O retrato de uma geração

O escritor Nelson de Oliveira reúne em uma antologia alguns dos melhores contistas surgidos na década de 90
Oliveira festeja o bom momento da literatura brasileira
01/10/2001

Organizar uma antologia é estar disposto para a guerra. De egos, de gostos, de opiniões. O escritor Nelson de Oliveira propôs a batalha, muniu-se até os dentes, cavou a trincheira (funda, bem funda) e agora aguarda os “inimigos”. Alguns já colocaram a tropa no front e dispararam contra a não-unanimidade da antologia. Mas de que servem as unanimidades, se elas são sempre sem graça, meros espantalhos a sacolejar no vento reverenciador? Como toda boa antologia, a de Nelson de Oliveira, que pretende reunir os melhores contistas surgidos nos últimos dez anos — Geração 90 – manuscritos de computador (Boitempo, 264 págs.) —, não está isenta de discussões acaloradas e de birras egocêntricas. Há falhas? Falhas? A ausência de Bernardo Carvalho, autor do inquietante livro de contos Aberração, é questionável até o fim dos tempos. Ele estaria muito bem acomodado em lugar de Marcelo Mirisola, um contista que pensa que simples palavrões — incluem-se esposas enrabadas por sedentos maridos — ainda causam estupor na classe média. Como se isso não estivesse no cardápio da novela das seis.

A inclusão de apenas uma mulher — a talentosa Cíntia Moscovich —, entre os 17 contistas, também rende acaloradas discussões. E aqui poderia ficar tecendo infinitos quês em relação à antologia, como fazem os chatos e pessimistas de plantão (e olhe que são muitos; não precisam da minha companhia).

Como toda boa antologia deve ser, a organizada por Nelson de Oliveira é questionável infinitamente. E carrega consigo o prazer de mostrar, com certeza, os melhores contistas da nova safra — produtiva, sim, apesar dos pessimistas — da literatura brasileira. Aos maus contistas (encontrei apenas um) é só relegar boas viradas de páginas. No livro, há sempre um bom escritor à espera do leitor.

• O que é um bom contista?
Se me permite, adotarei a estratégia do avesso e direi o que não é um bom contista. Quem escreve com afetação não é um bom contista. Quem escreve com timidez também não é um bom contista. Quem escreve com nobreza de sentimentos não é um bom contista. Quem escreve com pobreza de sentimentos também não é um bom contista. Quem escreve um conto com cara de outra coisa (roteiro de cinema, história em quadrinhos, carta de amor) não é um bom contista. E assim por diante. Como vê, é mais fácil definir o bom contista pelo que ele não é do que o contrário. Brincadeiras à parte, confesso que sou meio impaciente com generalizações. Não servem para nada, na vida prática. Muito mais prazeroso do que definir o que seria um bom escritor, mesmo dentro de determinado gênero, é justamente localizar bons escritores. Por exemplo: o Altair Martins é um grande contista. Por quê? Melhor do que eu discorrer longamente sobre esse juízo de valor é aconselhar o leitor a se debruçar sobre os contos do Altair, para que procure neles a resposta.

• O que o motivou a organizar uma antologia com os contistas que estrearam na década de 90?
Também sou contista, e também estreei na década de 90. Por isso, sempre foi uma curiosidade recorrente a vontade de conhecer a cara dos que estrearam no mesmo período que eu. Quando a editora Objetiva lançou Os cem melhores contos do século, confesso que não me senti representado no capítulo reservado aos anos 90. É claro que a proposta da antologia organizada pelo Italo é muito diferente. Do período em questão — o final do século passado —, ele selecionou os melhores contos publicados, não os melhores contistas estreantes. Por isso, mesmo estando lá o Fernando Bonassi, o Bernardo Carvalho, o Rubens Figueiredo e o André Sant’Anna, ainda é pouco, muito pouco. Cadê o Luiz Ruffato e o Sérgio Fantini? Cadê o Marçal Aquino e o Amilcar Bettega Barbosa? São gritantes as ausências. Isso, mais o convite da editora Boitempo, me motivou a vasculhar bibliotecas, sebos e livrarias. Também pesquisei na Internet. Troquei figurinhas com amigos e interessados, pedi dicas de nomes pouco conhecidos no eixo Rio-São Paulo. Por conta dessa movimentação toda, recebi uma enxurrada de livros. Muitos mesmo. A maior parte editada às expensas do próprio autor. Hoje, graças aos novos equipamentos de impressão, com três mil reais você publica seu próprio livro. Não precisa esperar mais anos e anos, até que uma editora tope a empreitada. Não é à toa que o número de coletâneas de contos lançadas na década de 90 foi muito maior do que o das outras décadas.

