Passeio entre minas e flores

Renato Rezende percorre as ruas do Rio de Janeiro, numa poesia universal, a carregar o homem e suas inquietações por todas as esquinas
Renato Rezende: “A poesia é uma puta que dá para qualquer um, para quem quiser”
01/05/2002

A poesia é um campo minado, por onde o poeta caminha com olhos estalados nos próprios pés e no horizonte. Muitos olham para pés alheios e tentam seguir seus passos. A morte é inevitável na mina que se esquecera de explodir. Outros, mais afoitos, tentam abrir caminho, como líderes entorpecidos, e seus corpos mutilados também deixam um rastro de sangue. Muitos, apenas manquitolam após o passo em falso no terreno perigoso. Lá no horizonte, poucos espraiam-se num sorriso de alívio. São poucos diante do total de aspirantes, mas muitíssimos diante do cético pessimismo que domina essa guerra. Não se deixar dominar por esse pessimismo que apregoa a derrocada da poesia é, também, a missão de quem ultrapassa as infinitas batalhas. Infinitas, portanto, eternas.

A poesia é um campo de flores, por onde o poeta caminha com olhos estalados na beleza que o cerca. A fragilidade dessa beleza mede-se no equívoco, transfigurado ou maculado em genialidade que, quase sempre, beira o charlatanismo e a mentira deslavada. Surgem os “mestres” da métrica salvacionista ou reducionista (neste caso, reduz-se a capacidade poética a um palavrear sem nexo — a pretensa genialidade está oculta na ignorância de quem a almeja; o hermetismo — nem sempre, é verdade — é apenas subterfúgio para os fracos e títeres de uma arte muito maior que eles mesmos), com suas novidades cósmicas, rodeadas de um imenso vazio. A poesia passa-nos a impressão da facilidade e, por isso, muitos mergulham, imaginando-se em suas profundezas, mas apenas debatem-se na superfície, com os olhos turvos vislumbram somente o pouco que lhes é permitido alcançar, apenas sonhando com os mistérios que esse mar esconde em sua imensidão. Eis aí a proliferação de versos sob a égide da democracia cultural. Podem estar aí, mas nem por isso seremos complacentes com a mediocridade. A diferença entre o artesão e o artista está, também, na sutileza dos olhos.

Ao poeta (o verdadeiro) cabe uma viagem em busca de si mesmo. Nada mais natural, quando se fala de uma arte, pois esta deve sempre estar voltada para o homem, mesmo quando extemporânea. Toda arte é o homem. Renato Rezende — artista em vários fronts: poeta, pintor e tradutor (esta também é uma arte; alguém duvida?) — sabe o quanto são importantes (ou na medida de sua vulnerabilidade) o homem e o mundo que o cerca em Passeio, que reúne poemas escritos entre 1997 e 1998. O campo minado é a cidade do Rio de Janeiro, apenas um símbolo para dar universalidade a uma poesia que coloca o homem e suas inquietações como o centro de uma poética para o presente, sem esquecer que o futuro é logo ali; na esquina, talvez: “A cidade eterna e efêmera/ navega em si mesma/ (comigo em seu seio) (p. 62), do poema Mercado de frutas.

A cidade carrega o poeta, que se aninha em seus braços para disseminar todo um mundo que faz dele, o poeta, um personagem de um mundo em busca de respostas. Estas jamais concretas, mas carregadas de significados que ajudam a aumentar a necessária angústia para a evolução. Rezende busca a compreensão, as respostas para o mundo que o envolve e o embala. Para isso, usa a cidade como um porto que sustentará uma descarga tão grande de interrogações e afirmações desprovidas da arrogância verborrágica de muitos. O poeta destaca-se no turbilhão poético, que tenta nos engolfar, pela simplicidade empregada em seus versos que, todos, como alerta Ferreira Gullar, “brotam do chão como água; e o que dizem é aparentemente simples, mas não ingênuo. É uma poesia que nasce da reflexão sobre o viver natural”. Aqui reside a grande poética de Rezende: a sua simplicidade — sem estar mascarada — é de uma pujança arrebatadora. Os versos fluem como os passos apressados do office-boy pelo calçadão de Copacabana, mas sem esquecer de dar uma espiada na beleza do mar que o convida a um mergulho, pois “tenho o coração aceso (p. 68), do poema No lixo).

