• Em A hipótese humana o narrador se dirige diretamente ao leitor, discutindo com ele os fatos que levaram ao crime que norteia a trama — uma estratégia célebre dos romancistas policiais. Por que decidiu usar esse recurso narrativo? Isso, de alguma forma, ajuda a fortalecer o vínculo com quem lê?
Acho que resultou de um processo de amadurecimento, ou de aprendizado, à medida que fui dominando o ofício da escrita. Evoluiu comigo de forma espontânea, não foi pensado para ser assim. Acho que comecei a conquistar esse narrador com O movimento pendular, até ele desabrochar mais encorpado em O senhor do lado esquerdo.
• O narrador de A hipótese humana é um membro da família de Francisco Eugênio, coronel e pai de Domitila, a mulher assassinada na biblioteca de casa. A identidade desse narrador onisciente, porém, não é revelada ao leitor. Esse enigma subliminar faz parte da trama?
Faz parte da trama na medida que integra a estratégia do foco narrativo. Como busco “despsicologizar” o romance, sair da mente das personagens e dar ênfase à narração propriamente dita (tomo como paradigma a mitologia, e nos mitos é assim que ocorre, os fatos em si têm mais significado que as características psíquicas dos atores), um narrador em primeira pessoa (hoje quase universal no Brasil) abrandaria o efeito, prejudicaria a proposta. Preciso, assim, desse narrador clássico, onisciente (ou quase onisciente), para alcançar melhor os efeitos pretendidos. O jogo, ou pacto, entre leitor e narrador fica, então, completamente aberto, é franco, sem dissimulação. Gosto desse feitio.
• Ainda paira sobre o romance policial um certo ranço por conta da aparente simplicidade das narrativas. Mas seus livros, pelo contrário, trazem uma linguagem sofisticada. Em A hipótese humana há, por exemplo, alternância de vozes narrativas. Como define seus romances dentro do gênero policial?
Há uma confusão teórica, me parece, entre a qualificação e a classificação do texto literário. Dostoiévski escreveu dois policiais clássicos (Crime e castigo e Os irmãos Karamazov) mas não é lembrado como escritor policial, porque se associa a classificação pura e simples a um juízo de valor. Como se algo classificável fosse ruim por natureza. É um equívoco teórico grave, porque qualquer universo pode ser analisado e classificado, por inúmeros critérios. Ulisses, que muitos consideram o grande romance do século 20, pode ser classificado como romance irlandês, como romance inglês, como romance diário, como romance experimental, como romance psicológico, como romance começado com a letra U. Qualificação é uma coisa; classificação, outra. Sobre o segundo ponto da questão, é muito difícil falar de si mesmo. Mas tenho consciência de duas coisas. Primeira: não consigo, ou ainda não consegui, criar um protagonista, um detetive que se repete em vários romances. Preciso estudar antes de escrever, gosto de variar de época, de ambientes, de estratégias de narrar. E isso não é usual entre os chamados escritores policiais, embora eu não seja o único. Segunda: minha preocupação mais consciente é a de incluir na trama um elemento cosmológico ou mitológico oriundo de culturas não ocidentais (especialmente africanas e ameríndias). Isso porque, para mim, mais importante que a trama em si é provocar um estranhamento no nosso senso comum, fazer o leitor perceber que há outras formas de perceber o mundo. É o que, imagino, dá literariedade aos meus livros: a experiência da alteridade.
• Ao final do projeto Compêndio mítico do Rio de Janeiro, você terá publicado cinco romances policiais (ou novelas, como prefere), um para cada século do Rio. Mas, antes disso, já havia publicado livros em outros gêneros, como o conto. Sente-se hoje um romancista policial?
