerca do sistema educacional brasileiro, da indústria e dos jornalistas culturais de hoje e quais seriam, para o ensaísta, os principais tópicos de preocupação dos intelectuais contemporâneos.

• Na edição de abril do Rascunho, Ana Maria Machado declarou que a mídia seria um “caso perdido”. Nesta edição de maio, Michel Laub diz perceber uma aproximação entre a imprensa atual e certas formas de academicismo, no sentido de que tanto os jornalistas quanto os acadêmicos nada afirmam sem antes consultar autoridades e especialistas. Você concorda com esses dois pontos de vista? Quando você começou sua carreira, essa situação já era previsível?
Concordo com a Ana, que, aliás, é minha amiga mais antiga. Fizemos juntos o jardim-de-infância numa escola pública de Santa Teresa, a Montmartre do Rio de Janeiro. Para nosso orgulho, a escola, que permanece no mesmo lugar, chamava-se — e ainda se chama — Machado de Assis. Quanto à situação exposta pelo Michel, ela não era previsível há 46 anos. Quando me iniciei no jornalismo profissionalmente, em novembro de 1960, com 18 anos de idade, depois de alguns anos de imprensa estudantil, havia mais de dez jornais no Rio; não faltava emprego. Suas tiragens eram baixas se comparadas às que hoje têm Folha, Estadão e O Globo, mas seu público era qualificado e pelo menos dois deles, Correio da Manhã e Jornal do Brasil, repercutiam nacionalmente. Como a televisão ainda engatinhava por estas bandas, a imprensa escrita reinava absoluta, dando-se o luxo de manter rodapés literários e conceder generosos espaços para o exercício da crítica. Havia os suplementos literários do Jornal do Brasil (o legendário SDJB), da Tribuna da Imprensa (editado pelo Mário Faustino) e do Estado de S. Paulo e a revista Senhor. E dois dados fundamentais: os jornalistas tinham uma formação mais sólida (porque a qualidade do ensino, desde o básico, era incomparavelmente superior à de hoje); e a indústria cultural, relativamente incipiente, exceto no cinema (leia-se Hollywood), tinha um relacionamento quase que vassalar com os jornais e as revistas. Ou seja, o oposto do que hoje acontece — o oposto antipodal, como diria Antônio Houaiss, que era um dos editorialistas do Correio da Manhã quando lá entrei. Qual redação possui ou pode hoje possuir em seus quadros de editorialistas intelectuais como Houaiss, Otto Maria Carpeaux, Carlos Heitor Cony, José Lino Grünewald, Antonio Callado e Luiz Alberto Bahia? Pois era esse o time de editorialistas do Correio da Manhã, no início dos anos 60. O Correio chegou a ter, entre os seus revisores, Graciliano Ramos e Aurélio Buarque de Hollanda.

• Os críticos e jornalistas culturais, para Balzac, seriam de três tipos: o negador (um polemista em busca de destaque), o farsante (um “fazedor” de artistas) e o incensador (um redator de panegíricos à caça de favorecimentos pessoais). Essa segmentação ainda se aproximaria da realidade?
O negador, o polemista em busca de destaque, existe mais na internet, sobretudo na blogosfera, reduto privilegiado de fanfarrões e narcisistas, cheio de caricaturas do Paulo Francis. Na mídia escrita, o buraco é mais embaixo: há um controle direto e sistemático por parte dos editores e, com o mercado de trabalho cada vez mais fechado, ninguém se arrisca a desagradar os seus superiores hierárquicos nem atrair a ira dos que produzem cultura (músicos, atores, cineastas, etc.). Os espíritos críticos não têm vez nas redações de hoje — e os iconoclastas menos ainda. Para piorar, os jovens despreparados e, até por isso, inseguros, que há tempos abarrotam nossas redações e praticamente monopolizam o exercício da crítica, receiam que um comentário mais duro possa prejudicá-los, bani-los das sessões em cabines, pré-estréias e shows e das listas dos que recebem livros, CDs e DVDs de graça. Esses são mais “incensadores” do que “farsantes” e, em alguns casos, uma fusão desses dois estereótipos balzaquianos.