É com o coração em chamas que Renato Rezende dobra esquinas com dúvidas a latejar nas mãos. Ele repassa dúvidas e certezas ao leitor com a voracidade de quem tem pressa e tempo em quantidades exatas para a vida. A poesia de Passeio, portanto, é segura e capaz de causar a agradável sensação de inquietude, tão necessária a qualquer arte. A vida, como não poderia ser diferente, é o cerne que sustenta os versos: “Um dia estaremos mortos,/ mas por enquanto/ estamos aqui/ estamos aqui, presentes/ e o mundo é ainda nosso” (p. 64), de O sono. A preocupação com o mundo que cerca o homem é constante e, por isso, o poeta precisa mergulhar cada vez mais fundo: “Me misturo ao mundo absurdo,/ como do mundo, e me pergunto/ onde mais encontrar comida/ que sustente espírito e músculo” (p. 85), de O bicho.

É certo que a poesia de Rezende está encharcada de um pessimismo inevitável (olhemos ao redor e nos alegremos; impossível). Mas tal pessimismo não é lamento choroso que invade o poeta medíocre. O pessimismo em Rezende é mais uma alternativa na busca de respostas. Não está atrelado ao enfado criado à lamúria fácil que grassa por aí, porque o poeta carrega “dentro de mim, esquecido,/ o filho dos meus pais,/ o que um dia foi amado,/ o que foi querido”. (p. 93), de Para uma cruz na estrada. É nesse passeio pela cidade — aqui o Rio de Janeiro — que Rezende encontra-se consigo mesmo e com sua realidade cheia de dúvidas. Neste encontro, busca a poesia e a encontra na esquina, sem esquecer que na próxima quadra há um campo minado ou de flores à sua espera.

Em Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira diz ter descoberto o segredo de sua poesia, ao mergulhar nas reminiscências da infância e aí encontrar “um conteúdo inesgotável de emoção”, que seria utilizado pelo poeta em sua vasta obra. O segredo da poesia estaria fora de si mesma e entranhada na pele de cada poeta?
Não me lembrava desta revelação do Bandeira, que sem dúvida como ninguém soube explorar poeticamente o assombro infantil, incorporando-o ao arsenal da poesia adulta, erudita. Rilke, outro poeta que eu admiro muito, disse algo parecido. Que, se faltasse o que dizer, sempre haveria inspiração na infância. “O conteúdo inesgotável de emoção”. Eu ainda não sei exatamente nem o que é poesia, para poder afirmar se seu segredo está fora ou dentro. Se é que ela tem algum segredo. Cada poeta teria uma resposta para isso, e todas seriam válidas. O próprio conceito de poesia, os valores estéticos, mudam com o tempo. A poesia romântica, por exemplo, tende a colocar o valor estético no conteúdo, “entranhada na pele de cada poeta”, enquanto que a poesia parnasiana faz o contrário, coloca o valor na forma. O modernismo rompeu com esta dualidade entre forma e conteúdo, entre poesia “maior” e “menor”, uma dualidade que parece Ter inexplicavelmente ressuscitado da cova — talvez porque nossa nação não tenha sido capaz de digerir com maturidade as portas abertas pelo modernismo. Pessoalmente, costumo me definir, brincando, como “platônico, barroco, romântico, surrealista”. Ou seja, identifico-me com aqueles que enxergam na poesia um processo espiritual e quase religioso, uma tentativa de conexão com algo superior e maior que todos nós, seja esse “algo” chamado de Deus, inconsciente coletivo, ou qualquer outra coisa. Buscar a infância é buscar a origem, procurar compreender-se. Acredito que, fundamentalmente, esta busca está na raiz da formação da linguagem humana e, principalmente, do seu aspecto mais sofisticado, a poesia. Mas isto é um princípio que eu adotei, uma convicção minha, e não faço dela uma bandeira. O que acontece é que a poesia é uma puta que dá para qualquer um, para quem quiser. Não adianta tentar cercá-la com regras e teorias. Vivemos num momento histórico de comunicação de massa, de experiências plurais, de identidades plurais, e é claro que a poesia vai necessariamente refletir isso. Há lugar para todos, há leitores para todos. Nesse sentido, as vanguardas morreram, cumpriram seu papel histórico e se esvaziaram, pois agora já estamos no mar da pluralidade. Existirão sempre, sim, inovações, pesquisas de linguagem, mas um movimento literário sobrepondo-se sobre outro, em termos de valor, não. Querer ser vanguarda, querer-se à frente e acima dos outros, é ser conservador.