Sim, plenamente. É um gênero que se adequa muito bem ao meu processo de criação, que é cerebral, que depende de planejamento e estruturação, que parte sempre de um problema literário (ou mitológico) a ser resolvido ou explorado. Creio até que muitos dos meus contos têm elementos “policias” também. Mas não tenho certeza se vou me fixar só nesse gênero. Tenho muita vontade de fazer um grande romance sobre as bandeiras, por exemplo, que se encaixaria mais no gênero de aventura; e um outro sobre piratas, já que a pirataria foi uma atividade constante na história do Brasil e particularmente na do Rio de Janeiro, que é o meu cenário natural. Poderia me definir como um escritor que busca ou namora esses quatro gêneros: o fantástico, o policial, a aventura, o histórico, além do romance de adultério (embora este ainda não seja um gênero reconhecido pela crítica).
• O Brasil não tem muita tradição no romance policial — ainda que nosso país seja um manancial de crimes, com centenas de pessoas assassinadas diariamente. Por que ainda engatinhamos no gênero, mesmo com tanta matéria-prima?
Explicar a formação das várias linhagens literárias brasileiras é uma tarefa árdua, que não caberia nesse espaço. Mas percebe-se no Brasil ausência de tradição tanto na novela policial, como na literatura fantástica e no romance de aventura. Não temos um gênero “bandeirante”, por exemplo, que seria equivalente do faroeste norte-americano, resultante de uma experiência histórica única. Há até bons romances históricos brasileiros, mas também não chegam a constituir uma grande linhagem, autônoma e duradoura. Talvez seja a herança do sentimentalismo português, porque esses gêneros também faltam em Portugal (e vale lembrar que a literatura portuguesa também não tem uma tradição de literatura colonial, como a inglesa, por exemplo, embora sejam países que viveram a mesma experiência). A literatura brasileira, como a lusitana, está mais voltada para a observação sentimental e psicológica, para o documentário da sociedade e do indivíduo; e menos interessada na fabulação, no enredo extraordinário, na busca pelo Outro, que os gêneros mencionados costumam privilegiar.
• Nos seus romances policiais nada ortodoxos, há um olhar antropológico, há mitologia, há o resgate da cultura e da História. De alguma maneira, seus livros seriam antirromances policiais, por ampliaram o leque de temas e olhares?
Concordo que não sejam ortodoxos, mas não seriam antipoliciais. Porque alguns pilares do gênero são mantidos, de modo consciente até: um homicídio como ponto de partida, a presença de um detetive (embora eu já tenha escrito um policial sem detetive); as cenas de investigação, um rol de suspeitos, a revelação final (ainda que não tenha sido feita pelo detetive) são alguns exemplos desses pilares. Mas creio que seja uma motivação extra, sempre, escrever algo que, num ou noutro aspecto, fuja do padrão.
• Seus romances têm na História um elemento fundamental. De onde você tira esses personagens que, embalados da maneira que são, parecem tão verossímeis aos leitores? Essas figuras, como o investigador informal (e capoeira) Tito Gualberto, realmente existiram? São recriações a partir de figuras encontradas em suas pesquisas?
Acho que resultam mais da fabulação propriamente dita que de outra coisa. Por exemplo, tomando o Tito Gualberto: enquanto lia livros sobre o século 19, para escrever o romance, descobri que havia agentes secretos na polícia da Corte, durante o Império; e que as maltas de capoeiras estavam disseminadas pelos quatro cantos da cidade. A personagem surgiu da fusão desses dois elementos. Mas a construção foi arbitrária, não me baseei em nenhuma personagem real, até porque não tomei conhecimento de nenhuma que tivesse tais características. Sobre a verossimilhança, creio que o estudo da época me dá instrumentos para assegurar o mínimo necessário.
• Você é leitor de literatura policial? Quem são os autores do gênero que fazem sua cabeça?
Geraldo Ferraz, Dostoiévski, Faulkner, Guillermo Martínez, Poe, Borges, Dürrenmatt, Rubem Fonseca, Agatha Christie, Chesterton, Bioy Casares, Leonardo Sciascia, Conan Doyle, Eco, Luiz Lopes Coelho, Simenon, Raphael Montes… São muitos.