• Uma geração literária não se forma pela idade de seus integrantes, mas pelos traços/características que tais autores carregam. Qual é a principal característica da chamada Geração 90?
A principal característica dos contistas da geração 90 é o apego à miséria. Não falo da “miséria humana”, questão filosófica que atravessa os milênios, mas da miséria brasileira, sem nenhum glamour, vagabunda mesmo, de país situado na periferia do capitalismo. É claro que esta miséria se desdobra, cabendo a cada autor cultivar a faceta que achar melhor: Marcelo Mirisola reelabora ficcionalmente a miséria moral da classe média; Marcelino Freire e Rubens Figueiredo, a miséria afetiva que há entre as pessoas de uma mesma classe; João Anzanello Carrascoza e Cíntia Moscovich, a componente lírica que sempre há na miséria cotidiana; Jorge Pieiro e Pedro Salgueiro, a relativização da miséria, por meio do elemento mágico. Outra característica dos autores da Geração 90: o individualismo da orfandade. Veja bem: os poetas da última década do século passado se congregavam, formavam grupos, editavam revistas. Fazem isso até hoje. Os contistas, não. Estes trabalhavam isolados — sempre trabalharam isolados —, cada qual no seu canto. Por mais que o contista não deixe de ser um animal gregário, nos botecos e cafés deste mundo de Deus nenhum deles faz discurso estético, defende manifestos, essas coisas. Lêem-se mutuamente, sim, mas não pautam sua produção pelo que o vizinho está escrevendo nem querem fazer valer seu modo particular de ver a literatura. E há muitas outras características comuns. O fato de elas não se apresentarem de maneira ostensiva não significa que não estejam aí. O vínculo que todos esses contistas mantêm, em maior ou menor grau, com os grandes nomes da Geração 70 é outro ponto a ser ressaltado, talvez o principal deles. Mais do que romper com o passado, o que a Geração 90 fez foi manter o diálogo estético com gente como Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, José J. Veiga e Ignácio de Loyola Brandão. Aliás, isso precisa ser dito com todas as palavras: ninguém aqui acredita mais em grandes rupturas, nem tem saco para essa conversa fiada. O tempo das vanguardas já vai longe. Manter a peteca no ar é o que de fato importa, não só no Brasil, mas no mundo todo.

• Quando o título do livro carrega o subtítulo “manuscritos de computador” é porque tal definição tem importância na formação desses contistas. Qual importância do computador na formação da obra da Geração 90?
Pequena, ainda. Em geral, o computador tem sido usado pelos escritores apenas como uma ferramenta mais eficiente do que a máquina de escrever. Mas, como todo incremento tecnológico sempre contamina nosso modo de interagir com o mundo, não consigo deixar de perceber o rastro deixado pela informática na prosa desses contistas. Por mais tímida que seja essa presença do computador enquanto máquina capaz de criar múltiplos planos narrativos, ela se deu, pela primeira vez na história da literatura, na década de 90. E isso não pode ser ignorado. Também vejo a presença muito grande da tevê, no trabalho desses autores. Não me refiro à presença física, doméstica, do aparelho. Estou falando, mais uma vez, de contaminação cultural. Os enlatados da década de 70, despejados aqui pela indústria norte-americana, reviraram muito o imaginário de quem, na época, tinha oito, dez, doze anos. Diferente das gerações anteriores, cuja infância era ainda dominada pelos livros e, em certos casos, pelas histórias em quadrinhos, a da Geração 90 teve que se haver, antes de tudo, com Jornada nas Estrelas e Terra de Gigantes. Antes de você começar a rir com essas elucubrações todas, aguce os sentidos e observe como a linguagem dos seriados, dos videoclipes, dos programas de auditório, das novelas, dos telejornais e, mais ainda, das propagandas, está muito presente na prosa que tem sido feita hoje em dia. Quer o escritor queira ou não.