• No poema O Bicho, de Passeio, você diz que “sou uma alma em sua jaula”, numa clara referência à angustia que nos ronda todos os dias, principalmente a do fim. De que maneira a poesia liberta e aprisiona o poeta (e, claro, carrega consigo alguns leitores)?
Eu já disse em algum lugar que escrevo para não ficar louco. Assim sendo, a poesia ao mesmo tempo me liberta e me aprisiona — ela me salva, mas eu dependo dela. Sou um obcecado em chegar ao fundo de mim mesmo, ao fundo de tudo, em ver a cara do Nada, em voltar à origem. Ou, na moeda reversa, em chegar ao mais alto possível, em alcançar o estado dos santos, dos iluminados. A poesia me ajuda neste processo, pois através dela vou me entendendo, vou nomeando novos territórios, mas ela é quase que um subproduto, um mapa necessário, um resíduo material que fica…. se servir para mais alguém, tanto melhor. A poesia dos outros com certeza me ilumina o caminho, mesmo, ou principalmente, a daqueles que por fim enlouqueceram, como Hölderlin. Mas nada, ao fim e ao cabo, liberta ou aprisiona. Vivemos numa época profana, há muito Deus deixou de ser um ponto de referência, e a própria “Arte”, com A maiúsculo, está perdendo a aura que ganhou desde o Renascimento. Hoje em dia, a arte é um produto como qualquer outro, perdeu seu aspecto mágico, místico — e, portanto, não pode salvar. A arte está ao rés do chão. Mas, é claro, sobrevive, mesmo em seus aspectos mais misteriosos, mais distantes do entertainment da indústria cultural, da mesma forma que Deus, oficialmente morto há mais de um século, nunca esteve tão vivo no desespero das pessoas. Porque viver é muito difícil, e se faz cada vez mais difícil. No entanto, essa profanização geral da cultura tem aspectos muito positivos, porque desmistifica dogmas e simplifica o entendimento das coisas. Não acredito que o passado foi melhor do que é o presente, nem que as coisas estejam indo de mal a pior — embora seja esta a postura da maior parte de nossa elite intelectual, inclusive daqueles que proclamam a superioridade de sua “vanguarda”. Viver está cada vez mais difícil porque temos cada vez mais liberdade, e a liberdade atordoa as pessoas. Somos milhões de pessoas no mundo, cada um de nós não faz diferença nenhuma, nossas opções pessoais não abalarão a máquina do mundo. Portanto, tirante as malditas diferenças de classes que escravizam alguns, podemos, de modo geral, escolher o estilo de vida que quisermos, a identidade sexual que quisermos, a profissão que quisermos, a religião que quisermos. Podemos escolher botar a mão na massa da chamada “realidade”, ou escondermo-nos no mundo virtual, sem nunca ver ninguém. Irrita-me sentir a necessidade de escrever, irrita-me preocupar-me com o que os outros vão achar da minha poesia. Minha ambição secreta é divorciar-me da literatura.