• Em Penas do ofício, você diz que o grande tema para o século 21 é a educação, e até aponta alguns caminhos para aprimorá-la em nosso país. Mas, em entrevistas recentes, mostrou-se extremamente cético em relação a possíveis melhoras, e já disse considerar a decadência do jornalismo cultural um caminho sem volta. Será que os editores e jornalistas do futuro, se criados em um sistema educacional menos deficiente, não seriam menos “jecas”, como dizia o Paulo Francis?
Meu ceticismo é justificado e realimentado diariamente pelo noticiário, pelos dados estarrecedores de nossa indigência educacional. Mas é de se esperar que, com jornalistas criados num sistema educacional de primeira linha (“menos deficiente” é muito pouco para as nossas atuais necessidades), a imprensa e tudo mais melhorem, incluindo aí os leitores, que deverão crescer em quantidade e qualidade. Mas isso ainda é um sonho distante, se é que um dia deixará de ser um sonho. E os jornais podem morrer antes.

• A indústria cultural comanda as editorias de cultura. A que se deve essa entrega dos editores?
Em parte ao despreparo da crítica e da mídia especializada. Em parte à crise da imprensa, que, na ilusão de conquistar leitores, ou, pelo menos, de não perder os que conseguiu manter, passou a imitar a superficialidade televisiva (textos curtos, um parágrafo a cada duas frases) e a se curvar à vulgaridade, ao gosto rombudo das massas precariamente alfabetizadas e muito, muito ignorantes mesmo. Estão todos perdidos, atônitos, servindo mal aos leitores que deveriam cultivar, sem conquistar aqueles irremediavelmente convertidos à dieta televisiva e ao trinômio celebridade-sexo-fofoca, a santíssima trindade do jornalismo tablóide.

• Sabe-se que você não é favorável à obrigatoriedade do diploma jornalístico. Nunca, porém, esse assunto foi tão discutido quanto agora. Por que uma questão como essa ganha tanta importância, hoje, nas redações e nos sindicatos?
Porque mexe com a classe, ora. Considero esse assunto enfadonho e irrelevante. Preferi estudar filosofia e aprender jornalismo na redação. Prefiro um bom profissional sem “canudo” ou que tenha sido obrigado a comprar seu diploma de jornalista a um mau profissional diplomado e até mesmo doutorado em comunicação.

• Em seu ensaio sobre Susan Sontag, A patrulheira da decadência, você a cita como uma “intelectual modelar”. Entre as características que deram a ela esse status, estariam a preferência pela ação concreta e o repúdio à mera assinatura de manifestos. No seu livro, você também demonstra simpatia pela intensa atividade militante de Mário Lago. Em quem você percebe essas qualidades, hoje, no Brasil?
Militantes até que temos, mas nenhum intelectual do nível de Susan Sontag, infelizmente. Emir Sader, concorde-se com ele ou não, é um exemplo de intelectual e agitador político raro entre nós.

• Acreditava-se, antes do ano 2000, que o sucesso de Paulo Coelho estaria ligado à onda de misticismo que se agigantava com a chegada do novo milênio. A hipótese não vingou. Hoje, Coelho continua vendendo muito bem. Mas o misticismo que embala essa grande massa de leitores acabou ganhando um verniz pseudocientífico. O segredo, de Rhonda Byrne — com sua anunciada mistura de física quântica, filosofia, religiosidade e auto-ajuda — já se transformou no maior fenômeno editorial do mercado norte-americano. O que isso representa?
Que os imbecis e os cretinos, e não os humildes, poderão herdar a Terra. Não deveria me espantar mais, mas ainda me espanto com a recrudescência do irracionalismo em todo o mundo. Em suas múltiplas manifestações: a exuberante desfaçatez dos neoconservadores, a crença generalizada em dogmas e superstições, em gurus orientalistas e vigaristas new age, em seitas religiosas e políticas, em anjos, duendes, óvnis e abduções por alienígenas, na força de ervas, cristais e cartas de tarô. Sem falar na proliferação de líderes mundiais ligados em horóscopos e crendices afins, nos profetas do apocalipse e do “fim da história”, nos marqueteiros da economia de mercado, nos engodos do pós-modernismo, nos mascates de esotéricas técnicas de autogestão e consultorias feng-shui, na balela da psicologia alternativa e dos receituários de auto-ajuda, no culto à Lady Di, no criacionismo, no fanatismo escatológico dos terroristas islamitas, nas telesséries sobrenaturais em constante proliferação, nos pingentes mágicos e banhos de lama do casal Tony Blair, no evangelismo safado de Bush. Debochar disso tudo é obrigação de toda pessoa séria.