• O senhor deixa claro que na antologia não estão os melhores contos, mas os melhores contistas brasileiros surgidos no fim do século passado. Aí, o autor (para leitores desavisados) deve sobrepor-se à sua obra. Nesse caso, a possibilidade de injustiça de um grande conto ter se perdido pelo meio do caminho é grande. Apenas um grande conto não pressupõe um grande contista?
Na antologia não estão necessariamente os melhores contos, porque decidi encomendar contos inéditos aos antologiados. Trata-se de um volume com mais de cinqüenta contos inéditos. Se a rubrica “Geração 90” te incomoda, descarte-a. Se o subtítulo “Os melhores contistas brasileiros surgidos no final do século 20” te põe nervoso, deixe-o de lado. Leia o livro como um lançamento qualquer, e verá que mesmo assim ele vale muito mais do que pesa. Quantas coletâneas de qualidade tivemos este ano? “Geração 90” certamente é uma delas. Você me fala de injustiças… Na década de 90 não houve nenhum gênio de um conto só, de um livro só. Nem aqui, nem fora daqui. Na década de 90 não houve gênios em parte alguma, em gênero artístico algum. Não acredito que em nossos dias volte a acontecer o caso do autor espetacular de um só grande conto, de um só grande poema. Novos Rimbauds vão demorar a surgir. O bom texto, hoje, pressupõe paciência, artesanato, amadurecimento literário. Por isso optei, ao selecionar os contistas que integrariam a antologia, por autores que já tivessem mais de um livro publicado. Se estrear bem já é difícil, dar continuidade ao projeto iniciado na estréia, sem descambar, é algo mais complicado ainda.

• Cortázar dizia que “o conto deve vencer sempre por nocaute”. Quem tem o golpe mais preciso e potente entre os contistas brasileiros?
Gosto dessas definições bombásticas, mas não as levo muito a sério, pelo menos não mais do que merecem. O Mauro Pinheiro tem uma pegada muito boa. O Cadão Volpato, idem. O nocaute, na minha opinião, tem de estar embutido no conto curto, sempre, mas não necessariamente no conto longo. A narrativa do Carlos Ribeiro e a do João Batista Melo, que estão na antologia, ambas longas, não derrubam o leitor com um golpe rápido e preciso, derrubam-no por meio da hipnose do enovelamento, gesto típico dos ofídios.

• A sua antologia caracteriza-se pela linearidade em termos de características dos escritores (não falo aqui da qualidade dos contos incluídos), pois, como o senhor mesmo alerta na introdução, “quando se olha para a década de 90, é a predominância, no panorama do conto brasileiro, do homem branco de classe média, heterossexual e europeizado”. Pode-se então afirmar que o mundo literário — não do antologista, mas do leitor — também é repleto de preconceitos?
Pode-se afirmar que o mundo é repleto de preconceitos, e ponto final. A literatura não escapa de ter o corpo maculado pelas mazelas de seu criador. Somos todos humanos e nada do que é humano nos é alheio. Quando estou de bom humor, me divirto ao ver gente que se considera esclarecida defendendo posturas extremamente demagógicas, reacionárias mesmo. Quando estou de mau humor, chuto o pau da barraca. Se não são certos preconceitos enraizados, ancestrais, que movem essas pessoas, então não sei mais o que poderia ser. A democracia é, sem sombra de dúvida, a melhor forma de governo já inventada, mas não é perfeita. Basta ler os jornais para se perceber isso. A vida em sociedade, mesmo num país como os Estados Unidos, ainda é regida pelas mesmas forças obscuras e irracionais que Freud já estudava há mais de cem anos. E o que é a literatura? É a arte da elite letrada. Ora, sendo a arte da elite, é claro que não vamos encontrar na ficção que circula por aí, não com muita freqüência, a voz dos negros, pois estes estão longe de ocupar importantes lugares no topo da pirâmide social. Quatrocentos anos de escravidão não ficam impunes em país algum. Agora, quando digo que a voz negra não produziu bons contos na década de 90, não significa que não houve escritores negros em ação. Afirmar isso seria ridículo. O que aconteceu, e continua acontecendo, é o escritor negro de alma branca, ideologicamente treinado pelo feitor de escravos, fluente em português, inglês e francês. A matriz européia, do colonizador, moldou e continua moldando o discurso de todas as minorias. Há inclusive minorias das quais pouco se fala, no âmbito da criação literária. A dos índios e a dos esquizofrênicos, por exemplo. Quando divago com os amigos, fantasiando como seria a literatura verdadeiramente indígena, ou a verdadeiramente esquizofrênica, me olham enviesado. “Como assim, literatura esquizofrênica?”, perguntam. E por que não? Não vivemos numa democracia? Se houve um Arthur Bispo do Rosário nas artes plásticas contemporâneas, por que não abrir as portas para que surja alguém tão talentoso quanto, na literatura contemporânea? Maura Lopes Cançado é um bom exemplo saído dos anos 60. Mas paro por aqui, porque este é um terreno espinhosíssimo! Transitar por ele, sem cair nas falsas armadilhas, nos velhos atavismos, requer desprendimento e boa vontade. Penso que mostrei um pouco de boa vontade ao apontar, no texto de apresentação do volume, não só o que caracterizou a Geração 90, mas também o que tristemente não fez parte dela.