• Passeio coloca o homem como coadjuvante e ator principal ao mesmo tempo a deambular por uma cidade — nesse caso, o Rio de Janeiro. Nota-se que desse passeio tiram-se conclusões que vão de uma alegria contagiante a um pessimismo aterrador. A cidade se sobrepõe ao homem e o engole ou apenas serve como cenário de uma passagem necessária e desoladora? E quem não carrega no “peito um coração aceso” (poema No lixo) tem sérios problemas a enfrentar em uma “cidade eterna e efêmera/ navega em si mesma/ (comigo em seu seio)” (poema Mercado de Frutas)?
A cidade é um espaço extraordinário, promíscuo, um enorme corpo vivo cujas células somos todos nós. A passagem do mundo rural para o mundo urbano á algo que continua marcando o ser humano, e a cidade parece que ainda não foi totalmente assimilada por nós como espaço de vivência comunitária, malha que é de várias comunidades e tribos. E antes mesmo de acabarmos de compreender a cidade já nos lançamos num labirinto ainda mais fascinante: o mundo virtual, a www. O mundo se torna cada vez menos “real”. Por exemplo, no campo, numa vida rural, as palavras mais usadas são: terra, arado, chuva, colheita, milho, vaca, etc. Na cidade, as coisas são trabalhadas pelo homem, mais distanciadas da natureza: dinheiro, ruas, emprego, computador. É incrível o que o homem pôde construir, partindo de paus, pedras e árvores. No mundo virtual, o próprio corpo se faz desnecessário, tudo é conceito. Neste sentido, o eu lírico de Passeio é um personagem extremamente contemporâneo, ou “pós-moderno”, pois falta a ele uma identidade fixa, uma realidade que o convença e que possa fixá-lo a alguma coisa: Me despeço do meu destino./ Sou metade vazio/ e oco no meio/(a melhor parte de mim mesmo/ onde sou mais inteiro)./ Me espero no que restará/ do fundo do meu próprio abismo.// O sol no mar infinito. No entanto, é verdade, num outro momento esse mesmo eu lírico proclama: Sou ninguém/ mas tenho o coração aceso. A única realidade possível, crível, é a experiência de ser.

• A sua poesia é desprovida de uma verborragia tão comum a alguns poetas (em tempo: verborragia e artificialismo amam andar de mãos dadas). Você opta por versos que deslizam tranqüilos para mostrar os percalços diários. Por que essa opção?
Procuro fazer uma poesia que seja antiliterária, o que não quer dizer que seja uma poesia fácil. Muito pelo contrário. Dentre as resenhas que saíram na mídia sobre o meu Passeio, alguns críticos sensíveis notaram que é um livro para ser relido várias vezes, pois talvez seja apenas numa segunda ou terceira leitura que o leitor perceba que por trás daquela aparente simplicidade, por trás de uma aparente superficialidade, exista um nível elevado de sofisticação e profundidade. Desta forma, eu poderia ser chamado de falso naif. Apenas faço uso de uma dicção naif, que uma leitura rápida pode considerar até piegas, mas não é nada disso. Procuro ser antiliterário porque não gosto de “literatura”, todo aquele aparato que os escritores e poetas usam para fazer do seu texto algo “especial”, “inteligente”, “significativo”. O embate com a linguagem está embutido na falsa simplicidade crua dos meus textos; não me engano, como sinto que se enganam muitos poetas contemporâneos, que fazem de sua própria dificuldade de expressão uma poética, dando muita importância aos processos de linguagem, ou que, por outro lado e pior ainda, assumem uma voz artificial, muito “alta” ou esculpida à moda parnasiana.