• Em Tão longe, tão perto, você fala de um “Mercosul de idéias e ideais”. Será que o prestígio crescente de políticas populistas na América Latina — como o “novo bolivarismo” de Chávez — pode atrapalhar um possível e concreto projeto de união e fermentação cultural entre os povos latino-americanos?
Pode atrapalhar, sim. Porque o populismo é uma praga, um obstáculo a qualquer tentativa de renascença cultural, um atraso de vida. Impossível dissociar o populismo da demagogia. Não é fermento, é gás paralisante.

• Numa entrevista à Gazeta do Povo, você disse que os textos que escreve não teriam “valor de mercado”. E, noutra entrevista, para o site Digestivo Cultural, disse que, se tivesse que começar sua carreira hoje, “tentaria o impossível”: escrever bons romances que lhe rendessem algum dinheiro — o suficiente para não ter que bater à porta de redações jornalísticas. Como seriam esses romances? Ou melhor: que tipo de texto teria valor de mercado para o leitor atual?
Não sei como seriam os meus romances, que quase certamente jamais escreverei, por pudor e, mais do que isso, por falta de tempo e até mesmo de idéias sugestivas. Os valores de mercado não me interessam. Se me interessassem e fosse segui-los, acabaria escrevendo um romance igual aos que me recuso a ler. Adoraria ter o talento necessário para escrever algo do nível de Quase memória, do Cony, ou Desonra, do J. M. Coetzee, que foi o romance que mais me tocou nos últimos anos.

• Quais são os grandes ficcionistas da atualidade?
Tenho um velho xodó pela literatura de língua inglesa: Graham Greene, Muriel Spark, Coetzee, Ian McEwan, David Lodge, Philip Roth. Detesto fazer listas, hierarquizar obras e criadores, mas, já que peguei o embalo, destaco, sem ordem preferencial, o argentino Ricardo Piglia, o chileno Roberto Bolaño, o anglo-alemão W. G. Sebald e os poloneses Adam Zagajewski e Slawomir Mrozek.

• Voltando à Susan Sontag. Em Questão de ênfase, ela reproduz uma entrevista que deu à revista literária francesa La Règle du Jeu. Entre as várias boas perguntas que fizeram a ela, está a seguinte: quais são as tarefas mais urgentes, os preconceitos mais perigosos e as causas mais importantes para o intelectual de hoje? O que você responderia?
Tarefas mais urgentes? Procurar, por todos os meios ao nosso alcance, melhorar o nível das pessoas, educá-las, ilustrá-las, interessá-las pelas mais nobres e redentoras atividades do espírito e fazê-las envergonhar-se de terem assistido ao Big Brother sem vomitar. Combater, tenaz e implacavelmente, a mediocridade, os clichês, o culto à frivolidade, a preguiça mental, o farisaísmo, o corporativismo e qualquer gesto ou ação que ponha em risco a liberdade de expressão. Preconceitos mais perigosos? Os de natureza racial, o que fez do elitismo um palavrão (elite é o que há de melhor numa sociedade, não se esqueçam), a xenofobia e a certeza de que o ser humano é melhor que os animais. As causas mais importantes? As que lidam com a questão ambiental, a fome, a violência, as desigualdades sociais e a ignorância.

• Para finalizar, pegando uma carona no ensaio de abertura de seu livro, Deus joga dados?, que grande questão cultural, atualmente esquecida, merece ser novamente posta em pauta?
Até que ponto o calor dos trópicos é um empecilho à atividade intelectual?

LEIA RESENHA DE AS PENAS DO OFÍCIO

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

Rascunho