• E, uma vez virado o milênio, a quantas anda a produção dos escritores “excêntricos”, como o senhor define a mulher, o negro, o índio, o favelado e o homossexual?
A definição não é minha, não. É da canadense Linda Hutcheon, teórica do pós-modernismo, que a desenvolveu a partir da leitura de Barthes e Derrida, entre outros. Tomei-a emprestada e a ampliei, enfiando nela o favelado e o esquizofrênico, porque veio bem a calhar. Na sua Poética do pós-modernismo, Hutcheon discorre sobre o paradoxo contemporâneo do “ex-cêntrico”, do “off-centro”. Por que paradoxo? Por que faz parte do temperamento do marginalizado aspirar ao centro cultural e econômico, que lhe é sempre negado. Esse livro, apesar de um pouco maçante, mostra como a ideologia do dominador é traiçoeira, ainda quando parece estar interessada em repensar certos preconceitos e posturas totalizantes. Entre outras curiosidades, Hutcheon demonstra como até mesmo o feminismo foi altamente influenciado por modelos masculinos de pensamento, tirados de Marx, Nietzsche, Heidegger, Lacan… Mas voltando à vaca fria, me parece que, para a década que começou, os prognósticos são favoráveis. Temos notícias do surgimento de editoras segmentadas, no Brasil, voltadas para o público GLS, por exemplo. Há também selos de grandes editoras voltados para as mulheres, e outros, para os negros. As margens, pé ante pé, começam a interferir na cultura. No primeiro mundo isso já vem acontecendo há muitas décadas. O resultado inicial, quando se tem em mente a qualidade estética, é quase nenhum. Mas é muito importante que essas iniciativas tenham tempo para amadurecer, principalmente no Brasil, onde são ainda muito recentes.

• Apenas uma mulher (Cíntia Moscovich) entre os 17 escritores não é um número que não traduz a produção das contistas brasileiras surgidas nos anos 90?
Essa foi mais uma grande decepção, durante a seleção dos contistas que integrariam a antologia. Recebi, comprei ou peguei emprestadas muitas coletâneas de mulheres. Dois terços delas não resistem sequer à leitura mais condescendente. Não sei onde está escrito que a literatura feminina tem de ser confessional, derramada e cheia de autocomiseração, mas a maioria das contistas segue à risca esse preceito. Haja lenço de papel! Quando não enveredam pela trilha de Clarice Lispector, ou de Lya Luft, mas, é claro, sem conseguir reproduzir o brilho do original. Ou quando não decidem escrever uma prosa poética para lá de cafona. Já o terço restante traz uma número muito bom de futuras grandes contistas. De todas, só a Cíntia publicou mais de um livro. No texto de apresentação eu menciono, com muita pompa, as estreantes que têm tudo pra arrombar a festa nesta década que se iniciou: Claudia Lage, Tércia Montenegro, Fernanda Benevides de Carvalho, Pólita Gonçalvez… Existem outras, também em vias de lançar o segundo título. Vamos acompanhá-las de perto, pois têm talento para fazer valer a próxima geração, a Geração 00.