• Em que proporções a pintura ajuda e atrapalha a sua poesia? Entre pintar um quadro e escrever um verso, onde está a maior dificuldade, pois ambas as artes (quando bem-feitas) têm um grande impacto sobre o receptor?
Pintar é uma das atividades que me dá mais prazer. Enquanto pinto, permito que minhas emoções e percepções sejam trabalhadas num nível anterior à linguagem verbal, então o processo não passa pela cabeça, e isso é muito relaxante, pintar para mim é como meditar de olhos abertos, meditar em ação. Uma terapia de reencontro, uma respiração profunda e silenciosa. Por isso, decidi, e é uma decisão muito estabelecida em mim, não me meter em preocupações com carreira e discussões sobre artes plásticas. Pinto porque me dá prazer, e apenas aquilo que me dá prazer. Neste caso, meu prazer é meu único guia, e é muito bom que eu tenha tido o bom senso de conservar a pureza original deste meu impulso. Com a poesia é diferente. Através da poesia, procuro fazer a ponte em direção ao outro, procuro expressar alguma coisa, entender alguma coisa, dialogar com as pessoas que estão vivas, com meu tempo. Tudo isso é muito aflitivo, porque cada vez me convenço mais que cada homem está se tornando uma ilha isolada, as pontes que nos unem estão cada vez mais frágeis. A verborragia geral que nos assola e invade diariamente acaba por desgastar e confundir o sentido das coisas. A linguagem poética torna-se mais exigida, precisa tornar-se cada vez mais pura, para que efetivamente atinja o outro. Outro dia, andando no centro da cidade, andando à toa, como gosto de fazer, senti que toda aquela gente ao redor era um bando de bicho solto, cada qual um bicho diferente, uma espécie diferente, lidando sem lei alguma com o dia na selva. O que nos une? Às vezes acho que a idéia de civilização não será sustentada, que tudo vai se soltar e desmanchar, que voltaremos a ser pequenos bandos e tribos. Mas continuaremos sempre humanos, enquanto formos capaz de usar a linguagem. Diferentemente da pintura, com a poesia eu quero alguma coisa, pretendo atingir meus semelhantes. Pretendo, acima de tudo, dar sentido às coisas. Nomear, iluminar, des-cobrir. Essa é a natureza da inteligência, e a poesia é cosa mentale. Ser poeta é minha profissão, minha vocação, minha forma de dar o meu melhor aos outros. Sendo assim uma pessoa que de certa forma milita nas artes plásticas e na literatura, receio que a aproximação de ambas, potencialmente tão enriquecedora, tem na verdade empobrecido as duas. A poesia contemporânea, ou “pós-moderna”, na opinião de alguns críticos se caracteriza pelo retrato fotográfico e objetivo de situações soltas numa realidade fragmentada, sem nenhum comentário ou reflexão. Ou seja, no século das imagens, no império da fotografia e do cinema, a poesia teria se impregnado das artes visuais e se esvaziado do que sempre foi seu grande trunfo entre as artes: a possibilidade de inserção do pensamento, da idéia enquanto poesia, de reflexão articulada. Por outro lado, as artes plásticas afastaram-se da pintura e de tudo que é essencialmente visual, criando obras que só se realizam após a compreensão intelectual de um conceito (ou seja, da inserção do pensamento). Acho que seria interessante pensar em voltar a dar a César o que pertence a César, a ir fundo no cerne de cada forma de linguagem artística, deixar de tanto experimentalismo e fáceis aventuras horizontalizadas.