• A sua antologia tem o mérito de mostrar contistas de fora do egocêntrico eixo Rio-São Paulo, como Altair Martins, Amilcar Bettega Barbosa e Cíntia Moscovich, do Rio Grande do Sul; Jorge Pieiro e Pedro Salgueiro, do Ceará; Carlos Ribeiro, da Bahia; e os mineiros Sérgio Fantini, João Batista Melo e Luiz Ruffato. De que maneira esses escritores colaboram para criar a polifonia no conto brasileiro, ainda muito marcado pela urbanidade paulista e carioca?
São Paulo e Rio de Janeiro são os principais centros econômicos da nação. É aqui que o dinheiro circula com mais intensidade. É aqui que se elegem e derrubam reis e rainhas, príncipes e grão-vizires. Os grandes bancos, as grandes indústrias, as grandes redes de televisão, a grande imprensa, onde estão? Por isso, não é de se espantar que o maior número de bons contistas também esteja aqui, uma vez que a ebulição artística tende a buscar guarida nos centros econômicos de um país. É óbvio que tanta centralização torna a cultura homogênea. E o estado de coisas fica ainda pior quando essa homogeneidade passa a se alimentar quase que exclusivamente do que vem de fora. Na literatura brasileira é assim. Na música popular, graças aos deuses, não. Na antologia que organizei não há nenhum contista da região norte do Brasil. Muito menos da centro-oeste. Isso também me deixou muito aborrecido. Não por eu não ter incluído nenhum autor dessas regiões, mas por constatar que a nova literatura que está sendo feita aí é muitíssimo fraca.

• Muitos críticos ainda batem na tecla de que a literatura brasileira (conto, poesia e romance) agonizam há algum tempo. Mesmo assim, antologias como a do senhor, as organizadas por Italo Moriconi (que abarcam os cem melhores poemas e os cem melhores contos brasileiros do século) e a de José Nêumanne Pinto, com os cem melhores poetas do século, tentam contrariar essa tese. A literatura brasileira ainda é forte suficiente, ou tais antologias são apenas subterfúgios que antecedem a morte?
As quatro antologias que você apontou estão cumprindo um papel importantíssimo. Estão fazendo o leitor — principalmente o leitor médio — prestar mais atenção na literatura de qualidade que vem sendo feita neste fim de mundo chamado Brasil. Olha, se me perguntarem qual foi o melhor romance publicado no planeta, na segunda metade do século passado, eu direi: Grande sertão: veredas (de Guimarães Rosa). O segundo melhor? A lua vem da Ásia (de Campos de Carvalho). Mas só toparei dar o meu voto se estiver de muito bom humor, porque em geral não acho que essas listas de O Melhor do Século devam ser levadas muito a sério. Bem, pelas minhas escolhas você já pode deduzir que tipo de relação eu mantenho com a literatura que é feita aqui. Paixão, tesão absoluto. O que acontece é o seguinte: na década de 90 não tivemos nenhum João Antônio, nenhum Samuel Rawet, nenhuma Hilda Hilst. Mas não ficamos muito atrás, não. Isso me impede de fazer pose de apocalíptico, se me permite citar a divertida caracterização do Umberto Eco. Quer dizer que a literatura brasileira está agonizante? Acabei de ler o novo livro do Luiz Ruffato, Eles eram muitos cavalos, seu primeiro romance. Primoroso! Marcelino Freire, Marcelo Mirisola e Marçal Aquino estão com originais de qualidade, maduros, prestes a serem lançados. Mudando de geração: li o último livro de Livia Garcia-Roza, Cine Odeon, também um romance. Estupendo, porque vivamente feminino! Li ainda, não faz muito tempo, A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro, do Fernando Monteiro. Outro romance e outro romancista que dispensam comentários. Evandro Ferreira, do delicioso Grogotó!, também está com uma nova coletânea pronta para ser publicada. Aliás, é no seu caso que a palavra “original” assenta melhor. Preciso dizer mais? E olha que só me restringi à prosa. Nem comecei a falar da poesia. Se isso é agonizar, oxalá continuemos a estrebuchar por mais uma década.

• O contista Nelson de Oliveira mereceria estar na antologia da Geração 90, caso o organizador fosse outro? Por quê?
Como busco a purificação da alma, o apaziguamento do ego e o máximo distanciamento das coisas terrenas, se esse hipotético organizador não me incluísse entre os melhores da década de 90, eu não me importaria. Mas daria cabo dele na primeira quebrada em que nos encontrássemos.

• O que é um mau contista?
O problema não é determinar o que é um mau contista, mas descobrir quem são, antes que seja tarde demais. Eu sei quem são. Você provavelmente também sabe. Eles, com toda certeza, sabem que são maus contistas. Por isso, fale baixo, antes que nos descubram aqui.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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