• Em uma palestra — intitulada o Enigma da Poesia —, Jorge Luis Borges disse (em um ataque de modéstia) que só tinha perplexidades a oferecer. Que perplexidades cabe ao poeta e como oferecê-las?
É uma belíssima palestra, desse que sem dúvida foi um dos grandes poetas do século 20, um dos poucos que soube digerir e devolver para nós, reciclada e enriquecida, toda a tradição da nossa cultura milenar — em vez de simplesmente querer dissecá-la e destruí-la, como propôs a maioria dos movimentos artísticos do século passado. Borges é 10. Mesmo ele, que tanto iluminou, sabia que um artista só tem perplexidades a oferecer. É essa justamente, na minha opinião, a função da arte, a arte com A maiúsculo: apontar para o abismo, para o vão, para o imensurável, para o insondável, ou seja, para tudo que nos deixa perplexos. O resto é pura opinião, dogma, ou emoções baratas, e a arte não é feita de opiniões nem de certezas. Para parafrasear o próprio Borges, o que há de mais superficial num homem são suas convicções intelectuais. A gente sempre muda de idéia, de qualquer modo, mas o tempo passa e o abismo permanece. O circunstancial, o “enquanto” não me encanta. Acho um absurdo o fato de um artista depender do mercado para sobreviver. A arte não é um produto qualquer, não pode se submeter às leis do mercado. Subjugada pelo dinheiro, a arte vira apenas entretenimento, perde seu poder de reflexão, sua condição metafísica. A sociedade, o Estado, deveria manter os artistas, sob a pena de criarmos uma sociedade sem alma, presa em seu próprio labirinto de espelhos. Sem arte que aponte o perplexo, não há humanidade possível.

• De que serve a poesia, se ela é vilipendiada (e muito) como se não passasse de um cão sarnento a coçar-se no poste da esquina? O que mais afasta o leitor — e não podemos negar que a leitura assídua de versos é prazer de poucos — da poesia? A poesia afasta-se do leitor, ou o leitor afasta-se da poesia? E como reaproximar-se?
Cada vez é mais risível ser poeta. O poeta é um pateta, e se eu fosse os irmãos Campos eu faria um poema com isso. POETA PATETA. Estou até mesmo tentando escrever um romance, porque os escritores (de prosa) têm mais dignidade social. E ganham mais dinheiro. Os próprios poetas contribuem em muito para a degeneração da imagem do poeta e o afastamento do leitor, com suas ridículas brigas de facções e formação de quadrilha, e, muitas vezes, como a utilização de linguagem hermética que serve apenas para esconder um vazio de idéias. A poesia é como a música erudita: coisa para poucos. É verdade que existe, e continuará existindo, uma arte erudita e uma arte popular, uma literatura erudita e uma literatura popular, uma poesia erudita e uma poesia popular (Elisa Lucinda, por exemplo, é uma poeta popular, e nisso ela fez um bem à poesia, expandindo o círculo de leitores). Talvez a poesia sempre tenha sido e sempre será para poucos, mas os grandes poetas nacionais (para citar apenas o Brasil) sempre souberam atingir o povo (ou pelo menos uma boa parte da camada alfabetizada): Castro Alves, Augusto dos Anjos, Drummond, Bandeira, Cecília, Gullar, entre outros, fazem parte da alma nacional. São lidos e relidos pelas novas gerações. Conheço poetas hoje que, se uma pessoa “comum” diz que gostou dos seus poemas, eles se sentem humilhados e ofendidos. Eu não quero escrever apenas para os outros poetas, para os críticos literários, para minha “turma”, para os “iniciados”. Quero dialogar com a minha nação, sem menosprezar ninguém. Este distanciamento do público é algo preocupante, e não acontece apenas com a poesia, acontece também com as artes plásticas, com a música erudita. Não estou propondo aqui uma arte condescendente, que faça concessões para poder atingir mais pessoas. Falta ao nosso país uma política cultural digna, que promova a reflexão artística e o acesso das pessoas à cultura. Mas num país onde falta até educação básica, isso é ainda apenas um sonho. Então, na minha opinião, cabe ao próprio artista refinar sua linguagem a ponto de torná-la mais acessível — num país como o nosso acho um contra-senso os poetas se entrincheirarem nas torres de marfim das universidades.

Passeio
Renato Rezende
Record
107 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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